Relatório mostra que 34 pessoas morreram por arma de fogo durante operações policiais em 2019
“O ruim das operações nas favelas é porque não dá para brincar muito. Também fica morrendo muitos moradores nas comunidades e também tem muita violência”, foi assim que um estudante relatou as operações policias no Complexo da Maré, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro.
Em 2019, 49 pessoas morreram na comunidade atingidas por arma de fogo, entre elas 34 durante operações policias, durante o primeiro ano do governo Wilson Witzel (PSC). Um aumento de 100% em relação ao ano anterior. Em 2018, 24 pessoas morreram em decorrência da violência armada. Enquanto Wilson Witzel comemora em rede nacional uma morte televisionada, a favela era alvejada por bombas.
Os números são da 4ª edição do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, que traz para o debate as circunstâncias de vida — e morte — dos moradores do complexo de favelas. No ano passado, dezessete operações duraram mais oito horas consecutivas. A cada 8 horas de atuação policial uma pessoa morreu na Maré, sendo a maioria esmagadora corpos negros.
“O privilegiado, que mora na pista, na zona sul, está acostumado a ver tanque de guerra no 7 de setembro, no desfile cívico. Aqui o pobre vê o tanque de guerra passando e atirando”, disse Vitor Santiago à Ponte, Morador da Maré, em fevereiro de 2015 ele foi alvejado por membros das Forças Armadas e ficou paraplégico.
No lançamento do boletim, nesta sexta-feira, 14, ele participou do debate ao lado de Aline Maia, coordenadora do eixo de Direito à vida e segurança pública do Observatório de Favelas, e Pedro Abramovay, diretor regional da Fundação Open Society para a América Latina e Caribe. Trezentas horas de operações policiais marcaram o ano de 2019 na comunidade da Maré.
Os feridos em operações policiais também assustam. No ano passado, 45 moradores da Maré foram feridos por arma de fogo, entre eles 30 foram durante intervenção policial – assim como o caso de Vitor. Os feridos levantam o debate sobre a existência da favela como parte da cidade. Já que em lugares como a Maré muitas pessoas perdem o direito de existir enquanto cidadãos. Ficam, muitas vezes, invalidadas.
O que o Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré também mostra no relatório, divulgado nesta sexta-feira (14/2), é que o poder público pouco se movimenta para elucidar as mortes.
A perícia apareceu somente três vezes após operações que, de acordo com a Coordenadora do eixo de Direito à vida e segurança pública do Observatório de Favelas, Aline Maia, 29 anos, foram solicitados pela própria Rede da Maré. “Alegam que estão socorrendo a vítima, quando ela já está em óbito”, completa a socióloga.
Entre os mortos apontados no relatório, 85% deles tinham entre 15 e 29 anos. A Redes da Maré é uma organização criada por moradores do Complexo da Maré, que atua em ações e projetos para garantir direitos básicos para a população das favelas.
Direito à vida
Um desenho pouco colorido e com traços irregulares mostrou o desespero das crianças que moram no Complexo da Maré. No momento em que os chamados caveirões aéreos (helicópteros oficiais que atiravam em direção à favela) crianças escreveram um pedido contra a violência.
“Eu não gosto de helicóptero, porque ele atira para baixo e as pessoas morrem. Isso é errado”, dizia uma dar cartas enviadas pelos pequenos em um protesto contra a juíza Regina Lúcia Chuquer de Almeida, da 6ª Vara de Fazenda Pública da Capital do Rio de Janeiro, que anulou a Ação Civil Pública da Maré, em junho do ano passado.
A ação estabelecia medidas a serem adotadas no Complexo da Maré, a fim de brecar a violência e garantir os direitos da comunidade. Na época, o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro questionou a veracidade das cartas das crianças da Maré, dizendo que deveria ter “algo por trás”.
“O juiz da causa tem que analisar se aquelas cartas realmente foram feitas pelas crianças, se não foram encomendadas, se não há algo por trás disso, se realmente é a sociedade da Maré que está clamando para que isso pare, para que essa violência pare”, disse ao G1.
Foram 1.500 cartas enviadas pela Redes da Maré que escreveu uma nota rebatendo. “[A mobilização é] Fruto da luta por direitos e reconhecimento da importância de cerca de 140 mil vidas que moram no conjunto de 16 favelas”.
