Moradores dizem que morte pela PM em ocupação no Centro de SP foi execução

    Vizinhos da ocupação da Rua Prates dizem que Amarildo Aparecido da Silva, de 36 anos, foi conduzido até barraco de tapume e baleado na quinta-feira (10/4). PMs alegam reação após vítima ter supostamente fugido e tentado sacar arma de fogo

    Barraco de tapume, ainda com manchas de sangue, onde Amarildo Aparecido da Silva foi morto com pelo menos um tiro na cabeça pela PM paulista | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    É um cômodo de oito metros quadrados, com paredes de tapume e sem abertura para ventilação. Ele abriga uma cama de solteiro, um criado-mudo com artigos religiosos e duas pequenas mesas com itens pessoais. Nas laterais, há roupas penduradas. Já no chão de cimento, há sangue espalhado: ali foi morto a tiros Amarildo Aparecido da Silva, um homem negro de 36 anos, no que a Polícia Militar do Estado de São Paulo (PM-SP) alega ter sido consequência de confronto. Para vizinhos do local, teria sido execução.

    O pequeno espaço ainda com marcas do assassinato é um dos vários barracos de uma ocupação no bairro do Bom Retiro, região central de São Paulo. Vivem no local cerca de 70 pessoas, espalhadas por cômodos semelhantes feitos de madeira, alguma alvenaria e restos de recicláveis, entremeados por corredores estreitos, pouco iluminados e com cheiro forte de esgoto.

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    Cercada por muros e acessada por um portão de lata, a ocupação fica na quadra final da Rua Prates, onde ela se torna sem saída, e está de frente para o Complexo da Prates, um conjunto de equipamentos públicos destinados à assistência social e à saúde de pessoas em situação de vulnerabilidade — em especial dependentes químicos, que circulam o tempo todo por ali.

    É para esse trecho do Centro que o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) cogitou levar a Cracolândia, ideia da qual voltou atrás ainda em 2023 ao ser pressionado pela vizinhança — o fluxo de usuários de crack se concentra não tão longe dali, a cerca de 1,4 quilômetro, perto da outra ponta da Rua Prates. A Ponte esteve na ocupação, também chamada de favelinha da Prates, na última sexta-feira (11/4), um dia depois de Amarildo, conhecido ali como Kaká, ter sido morto a tiros por policiais militares.

    Entrada da ocupação da rua Prates, no bairro do Bom Retiro, onde vivem cerca de 70 pessoas em cômodos de madeira, alguma alvenaria e restos de recicláveis | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Moradores falam em execução, e PM cita reação

    Os relatos ouvidos pela reportagem no local, todos eles na condição de anonimato, são de que policiais chegaram à ocupação às 15h da quinta-feira (10/4). Os agentes teriam conduzido Kaká desde a entrada à porta do barraco em que vivia, passando pelo principal corredor da favelinha, por cerca de dez metros.

    Dois dos policiais o teriam mandado entrar no apertado cômodo, e vieram então dois estouros: um laudo médico indica que ele foi morto com um tiro na cabeça, enquanto moradores falam que também recebeu um disparo no peito.

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    Foram apreendidos para perícia um fuzil 5.56 e uma pistola Glock .40, armas pertencentes a policiais militares e das quais provavelmente partiram os disparos. A versão do boletim de ocorrência (BO) é de que a PM fazia uma operação contra o tráfico de drogas na região quando viu Kaká em “atitude suspeita”. Ele teria corrido para dentro do barraco na ocupação e, ao ser interceptado, teria tentado sacar uma arma de fogo contra os agentes, “o que ocasionou reação dos policiais à injusta agressão”, diz o BO.

    Em nota à Ponte, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) comunicou que foram apreendidas 244 porções de crack, 50 porções de cocaína e 26 de K2, além de uma bolsa, dois celulares e R$ 574 em dinheiro com Kaká. A SSP-SP não informou se ele teria ligação com o crime organizado.

