Em ligação gravada, Fernando disse a parentes que estava na 45ª DP, no Alemão, Rio: ‘os caras estão querendo me matar aqui’. Depois, foi achado morto com sinais de tortura
Hoje faz oito dias que a família do pedreiro Fernando de Oliveira Filho, morador do Alemão, está “sem chão”, nas palavras de sua cunhada. “Estamos todos muito nervosos. Está todo mundo na base do calmante. Acabei de pegar as roupas dele pra lavar, sujas de poeira de obra”, diz ela, desolada, ao falar com a Ponte.
Antes de morrer, no último sábado, o homem telefonou para o irmão. “Os caras estão querendo me matar aqui na 45”, disse ele na ligação, que foi gravada. “Os caras querem o quê?”, perguntou o irmão. E Fernando respondeu: “Me matar, aqui na 45. Eles vão me matar, pode saber que eu tô morrendo hoje”.
De acordo com familiares, testemunhas afirmaram que Fernando já saiu de dentro da delegacia morto e que teria sido vítima de uma sessão de tortura praticada por dois policiais civis da 45ª DP e dois policiais militares da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) Nova Brasília, que fica em frente à delegacia.
Ele chegou a ser levado por dois policiais para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do Alemão, onde já chegou sem vida, de acordo com seus familiares. O atestado de óbito aponta como causa da morte “trauma torácico e asfixia” por “ação contundente”.
Fernando foi sepultado no Cemitério do Caju, também na Zona Norte da cidade. Seu corpo, de acordo com a cunhada, apresentava indícios de agressões. “No velório ele estava todo machucado, com o nariz torto, boca torta, olhos roxos, um hematoma bem grande com tipo um corte na testa. Ele apanhou muito. Ele apanhou tanto que, quando o médico veio entregar as roupas e os pertences dele, a cueca dele estava toda defecada”, conta ela, com a voz embargada.
Ainda segundo a cunhada, Fernando era um homem honesto, trabalhador, nascido e criado no Complexo do Alemão, que trabalhava como vigilante e, há quatro anos, deixou a profissão para trabalhar como pedreiro, para melhorar sua renda. Ela afirma ainda que ele “nunca tinha ido parar em delegacia”.
“Só queria saber o que ele fazia na 45″
Recém-separado da companheira, Fernando estava morando na casa do irmão e da cunhada havia uma semana. “Um casamento de mais de 20 anos, com dois filhos, de 12 e 15 anos, o casal se separa de uma hora pra outra, é claro que a pessoa não fica com o psicológico legal, né?”, diz a cunhada.
“Ele trabalhava, saía às sete horas e chegava às seis horas [da tarde] todos os dias”, conta. No sábado, ele tomou café da manhã, saiu às 7h para trabalhar e voltou por volta das 18h, como de costume. “Nós tínhamos uma festa pra ir, e ele também ia, mas de última hora o filho dele de 12 anos não ia mais e ele também desistiu de ir. Eu deixei meu telefone com ele e falei pra qualquer coisa ele ligar. Insisti muito pra que ele fosse pra festa, mas ele não quis ir de maneira alguma”, recorda.
Quando o casal saiu para ir à festa, por volta das 18h40, Fernando ainda estava na casa. Depois disso, o irmão e a cunhada só falaram com ele às 20h10, como mostra o registro da chamada, quando ele ligou da delegacia afirmando que seria morto. Ele ligou para o celular da cunhada, em vez de ligar pro celular do irmão, porque sabia que o aparelho dela tinha um aplicativo que grava ligações, segundo a cunhada. Ela atendeu ao telefonema e em seguida passou o telefone para o marido, irmão de Fernando.
Como não acreditaram que Fernando realmente corria risco de vida, eles pediram para ele ir para casa algumas vezes durante o diálogo e atribuíram seu comportamento a um abalo psicológico ocasionado pela separação recente, segundo o irmão e a cunhada.
