Número de vítimas sem identificação de cor nos boletins de ocorrência explodiu a partir de 2020, após protestos antirracistas por George Floyd e Beto Freitas; em 2022, 40% dos registros não tinham esse dado
“Meu parceiro morreu”, gritava desesperado um rapaz de 19 anos caído após ele e Mateus Leonardo Santos, 20, terem sido baleados por um policial militar de folga depois de terem participado de uma tentativa de assalto na região de São Mateus, na zona leste da capital paulista, em março deste ano. Um vídeo gravado por testemunhas mostrava o jovem pedindo desculpas a Deus e solicitando uma ambulância enquanto Mateus aparece imóvel no chão, sem esboçar nenhuma reação, em que é possível ver a pele negra das pernas por baixo de uma bermuda jeans. Para o governo paulista e para a sociedade que não viu essas imagens, Mateus é um corpo sem cor, já que, assim como ele, 62 pessoas mortas pelas polícias não tinham essa informação no boletim de ocorrência de janeiro a abril de 2022. Isso representou 44,6% de 139 mortes por agentes de segurança do estado no período.
A Ponte detectou um fenômeno que vem aumentando desde dezembro de 2020: a falta de identificação de cor das vítimas nos boletins de ocorrência. Os registros analisados pela reportagem são feitos pela Polícia Civil e enviados à Secretaria da Segurança Pública, que fornece os microdados, ou seja, detalhamento de cada ocorrência, e que podem ser baixados por qualquer pessoa aqui.
Episódios marcados pela violência e altos índices de letalidade policial durante a pandemia de 2020, com o auge em abril daquele ano, sucitaram protestos contra o racismo encabeçados por movimentos negros, tanto no país quanto por casos de repercussão internacional, como o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos. Coincidência ou não, a administração do então governador João Doria (PSDB) passou a a partir de então a se destacar pela redução das mortes praticadas pelas polícias, com uma diferença de 30% na comparação de 2020 e 2021 — mas que ainda segue abusiva.
O caso de Mateus Leonardo Santos, que está sendo investigado pela Polícia Civil, não é isolado e integra o mês em que mais houve registros de cor como “não informado” desde 2013, comparando todos os meses de cada ano. De 48 mortes por intervenção policial em março de 2022, 28 não tinham dado de cor, 15 eram negras e cinco eram brancas. Ou seja, mais da metade das mortes. Em 2021, ano com a menor letalidade desde 2013, 16% de 570 vítimas não foram identificadas pela cor nas estatísticas. Para se ter uma ideia, até 2019, esse número variava entre 2% e 4%, depois passa para 5,4% em 2020.
Além do vídeo divulgado em redes sociais e noticiado pela imprensa, a reportagem só confirmou que Mateus era negro após ter acesso à íntegra dos documentos anexados ao inquérito policial, incluindo foto e uma ficha do Hospital Geral de São Mateus, para onde o jovem foi levado após ter levado três tiros: dois nas costas, perto da cintura, e outro em uma das nádegas. Um ponto que chama a atenção é que, apesar de não constar a cor de Mateus no boletim de ocorrência assinado pelo delegado Rafael Prodel e pelo escrivão Felipe de Camargo Cirne, do 69º DP (Teotônio Vilela), o inquérito contém um “extrato de qualificação das partes” feito pela própria Polícia Civil que identifica o jovem como de cor preta. Na planilha disponibilizada ao público pela secretaria, contudo, Mateus segue como “cor não informada”.
Outros casos reportados pela Ponte também foram localizados com esse problema de identificação de cor, mas com vítimas brancas: Gabriel Soldo dos Santos Silva, 19, morto por um escrivão da Polícia Civil em janeiro deste ano, na região de Cidade Tiradentes, na zona leste da capital, cuja família contesta versão de troca de tiros; e Lelis Henrique Gadioli dos Santos, 28, morto em abordagem policial em agosto de 2021, em São José dos Campos.
