Ação que matou Alexandre Ferreira lembra mortes cometidas pela Rota com base em escutas feitas em parceria com o Ministério Público
A ação da Polícia Militar que matou Alexandre Ferreira da Silva, 45 anos, conhecido como Tchelo, e Renato Viana Borges dos Santos, 39, no último dia 29, na Avenida Aricanduva, na zona leste da cidade de São Paulo, seguiu um roteiro parecido com o de outras ações da PM, praticadas principalmente entre 2010 e 2012.
O roteiro envolvia a atuação da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a tropa mais letal da PM paulista, a partir de uma suposta denúncia anônima, e a interceptação de uma liderança da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) em uma suposta troca de tiros, com possíveis indícios de execução.
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Segundo a Polícia Civil e o Ministério Público Estadual, Alexandre era conhecido como Tchelo e integrava posto de comando da facção em Cidade Tiradentes, também na zona leste. Ele seria responsável pela “sintonia da cesta básica”, administrando a distribuição de alimentos para integrantes da facção e seus familiares.
A Secretaria da Segurança Pública, do governo João Doria (PSDB), afirma que, para encontrar Tchelo, os PMs se basearam numa denúncia anônima, segundo a qual o Ford Ka em que estavam Tchello e Renato levaria um carregamento de drogas. Na versão oficial, os dois suspeitos foram abordados pela Rota e teriam atirado contra os policiais, morrendo na troca de tiros.
Procurado pela Ponte, o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco, principal responsável pelas investigações sobre o PCC, disse que, em princípio, não tem informação de que a Rota possa ter usado informações fornecidas pelo Ministério Público para matar Tchelo. “Que eu saiba, não”, disse.
Jacqueline Sinhoretto, coordenadora do Gevac (Grupo de Pesquisa sobre Violência e Administração de Conflitos) da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos), explica que ações da PM similares à da morte de Tchelo tiveram início na década passada.
“Em 2012 foi esse tipo de expediente. Falam em denuncia anônima, mas tem um mecanismo investigação e inteligência. As denúncias nunca são esclarecidas. Começou esse fortalecimento da Rota, um protagonismo da PM, nas instituições de segurança, inclusive na investigação”, explica.
Jacqueline explica que este tipo de informação chega à PM graças à parceria com o Ministério Público. “A SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) e o Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) não trocam informações com a Polícia Civil, trocam com a PM”, afirma.
Segundo a professora, esse processo é fruto de um sucateamento da Polícia Civil, a quem, pela Constituição, caberia o papel de investigação. “Tem um sistema de informação compartilhado entre as três instituições, que não é com a Civil. Há todo um jogo institucional montado desde 2012, muito nítido. Falam que desbaratam reuniões do PCC, que sempre são divulgadas na mídia. Reunião em um sítio, casa, e a Rota recebe informação, vai lá e executa”, detalha.
Execuções geraram revide e matança
A Rota já havia matado outras lideranças do PCC da mesma maneira entre 2010 e 2012, durante o governo de Geraldo Alckmin (PSDB). O secretário de Segurança Pública da época era Antônio Ferreira Pinto, um ex-policial militar e ex-procurador de justiça conhecido por valorizar a PM e desprezar a Polícia Civil – “ele é Antônio para a mulher, Ferreira para a PM e Pinto para a Civil” era uma piada comum no ambiente policial, que o próprio secretário costumava repetir.
Na sua gestão, Ferreira colocou a Polícia Militar na linha de frente das ações de investigação e repressão ao PCC. Conforme explica o estudo Democracia e crime organizado: os poderes fáticos das organizações criminosas e sua relação com o Estado, feito pela Ponte para a Fundação Heinrich Böll, a principal fonte de informações da PM sobre a facção era uma central de escutas telefônicas montada na sede do CPI-8 (Comando de Policiamento Militar do Interior-8), em Presidente Prudente, no interior de São Paulo, a serviço do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), do Ministério Público Estadual.
A central monitorava as conversas por telefone celular trocadas entre os presos recolhidos na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, que funcionava como o escritório-sede da organização criminosa. As informações das escutas eram passadas aos policiais da Rota, que passaram a seguir os passos de integrantes da facção que estavam em liberdade ou foragidos. Vários deles acabaram mortos, alguns em operações com indícios de execução.
Um deles foi Fábio Fernandes da Silva, o Vampirinho, morto em 17 de maio de 2010. Ele estava em uma BMW vermelha, com sua namorada, quando foi morto pelos disparos de uma viatura da Rota. Os policiais alegaram que reagiram aos disparos de Vampirinho, mas a namorada disse que ele não estava armado. Inicialmente ela havia dito o oposto, mas confessou ter sido coagida pelos PMs.
Em 2 de setembro de 2010, a Rota matou outra liderança do PCC, Fábio Santos de Oliveira, o Gordex, durante uma abordagem na Avenida Jacu-Pêssego, em Itaquera, zona leste. Ele era suspeito de ter tentado matar o tenente-coronel Paulo Telhada, então comandante da Rota, um mês antes. Gordex chegava em sua casa quando teria reagido à abordagem da tropa após ser seguido, segundo a versão da PM. Ele morreu baleado e os registros das imagens de câmera de segurança foram levados pelos policiais. As investigações da Polícia Civil concluíram que Gordex foi executado.
Foi também com base nas informações levantadas pelas escutas telefônicas feitas na P2 de Venceslau que a Rota matou três homens, entre eles Ilson Rodrigues de Oliveira, o Teia, braço direito de Roberto Soriano, o Tiriça, apontado como o segundo homem na hierarquia do PCC, atrás de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola. Dessa vez, as vítimas foram mortas em um sítio, e não na rua.
A morte de maior repercussão ocorreu na noite de 28 de maio de 2012, quando a Rota matou seis homens em um bar na Penha, zona leste. Entre os mortos estava Anderson Minhano, homem forte do PCC. Socorrido por três policiais, chegou morto a um pronto-socorro em Guarulhos. No caminho até o hospital, os PMs haviam parado no acostamento da Rodovia Ayrton Senna, onde tiraram Minhano da viatura e o mataram com “vários tiros à queima-roupa”, segundo uma testemunha descreveu para o telefone 190.
Até o secretário Ferreira Pinto reconheceu que a atitude da Rota nesse caso foi criminosa: “Para mim, aquilo foi uma execução”, declarou. Levados a julgamento, os PMs foram absolvidos em 2014. Uma das testemunhas de defesa foi o empresário Roberto Justus, que depôs contando que um dos réus fazia a segurança pessoal de sua família havia mais de 15 anos.
A morte de Minhano levou o PCC a declarar guerra à corporação e cometer dezenas de assassinatos de PMs ao longo de 2012. A PM respondeu cometendo uma série de homicídios nas periferias da Grande SP, inclusive chacinas, que vitimavam pessoas que só eram culpadas de morar em um bairro pobre. A onda de violência levou à queda de Ferreira Pinto, que deixou o cargo em novembro de 2012.
A prática é mencionada pelo músico Eduardo Taddeo no rap Perdoar nunca, esquecer jamais: “Que o Gaeco finge que grampeia a ligação / Pra ter como resultado dez no rabecão”.
[…] Pinto definiu a atitude no caso como criminosa, ao dizer que as mortes foram “execução“. Os PMs envolvidos com o caso passaram por júri popular, tendo como uma de suas testemunhas de […]