Antes da morte efetiva, as crianças da favela perdem o direito de existirem de acordo com a idade. A brincadeira e as aulas ficam para depois. “O direito de ser criança na favela. O direito de brincar, o direito de ser criança também é suspenso nos dias de operação”, completa Aline.
Foram 24 dias de atividades suspensas nas escolas da Maré devido operação policial. Os alunos perderam 12% do ano letivo. Durante operações do ano passado, uma escola pregou um cartaz no teto: “Escola, não atire”. Quando a arma de fogo não destrói o corpo, destrói um pouco – ou muito – da construção social de crianças de jovens.
Elas crescem com o desenvolvimento escolar e emocional afetados. “Oi, eu estou escrevendo esta carta porque aqui onde eu moro tem operação quase todos os dias. Eles [policiais] não têm respeito com a gente. Eles esquecem que no meio dessas brigas deles existem moradores, trabalhadores, estudantes e muita tristeza. Você está andando e daqui a pouco está morto. É muita tristeza perder alguém”.
A tristeza relatada na carta por uma criança também está presente em adultos que vivem em territórios onde o direito não é respeitado. Ano passado, a Ponte conversou com Laerte Breno, morador da comunidade da Maré, após uma operação policial.
Com a voz embargada, o educador popular disse que havia passado mal por conta da operação. Ele teve uma crise pânico e precisou ser levado ao hospital. Na época questionou: “A gente luta, mas até quando a gente vai precisar lutar para isso?”.
A favela faz parte da cidade
Enquanto políticos reafirmam a narrativa de extermínio da população pobre e favelada, os moradores desses territórios são excluídos de debates para se pensar, junto com o Governo, saídas que melhorem a Segurança Pública de todos.
“Uma coisa que não é muito difícil, mas o governo não faz, que é sentar com o pobre, com o favelado, com o negro e perguntar: “O que está precisando? Como faz para tirar o jovem da rua, do tráfico?”, questiona Vitor. Assim que foi eleito, em 2018, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, prometeu: “A polícia vai mirar na cabecinha e…fogo”.
Para Lidiane Malanquini, 31 anos, coordenadora do Eixo de Direito à Segurança Pública a Acesso à Justiça, os discursos públicos que incentivam a repressão e a criminalidade nas favelas potencializa as mortes, mas o padrão violento de atuação nos territórios não é novidade.
“Historicamente a polícia entra na favela entendendo que a favela e seus moradores fazem parte de um exército inimigo”, explica à Ponte. “Se você pensar, por exemplo, o político corrupto não pode mirar e acertar na cabecinha do político corrupto, por que na favela se afirma que pode fazer isso?”, questiona.
Uma bala atravessou o pulmão, a coluna e a medula de Vítor Santiago. A euforia da goleado do Flamengo em cima do Cabofriense virou desespero para o grupo de quatro amigos que voltavam da partida e seguiam rumo a comunidade da Maré, no Rio de Janeiro.
O carro de Vitor foi alvejado com seis tiros de fuzil pelo Exército na madrugada do dia 12 de fevereiro de 2015. O jovem, na época com 29 anos, passou 98 dias internado, entre eles 10 dias em coma. Cinco anos depois os culpados não foram sentenciados.
Na próxima terça-feira, 18, o PM que atirou no jovem será julgado e Vitor está apreensivo com a possibilidade de absolvição. Ainda assim, ele diz à Ponte que estará na audiência para olhar nos olhos de quem estará no julgamento e mostrar a marca que o Estado deixou em seu corpo saudável.
Outro lado
Procurada pela reportagem, a Polícia Militar se manifestou por meio da assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar. Em nota, a pasta informou que “as operações desencadeadas pela Corporação para localizar criminosos e apreender armas e drogas são pautadas por informações da área de inteligência e seguem protocolos rígidos de execução, sempre com a preocupação central de preservar vidas humanas”.
A PM alega que as operações policiais servem “para prender criminosos e apreender armas” e que “continuará atuando em defesa dos cidadãos de bem, independentemente de classe social ou local de moradia. Todos têm o direito à liberdade, conquista mais valiosa garantida pela Constituição do país”.
A reportagem também questionou a Polícia Civil do Rio de Janeiro sobre os números apresentados pelo relatório da Redes da Maré, mas não obteve retorno.
Reportagem atualizada às 14h do dia 15 de fevereiro para inclusão da nota da Polícia Militar do Rio de Janeiro.