Para Amanda Santos, pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), historicamente existe um “apagão” de dados quando se trata da questão racial. “Existe uma negação da importância do quesito raça e cor, tanto na identificação quanto ao tratar o que significa esses problemas, já que a questão do racismo nunca foi tratada com a devida importância no campo da segurança pública, especialmente pelas instituições policiais e do sistema de justiça criminal”, analisa.
Para o sociólogo e coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz Rafael Rocha, é “estranho” a qualidade das informações publicadas pela pasta ter se “deteriorado” em tão pouco tempo. “Acredito que seja uma percepção dos atores de que aquilo não está sendo mais cobrado e que essa demanda que existiu a partir dos movimentos sociais para a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo ter mais transparência foi perdendo força, o que é engraçado porque justamente nesse momento estamos olhando mais para a violência policial, para os homicídios contra pessoas negras”, pontua. “Seguindo o senso comum, o que a gente espera seria o contrário: se a gente sai de 800 mortes em 2020 para 500 no ano passado, a perspectiva é de que esse dado fosse melhorar, com a quantidade menor de registros, o que mostra que o campo da segurança pública é complexo”.
Esse diagnóstico não se restringe às mortes por intervenção policial. Nos microdados dos homicídios dolosos de São Paulo, que são disponibilizados a partir de 2017, também houve crescimento de casos sem informação de cor das vítimas. Só os quatro primeiros meses de 2022 já superaram a soma de 2020 (183) e 2019 (126) sobre esse dado: 356 de 623 pessoas assassinadas sem cor, o que equivale 36% dos casos. O ano de 2021 foi o recorde: 530 de 2.317 mortes, ou seja, 18,6%. O mês de março também foi de destaque para esse tipo em ocorrências de homicídios dolosos: 140 de 246 assassinatos sem descrição de cor.
O setor responsável pela revisão e publicação das estatísticas é a Coordenadoria de Análise e Planejamento (CAP) da Secretaria da Segurança Pública. Em 2016, a pasta publicou a resolução 99 que regulamenta o controle de qualidade dos boletins de ocorrência registrados pelas unidades de Polícia Civil. A resolução determina que a CAP verifique nos registros se o crime ou infração indicado tem coerência com a narrativa do caso, a identificação correta das pessoas envolvidas, o preenchimento dos dados nos campos adequados e “preenchimento de dados suficientes para a qualidade da informação”.
O texto estabelece que “todos os boletins de ocorrência de Crimes Violentos de Letalidade Intencional, Morte Decorrente de Oposição à Intervenção Policial e Morte Suspeita deverão ser conferidos” e, em caso de inconsistências, a CAP deve solicitar esclarecimento à unidade policial “imediatamente”, a qual tem prazo de cinco dias úteis para responder. A coordenadoria também deve elaborar um relatório sobre a qualidade das informações para consulta posterior e, se os problemas persistirem, propor melhorias no sistema de registro, treinamento aos profissionais e encaminhar um relatório ao gabinete da secretaria para tomar medidas cabíveis.
Uma fonte da Polícia Civil disse à reportagem que esse campo de cor e raça (que também pode aparecer como “cutis”) é preenchido manualmente pelos policiais e que nunca houve uma verdadeira preocupação dos agentes em qualificar essa informação. Além disso, mesmo com a identificação do Instituto Médico Legal depois, ao fazer necropsia do corpo, não é possível editar o boletim de ocorrência emitido, apenas registrar um outro complementar se o caso tiver novas informações. Porém, não soube dizer o que poderia justificar o crescimento de vítimas sem dados de cor.
