De janeiro a março, 116 pessoas foram mortas pelas polícias Civil e Militar de São Paulo; para pesquisadores, histórico de declarações de secretário de Segurança, Guilherme Derrite, pode ter influenciado números
As polícias Civil e Militar do estado de São Paulo mataram 116 pessoas durante o primeiro trimestre sob o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos). O número representa um aumento de 7,4% em relação ao mesmo período de 2022, quando 108 vítimas foram mortas de janeiro a março.
Para especialistas ouvidos pela Ponte, as declarações de Guilherme Derrite, o primeiro policial a ocupar a cadeira de secretário de Segurança Pública desde a redemocratização, é uma das hipóteses que podem ter influenciado o índice.
Coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, Rafael Rocha destaca que o período ainda é incipiente para uma análise mais profunda sobre o índice, mas destaca que o governo ainda não apresentou “um elemento concreto de um fortalecimento em termos de ações de controle externo das polícias nem um enfraquecimento da estrutura policial”, mas uma mudança no campo discursivo. “É um novo secretário, ex-policial da Rota [Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, tropa de elite da PM], que tem um histórico de falas que promoviam a violência policial e isso pode ter um efeito, sim”, avalia.
Derrite já disse à imprensa que se arrependia da declaração que deu quando ainda era um tenente da ativa na PM de que todo policial deveria ter pelo menos três mortes no currículo, áudio que foi revelado pela Ponte em 2015, e garantiu que não estimularia o confronto durante a divulgação dos dados de janeiro. Na época, ainda assegurou que a gestão se preocupava “com todo e qualquer homicídio”. Mas outras afirmações e posicionamentos indicam o contrário.
A mais recente delas foi dada em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, na semana passada, de que a polícia não é institucionalmente racista e que faz abordagens de forma “técnica”, contrariando dados sobre abordagens e o debate de perfilamento racial.
No início do ano, o secretário também declarou, em entrevista a uma rádio, que o programa de câmeras nas fardas da PM seria revisto. Com a repercussão, o governador o contradisse, garantindo que o projeto seria mantido. A revisão do programa de câmeras foi uma bandeira sustentada por Tarcísio ainda na campanha eleitoral de 2022.
Outra situação foi quando Derrite declarou, em fevereiro, que nenhum policial da Rota seria afastado após a Ouvidoria das Polícias solicitar o afastamento dos PMs que mataram um homem suspeito de assalto e feriram uma mulher que passava pelo local, na zona sul da capital. Vídeos de parte da ação mostram os policiais atirando no rapaz de 20 anos já caído no chão. Os PMs alegam que ele tentou disparar contra eles. Na ocasião, especialistas ouvidos pela Ponte avaliaram que a posição dele não condizia com a postura de um secretário que preze por uma apuração técnica do caso.
“Existe uma mudança no discurso político da gestão que é complicado porque, se estamos inocentando os policiais antes mesmo de investigar, essa demanda por investigação caso a caso está sendo atropelada por uma legitimação de uma atividade que não necessariamente está condizente com os padrões estabelecidos pela legalidade”, afirma Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Dentre os casos, as mortes praticadas por policiais na folga evidenciam o maior aumento: 23%, quando subiram de 26 para 32. À Folha, o major Rodrigo Vilardi, da Coordenadoria de Políticas de Segurança Pública e Defesa Social da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), justificou que os policiais poderiam estar reagindo mais aos roubos, que aumentaram 7% no trimestre. Esse tipo de argumento já foi usado em governos anteriores.
Os pesquisadores apontam que são necessárias mais informações precisas para fazer uma correlação. “É o policial que está sendo vítima de um assalto ou está presenciando uma tentativa de assalto? Em que medida isso acontece em ações em que o policial estava fazendo bico?”, questiona Rafael Rocha. “A gente sabe que isso [bico] acontece, são policiais que têm um outro trabalho, embora isso não seja legalmente permitido, e se envolvem nesse tipo de ocorrência porque poderia estar presenciando um assalto numa padaria que ele não estava passando, mas trabalhando como segurança”, prossegue.
Rafael Rocha também aponta que essa ligação precisa ser medida sobre o quanto representaria no número de mortes, já que, em 2020, o cenário era diferente. “No momento mais agudo da pandemia e do isolamento social, os roubos caíram vertiginosamente e a letalidade policial subiu. O primeiro semestre de 2020 desmancha essa justificativa, pelo menos no caso dos policiais em serviço”, explica.
Em reportagem de fevereiro do ano passado, a pesquisadora Jacqueline Sinhoretto, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), também indicou que a tese de que quanto mais os roubos aumentam, mais a polícia entra em confronto não necessariamente se sustenta. Segundo ela, o investimento praticamente único em policiamento ostensivo aumenta a exposição desses policiais nas ruas, mas a proporção entre mortes de policiais e de civis mortos em ações da polícia mostra que a conta não fecha. No decorrer dos anos, o número de policiais mortos em São Paulo foi caindo enquanto a letalidade subia.
