Polícia Militar levou duas líderes de ocupações por ‘desobediência’ e três jovens por suposto uso de drogas; adolescente relata agressões e ameaça de PM quando já estava rendido: ‘falou que se eu continuasse gritando ele quebraria o meu dedo’
Duas líderes comunitárias, Poliana Souza e Edineia Ribeiro, e os jovens Victor Marciano, 19 anos, Matheus Rodrigues, 28, e K.R, 16, foram detidos na madrugada do sábado (22/6) em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Quatro deles são moradores das ocupações Eliana Silva, na região sul da capital, e Carolina Maria de Jesus, na área central.
Inicialmente, a Polícia Militar mineira abordou os três jovens em frente ao espaço onde moram sob a suspeita de fazerem uso de drogas. Durante a abordagem, Victor relata ter sido espancado pelos militares, o que resultou em cortes na testa e lesões no dedo da mão. “Eles chegaram me jogando no chão, um policial colocou o joelho nas minhas costas e torceu meu braço. Eu gritei socorro e ele falou que se eu continuasse gritando ele quebraria o meu dedo. Eu continuei. Foi aí que ele torceu meu dedo e me deu dois socos no estômago”, relembra.
Moradores da ocupação presenciaram as agressões e avisaram os familiares do jovem, que é irmão de uma das coordenadoras do MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas), Poliana Souza. No momento em que Poliana soube da violência contra o seu irmão, foi entender o que estava acontecendo, mas Victor, K.R e Matheus já haviam sido encaminhados para outro local sem que os responsáveis pelos jovens fossem comunicados.
Os três foram levados para o CIA (Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional) de Belo Horizonte, na região do Barro Preto, também na zona sul. Ao procurar o 41º Batalhão da Polícia Militar, localizado no mesmo bairro em que fica a Ocupação Eliana Silva, a coordenadora foi informada de que Victor estava na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) para fazer exames e verificar se havia fratura no dedo machucado.
Ao questionar as atitudes dos policiais e pedir para que pudesse conversar com o irmão, Poliana recebeu voz de prisão e foi detida por desobedecer a ordem legal de um funcionário público. Os policiais afirmaram que se basearam no artigo 330 do código penal para enquadrá-la. Integrantes do movimento, incluindo o companheiro, Leonardo Péricles, organizaram um ato em frente ao CIA.
Por meio de um vídeo divulgado nas redes sociais, é possível perceber momentos em policiais seguram Poliana pelo braço, o que resultou em uma luxação. “Eles me levaram no hospital no momento em que estavam tacando bomba no pessoal aqui fora. Foi muito constrangedor chegar lá algemada, as pessoas ficam olhando sem entender nada. Pediram para uma policial entrar comigo no banheiro. Depois me deixaram de molho aqui [no CIA] com os meninos”, relembra. “O policial só ficava olhando para a gente de uma forma intimidadora. Teve um momento que ele ficou quase 10 minutos me olhando. O Cabo Libério falou com os meninos que na vila vai pegar os meninos, que essa não foi a primeira vez, nem vai ser a última e que ele vai ter outras oportunidades”, continua. À Ponte, Victor complementou a fala da irmã afirmando que “foi ele que me bateu. Me ameaçou dentro da UPA também, quando estava só eu e ele”, denuncia.
Segundo Leonardo, que também é coordenador do MLB, durante o ato, policiais receberam 60 militantes com bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo. Entre eles estava a vereadora de BH Cida Falabella (PSOL), lideranças comunitárias e religiosas, midiativistas, crianças e outros moradores de ocupações. Ninguém ficou ferido. Ao participar do ato, Edineia Ribeiro, integrante do MLB e moradora da Ocupação Carolina Maria de Jesus, também foi detida por desobediência. Enquanto o delegado Alan Silva de Oliveira avaliava o caso, amigos e familiares aguardavam sentados na calçada próximo ao Centro de Atendimento.
Às 4h30 do sábado, o delegado iniciou a liberação de alguns que foram interrogados. A primeira foi Edineia, que saiu sorridente e explicou sobre o momento exato em que ela foi detida. “Eu vendo eles enchendo aqui [ocupação] de carro de polícia contra a minha gente, que não tem nada de mal pra fazer para ninguém, eu comecei a gravar. Foi aí que um deles [policiais] achou ruim e bateu no meu celular, falou para eu não gravar. Eu falei ‘que isso cara?’ e ele entendeu ‘que isso otário?’ e veio pra cima de mim, querendo me prender”, relembra. Ela também relatou que ao, entrar no Centro de Atendimento, foi questionada se estava recebendo financeiramente para manifestar contra a ação policial e respondeu: “Claro que não. Estou aqui lutando pelo meu povo, por gente como você também, policial. Pobre e preto”, disse.
Logo em seguida todos foram liberados. Ansioso para ver os amigos e fumar um cigarro, um dos jovens brincou. “Deus me livre, quero pisar aqui nunca mais”, afirmou. O mais novo, K.R., contou sobre as situações que nem mesmo seus familiares conseguiram observar em meio aos conflitos gerados após a prisão. “Eles jogaram spray de pimenta dentro da viatura e eu comecei a vomitar. Eles também algemaram todo mundo, menos o Matheus, o único que não mora em ocupação”, lembra.
Perseguição é rotina, denunciam moradores
Ao relembrar das ações policiais próximo e dentro das ocupações, Leonardo Péricles justificou o cenário atual como resultado dos posicionamentos do presidente da república, Jair Bolsonaro (PSL). “Isso é uma parte dessas forças fascistas que foram liberadas pelo presidente. Isso era apenas exceção, eles estão trabalhando para virar regra. Não podemos aceitar de forma alguma o que está acontecendo aqui”, criticou. “Vamos exigir punição daqueles que fizeram essas ações e que cesse a perseguição às ocupações e ao movimento”, completou. Ele e Poliana foram detidos há dois meses em um ato na porta da Prefeitura de Belo Horizonte.
Para o advogado que está acompanhando o caso, Thales Viote, as medidas que serão tomadas precisam ser analisadas com cautela, devido às ações diárias da Polícia Militar com os moradores das ocupações na região do Barreiro, onde lideranças comunitárias têm sofrido perseguições e ameaças há anos. “Não é qualquer violência policial. É uma violência sistemática que vem acontecendo contra o MLB tem muito tempo. E agora tem a Polícia Civil e a Militar atuando de forma bárbara e muito violenta em manifestação pública. Os órgãos responsáveis vão ser acionados com certeza”, garantiu.
Durante o conflito entre policiais e manifestantes, houve relatos de que uma jornalista teria sido impedida de gravar as ações. A reportagem da Ponte buscou posicionamento oficial com um dos investigadores que estava de plantão na CIA, que pediu para que “volta pela manhã, pois o delegado Alan Silva de Oliveira estava atarefado”. Acionada por contatos em seu site oficial, a assessoria de comunicação da Polícia Militar também não se pronunciou sobre o ocorrido.