Por outro lado, Amanda Santos, da FGV, destaca que a redução da letalidade policial ou de outras ocorrências de mortes violentas não simboliza necessariamente que a cor das vítimas alvo passou a ser discutida e que o aumento de “não informados” pode indicar uma sub-representação. “Embora a gente veja que 2021 foi um ano em que o índice total de morte decorrente de intervenção policial diminuiu, que pode ser reflexo da pandemia, mas também de recentes políticas implementadas como a questão das câmeras nas fardas dos policiais e a maior pressão que a sociedade civil tem feito sobre a polícia como um todo, em especial a PM, estejam contribuindo com a redução dos índices, isso não significa que o racismo é o cerne da discussão das polícias ou no campo da segurança pública como um todo porque esse campo de raça e cor ‘não informado’ pode, inclusive, nos ajudar a demonstrar que ou as polícias não estão totalmente preparadas para lidar com registro dessas informações ou as instituições não estão sendo obrigadas e preparadas a fazer essa coleta”, critica.
Os pesquisadores enfatizam que a ausência de informações qualificadas influenciam na elaboração de políticas públicas. “É uma barreira para que a gente possa olhar a dinâmica da violência letal em São Paulo, para que possa estudar o perfil dos homicídios, então é difícil pensar em política pública, em formas de pressão da sociedade quando não tem sequer o dado”, aponta Rafael Rocha, do Sou da Paz. “A pauta se torna outra: vira a exigência pelo dado e mais uma demanda que é aberta para que as políticas públicas sejam baseadas em dados.”
O que diz o governo
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública a respeito dos dados e também solicitou entrevista com algum(a) representante da CAP. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu os questionamentos abaixo, e enviou nota apenas mencionando estudos de outras instituições com base nos números da secretaria. “A SSP ressalta que realiza diversas ações para reduzir os números de homicídios entre todas as faixas etárias, incluindo crianças e adolescentes, independentemente de gênero ou grupo social”, declarou.
A pasta informa que, segundo o Atlas da Violência, “São Paulo é o estado mais seguro para pessoas de todas as faixas etárias, para as mulheres e para a população negra. No cenário de violência contra a juventude, grupo populacional apontado pelo relatório como o de maior risco em todo o planeta, os números de São Paulo são expressivos, em comparação com a média nacional. A taxa brasileira de homicídios ficou em 45,8 para cada 100 mil habitantes, enquanto que a paulista foi de 12,5. Nas proporções por raça/cor, os resultados apurados pelo Atlas foram semelhantes. São Paulo tem a menor taxa de homicídios de negros do Brasil, que também é significativamente menor do que a média nacional. A taxa paulista foi de 9,1 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes, enquanto que a média nacional ficou em 29,2”.
As perguntas enviadas não respondidas foram:
– Ao que a SSP atribui esse aumento de proporção de vítimas sem informação de cor/raça nos boletins de ocorrência?
– Quantas pessoas integram a Coordenadoria de Análise e Planejamento (CAP) da SSP? Todos são policiais? Quais as qualificações?
– Houve alguma mudança nesse período dentro da CAP?
– Qual a importância do preenchimento ou não de dados sobre a cor/raça das vítimas? Cabe ao policial na delegacia fazer essa declaração de forma manual?
– Qual a orientação da CAP sobre o preenchimento de cor/raça no Registro Digital de Ocorrências da Polícia Civil (RDO)?
– De que forma ocorre a classificação nos RDOs? O delegado aguarda a Polícia Científica informar a cor da vítima quando da realização de perícia, algum parente informa a declaração da vítima ou cabe a quem preenche o RDO fazer essa leitura visual?
– Percebemos que até 2017, os dados de mortes decorrentes de intervenção policial sem cor das vítimas eram colocados como “outros” e, a partir de janeiro de 2018, passa a constar como “não informado”. Essa mudança tem relação com a Resolução SSP-99, de 23-9-2016?
*Reportagem atualizada às 11h33, de 28/6/2022, para incluir resposta da SSP.
Esta reportagem foi produzida no treinamento em jornalismo de dados oferecido pela Lagom Data, como parte do programa Acelerando a Transformação Digital, uma parceria entre o International Center for Journalists (ICFJ), a Associação de Jornalismo Digital (Ajor) e o Meta Journalism Project.