Essa é uma das variáveis para verificar se as mortes pelas polícias são consideradas excessivas ou não. A Ponte não publicou gráfico sobre as mortes de policiais no trimestre pois as corregedorias ainda não haviam disponibilizado os dados detalhados de março. No primeiro bimestre deste ano, quatro policiais foram mortos (durante a folga) enquanto cinco (sendo três fora de serviço) foram assassinados no mesmo período de 2022.
Outro mecanismo para mensurar a violência policial é a proporção com os homicídios dolosos. Estudos do sociólogo Ignacio Cano indicam que o ideal é a proporção de 10% de mortes pelas polícias no total de homicídios, enquanto o pesquisador Paul Chevigny sugere que índice maior de 7% é considerado abusivo.
No primeiro trimestre de 2023, as mortes praticadas pelas polícias equivaleram a 13,3% do total de vítimas de homicídios. Já no ano passado, representaram 12,7% de janeiro a março.
Já os homicídios dolosos variaram de 742 para 755, ou seja, um aumento 1,72%, e o índice do primeiro trimestre de cada ano desde 2018 marca uma certa estabilidade. Para Rafael Rocha, do Sou da Paz, ainda existem dinâmicas que o Estado não conseguiu evitar. “Os homicídios de disputas [de grupos] criminais começam a reduzir e o que a gente vê são ações do crime organizado, como tribunal do crime, execuções em que desovam a vítima em um outro lugar; e crimes mais voltados às relações cotidianas, crime de feminicídio, um crime entre vizinhos”, exemplifica. “Então, não acredito que chegamos a um platô, mas a uma dificuldade que a política pública tem de atuar [pela prevenção]”, analisa.
Dennis Pacheco, do FBSP, avalia que as políticas públicas implementadas desde os anos 2000 pelo Estado surtiram efeito sobre a redução dos casos, mas a facção Primeiro Comando da Capital (PCC) também tem influência ao ter criado uma hegemonia que encerrou as disputas de grupos rivais em São Paulo. “A questão dos homicídios é bem complexa porque temos dois grandes atores: de um lado, as políticas estatais e de outro, as ‘políticas’ criminais de segurança”, afirma. “A regulação da ‘agência’ PCC estabelece regras específicas que vigoram em intensidades específicas em cada território para impedir os ciclos de vingança e o cometimento de homicídios ao léu”.
Ele enfatiza que ao mesmo tempo em que os casos de homicídios decresceram desde 2000, a letalidade policial fez o movimento contrário. “Isso é muito preocupante e espero que a gente não volte para esse cenário diante de um caminho que foi muito difícil de construir para sair dele. Se a gente teve uma estabilização dos homicídios, e óbvio a perspectiva é sempre manter em redução, mas não dá para investir em outro problema, que é o da letalidade policial”, critica.
Além disso, a população negra é a maioria das vítimas tanto da letalidade policial quanto das mortes violentas decorrentes de homicídio, latrocínio e lesão corporal seguida de morte. “Falar em política de prevenção à violência letal significa falar em produção de políticas focadas territorialmente, racialmente, em termos de faixa etária, justamente porque tem um público muito específico dessas produções de morte na cidade e no estado”, sinaliza Pacheco.
Rafael Rocha, do Sou da Paz, também destaca que o governo precisa reconhecer problemas estruturais para avançar na redução da letalidade. “Dizer ‘está tudo bem, os policiais só estão reagindo’ passa uma mensagem muito ruim para os policiais que estão na rua porque passa uma imagem de que a letalidade policial talvez não seja um ponto tão central como foi nos últimos dois anos e meio”, critica.
O que diz o governo
Procurada pela Ponte sobre as estatísticas, a Fator F, assessoria de imprensa terceirizada da Secretaria da Segurança Pública, encaminhou a seguinte nota:
A SSP esclarece que as mortes decorrentes de intervenção policial ocorridas em serviço não devem ser equiparadas às MDIPs em folga porque têm dinâmicas diferentes. São diversas as situações em que o policial de folga pode intervir. Por exemplo, quando os agentes são vítimas e atuam em sua defesa ou na defesa de sua família, ou quando o policial age em defesa de terceiros ao ver uma ação criminosa. Já as mortes de suspeitos que ocorrem em serviço são decorrentes de ações em que os policiais estão agindo em prol da sociedade. O confronto não é uma escolha do policial, pois quando ocorre, ele é também uma vítima.
Os casos de MDIP em serviço de policiais militares e civis aumentou dois casos na comparação do primeiro trimestre deste ano com o do ano passado. Todos os casos são analisados pelas instituições policiais, rigorosamente investigados, comunicados ao Ministério Público e julgados pela Justiça. Além disso, os agentes contam com apoio de equipamentos e treinamentos constantes, além de acompanhamento psicológico.