Morre Cecília Lopes, mãe e ativista que transformou dor da violência policial em propósito

    Fundadora da ONG Lucas Vive, Cecília era mãe de cabeleireiro de 23 anos que foi espancado pela PM em Sorocaba (SP), em 2019. Jovem foi perseguido após policiais terem alegado que ele os teria xingado, o que família e vizinhos negam

    Cecília perdeu o filho Lucas em 2019, morto pela PM ao ser espancado quando voltava a pé para casa após um baile de Réveillon | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Cecília Lopes dizia ter transformado dor em propósito. Antes de ser ativista, era mãe de Lucas Lopes, jovem cabeleireiro de 23 anos morto ao ser espancado pela Polícia Militar em Sorocaba (SP), em 2019. Do luto pela perda do filho, ela fundou a organização não-governamental (ONG) Lucas Vive. A entidade se despediu dela nesta segunda-feira (28/4), ocasião em que a fundadora morreu aos 53 anos.

    A causa da morte não foi divulgada. Há cerca de uma semana, no domingo de Páscoa (20), a ONG havia compartilhado nas redes sociais fotos de Cecília em um evento montado para crianças e adolescentes, no qual foram presenteados com ovos de chocolate. A entidade se tornou conhecida por promover festas para os pequenos do bairro Ana Paula Eleutério, conhecido como Habiteto, em datas especiais, além de ajudar famílias carentes com cestas básicas, fraldas, medicamentos e material escolar.

    Mãe buscou por justiça por seis anos

    O filho de Cecília que inspirou a fundação da ONG foi morto pela PM em 1º de janeiro de 2019. Na ocasião, Lucas voltava a pé de um baile de Réveillon quando passou a ser perseguido por policiais. Os agentes alegaram que, ao tentarem coibir o evento, teriam sido xingados. Mesmo sem ter se dirigido a qualquer policial, relataram familiares e vizinhos, ele foi rendido e passou a ser espancado.

    A PM ainda teria barrado a prestação de socorro à vítima, que chegou a ser levada ao Hospital Regional de Sorocaba mas não resistiu aos ferimentos. Cecília, que viu o filho agonizar enquanto era chamado de “lixo” pelos policiais, relembrou do caso no último dia 1º de abril, quando participou de um desfile do tradicional bloco cívico-carnavalesco fora de época Córdão da Mentira — o evento propunha a memória e resistência de vítimas de violência de Estado.

    “Não tenho medo de morrer, porque, quando uma mãe perde um filho, ela já morreu. Mas não vou sossegar até ter justiça”, disse ela na ocasião, ao fazer um discurso junto de outros familiares de vítimas de violência policial em frente à sede da Secretaria de Segurança Pública paulista (SSP-SP). Ela faleceu sem que os agressores tenham sido julgados, passados mais de seis anos da morte de Lucas.

    Guerreira e inspiradora, dizem amigos

    Cecília é conhecida ainda entre ativistas de direitos humanos por ter se dedicado também a luta por justiça de outras famílias. Os amigos a descrevem como inspiradora e solidária.

    “Ela fundou a ONG para honrar o legado do filho dela, que já fazia um trabalho social. É um trabalho que fortaleceu muitas famílias”, diz a também ativista Maria Cristina Quirino, que se aproximou de Cecília após ter perdido um dos filhos, Dennys Herinque, de 16 anos, no Massacre de Paraisópolis, em 2019.

    “Ela estava aguardando o júri popular [dos agressores]. Foi um dos planos que a gente fez, de se mobilizar. Ela disse que não descansaria até tirar a farda do policial que matou o filho dela, e isso é uma questão de honra para a gente, vamos lutar para honrar o legado dela.”

    Já o advogado Dimitri Sales diz que lembrará de Cecília pela força que ela teve para transformar o luto em uma luta por solidariedade. Ele conheceu a ativista em função do cargo que ocupou até o ano passado de presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).

    “Ela teve o filho assassinado na frente dela, na porrada. Para se ter uma ideia, a única coisa que pôde ser doada dele foram as córneas, porque todos os órgãos tinham sido estourados por dentro. Essa mulher viu o filho ser morto desse jeito, sem poder socorrê-lo, e resolveu transformar essa luta também em algo pelas crianças e adolescentes da periferia de Sorocaba. É um gesto muito bonito, porque a luta por justiça é algo individual, mas ela buscou também trazer esperança para os outros”, diz.

    O advogado afirma ainda que, apesar da dedicação à ONG, a dor pela perda do filho foi uma chaga constante. “Eu percebo que, quando uma família tem um luto provocado por violência de Estado, como é o caso da Cecília, esse luto não se fecha. É uma dor que termina consumindo a própria vida.”

    O velório de Cecília teve início na noite desta segunda, na casa funerária Ofebas Zona Norte, em Sorocaba. O sepultamento será no cemitério Santo Antônio, às 12h30 desta terça (29/4).

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