Aos três minutos e vinte segundos de gravação, Fernando passa o telefone para alguém, que, segundo o irmão, provavelmente era um dos policiais. O homem do outro lado da linha diz ao irmão de Fernando: “Ele chegou aqui, está meio alterado, dizendo que querem matar ele, que a mulher armou pra ele”.
https://soundcloud.com/ponte-jornalismo/ligacao-de-fernando-oliveira-para-irmao-antes-de-morrer
“O cara não se identificou como policial. Se ele tivesse se identificado como policial, eu tinha ficado mais tranquilo. A gente pensa que numa delegacia ele vai estar seguro”, diz o irmão de Fernando à Ponte.
O irmão e a cunhada do pedreiro não estavam entendendo a situação e só acreditaram que ele estava realmente em perigo quando a ex-mulher do pedreiro, que, àquela altura, havia chegado à delegacia também, telefonou para eles e disse pra eles irem rápido pra lá porque os policiais estavam “batendo muito no Fernando”.
O casal, então, saiu da festa rumo à delegacia. Quando o casal estava no carro, a caminho da 45ª DP, receberam outra ligação da ex-mulher de Fernando. “Ela disse ‘não vem mais pra delegacia, porque bateram muito nele, acho que mataram ele e estão levando ele pra UPA’”, relata.
O casal afirma que chegou à UPA no mesmo momento em que a viatura chegou com o corpo de Fernando. O irmão conta que ele mesmo pegou o corpo. “Ele já estava morto. Eu peguei meu irmão nos braços, dentro da viatura, na UPA. Ele estava morto. Estava gelado, o corpo todo molhado, cheio de hematoma na cara, boca sangrando, nariz sangrando. Não tinha sinal nenhum de respiração. Não tinha mais nada”, afirma. A cunhada conta que, quando o médico deu a notícia, afirmou que Fernando “tinha chegado lá com o coração parado”, que eles “tentaram reanimá-lo” mas não conseguiram.
Depois que o corpo foi colocado na maca e os médicos avisaram que “não tinha mais o que fazer”, segundo o irmão, um policial chamou o irmão e a ex-mulher de Fernando para irem à 45ª DP. Ali, o irmão perguntou aos policiais por que eles não haviam simplesmente contido Fernando, caso ele realmente estivesse alterado. “‘Ah, que ele chegou surtado’. Então segurasse ele, imobilizasse ele, botasse dentro da cela, prendesse, deixasse a gente chegar, mas não fazer a covardia que fizeram com ele. Só largaram meu irmão quando ele já tinha falecido”, desabafa o irmão, num misto de dor e revolta. “Meu irmão algemado, sendo asfixiado com ‘ação contundente’. Ele levou muita porrada”, revolta-se.
Indignada, a família agora espera por justiça. “Isso é um absurdo, estou revoltado. Ele foi muito judiado”, enfatiza o irmão. “O dever deles [policiais] é proteger a gente, trabalhador, a gente paga imposto pra isso. Aí disseram que ele estava alterado. Quer dizer, então, qualquer um que entrar numa delegacia alterado sai morto?”, questiona.
Segundo os familiares, tudo o que se sabe até o momento é que Fernando teria combinado de encontrar a ex-mulher próximo à delegacia e a esperava tomando cerveja em um bar na região.
“Sabemos que ele estava vivo pelo menos até as 20h37 porque, até esse horário, ele ligou para outras pessoas também, tem registro aqui no meu telefone”, diz a cunhada, referindo-se ao aparelho que ela havia emprestado a Fernando.
O que eles dizem não terem entendido ainda é como ele foi parar no interior da delegacia. “Eu não sei o que aconteceu, se ele viu alguma coisa e entrou para a delegacia”, diz o irmão. “Eu só queria saber o que ele estava fazendo dentro da 45”, completa.
Polícia não comenta
A Assessoria de Direitos Humanos e Minorias MPRJ (Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro) recebeu familiares de Fernando. Em nota, o órgão afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que “encaminhou o expediente para a promotoria local com atribuição pelo fato de haver envolvimento de policiais civis e militares no evento”. A nota diz ainda que a investigação está sendo conduzida pela DH (Divisão de Homicídios) da capital e pode estar sob sigilo. Ainda não há inquérito no MPRJ.
Questionada pela reportagem sobre o andamento da investigação, por meio de sua assessoria de imprensa, a Polícia Civil afirmou apenas que “as investigações estão em andamento na DH/Capital” e que “no momento não há mais informações a divulgar”.