    Homem chegou morto a unidade de saúde

    Os moradores do local negam que Kaká tivesse uma arma. A maioria dos que vivem ali está sob condições precárias: são usuários de drogas, têm problemas com familiares ou estão fora do mercado de trabalho formal. Há ainda crianças na favelinha, que vivem aos cuidados dos pais. No Complexo da Prates, do outro lado da rua, também há abrigo, mas quem não se adapta às condições e regras do aparato público busca moradia em outros espaços.

    Kaká tinha passagens policiais e já havia sido preso por tentar roubar um iPhone 6s em 2019, ocasião em que disse ter cometido o crime por estar em abstinência de droga. Ele havia sido solto em novembro e estaria na ocupação desde dezembro.

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    No barraco onde foi morto, não há marcas de tiro. Os policiais teriam levado as cápsulas disparadas e foram eles próprios que entregaram à Polícia Civil, posteriormente, um revólver .32 raspado que alegaram estar em posse da vítima fatal. Os moradores dizem que a Polícia Científica foi complacente com a PM. A perícia deixou para trás uma luva descartável em meio ao sangue do homem morto.

    O BO do caso cita que não foram identificadas testemunhas ou câmeras de vigilância que tenham registrado o suposto confronto. O documento ainda aponta que Kaká teria ido a óbito apenas no posto de saúde de Santana, na zona norte de São Paulo e para onde foi levado pelo socorro. Um laudo médico indica, no entanto, que o homem baleado chegou à unidade de saúde já morto.

    Repressão recorrente à ocupação

    Os moradores da ocupação alegam que os socorristas demoraram mais de uma hora para chegar, enquanto o corpo da vítima permanecia isolado por policiais militares. Ao final da ocorrência, o efetivo no local era reforçado por diversas viaturas, incluindo do Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep), da Força Tática e da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam). A área está sob atuação do 13º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M). A sede do Departamento Estadual de Investigações sobre Entorpecentes (Denarc), da Polícia Civil, fica a 400 metros da favelinha.

    Quem vive na ocupação narra que a repressão da polícia ao local tem escalonado nos últimos dois anos. Eles alegam que alguns agentes já os teriam submetido a episódios de extorsão, flagrante forjado e ameaças. A Ponte questionou a SSP-SP se tem ciência das supostas condutas abusivas cometidas por policiais no local, mas a pasta não deu retorno sobre esse ponto específico.

    Alguns policiais que costumam atuar na ocupação são reconhecidos pelo nome no local, dada a recorrência com que comparecem ali, e seriam os mesmos que, ainda dia da morte de Kaká, estiveram envolvidos mais cedo em uma ocorrência no conjunto habitacional Parque do Gato, no Bom Retiro: na ocasião, os agentes teriam espancado um morador.

    Um vídeo da ocorrência no residencial [veja acima] mostra dois homens imobilizados no chão, enquanto policiais lançam spray de pimenta contra moradores que tentavam intervir, incluindo uma mulher grávida, esposa do homem que teria sido agredido. Em um outro registro, a gestante é repreendida e puxada pelo braço por um policial militar. Os moradores do Parque do Gato chegaram a planejar na ocasião um protesto contra a violência policial, mas voltaram atrás por medo de retaliação.

    A SSP-SP comunicou à Ponte que o caso de Kaká foi registrado pelo 2º Distrito Policial (Bom Retiro). O Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) foi acionado, e um inquérito policial militar (IPM) também foi instaurado para apurar os fatos.

    Leia a íntegra da nota da SSP-SP

    Um homem de 36 anos morreu após trocar tiros com policiais militares durante uma ação contra o tráfico de drogas na tarde desta quinta-feira (10), na Rua Prates, no Bom Retiro, região central de São Paulo. Segundo a Polícia Militar, o suspeito tentou fugir ao ver a equipe e, ao ser alcançado, sacou uma arma contra os agentes, que intervieram. Ele foi socorrido ao Pronto-Socorro Santana, mas não resistiu. Com o suspeito, foram apreendidas 244 porções de crack, 50 porções de cocaína e 26 de K2, além de uma bolsa, dois celulares e R$ 574 em dinheiro. Os entorpecentes foram apreendidos. O caso foi registrado pelo 2º Distrito Policial (Bom Retiro) e o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) foi acionado. Um Inquérito Policial Militar (IPM) foi instaurado para apurar os fatos.

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