MP abre inquérito para apurar desmonte de programa anticrack em SP

    Hotéis que integram o antigo “De Braços Abertos” estavam irregulares; para Ministério Público, prefeitura erra ao mandar dependentes para locais onde não há tratamento ou mesmo para a rua, já que há centros de acolhida sem vagas

    Interior de um dos quartos do Hotel Impacto | Foto: Jeniffer Mendonça/ponte.org

    A Promotoria de Justiça de Direitos Humanos enviou uma recomendação à Prefeitura e às secretarias municipais de Saúde e Assistência e Desenvolvimento Social, na última sexta-feira (2/2), em que aponta que “o repentino esvaziamento dos hotéis, sem qualquer diálogo prévio com os usuários, e a acomodação deles em locais em que não lhes garanta o sentido e a natureza de moradia põem a perder todas as duras e difíceis conquistas obtidas por cada um dos usuários, instigando-os eventualmente a voltarem ao uso abusivo das drogas ou A violenta situação e frequência às cenas de uso nas vias públicas”.

    A abertura do procedimento se deu após trabalhadores de um dos hotéis entrarem com uma representação à promotoria denunciando que “os usuários do Hotel Santa Maria seriam encaminhados a Centros de Acolhida, sem qualquer garantia de permanência nas atividades de trabalho e sem qualquer atenção às suas condições individuais, relacionadas ao histórico pessoal de cada qual deles”, segundo o documento. O Hotel Santa Maria, localizado na Alameda Barão de Limeira, nº 612, foi o primeiro a ser desocupado, no dia 26 de janeiro, e abrigava 28 pessoas no centro da capital.

    “Nós entendemos que é um retrocesso e uma grave violação transferir pessoas em tratamento para centros temporários, misturados com outras que estão em condições diferentes, desconsiderando os eixos do Programa ‘De Braços Abertos’, como a proximidade do local de trabalho e a garantia de um espaço de moradia”, afirmou o promotor Eduardo Ferreira Valerio, um dos autores da recomendação, em entrevista à Ponte.

    Gestão tucana remove dependentes de programa anticrack | Foto por Sérgio Silva/ponte.org

    O documento prevê que a gestão atual se manifeste pela adoção das sete solicitações em dez dias, já que manteve o “De Braços Abertos” desde o ano passado junto ao Programa “Redenção”. Dentre elas, estão que as remoções “que se façam necessárias” devem estar baseadas em um estudo minucioso das condições dos dependentes químicos, com “amplo e aberto diálogo com eles”; que os beneficiários estejam alojados em locais onde possam manter e ter acesso aos seus pertences pessoais e que sejam próximos aos locais de trabalho e estudo; que na “hipótese excepcional de acomodação em centro de acolhida, que lhes sejam asseguradas vagas 24 horas e jamais em companhia de usuários que não sejam do Programa Redenção e que disponham apenas de vagas 16 horas”.

    Em nota, a SMADS (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social) informou que recebeu as recomendações na segunda-feira (5/2) e que “responderá no prazo todos os questionamentos do MP. Reitera que todas as transferências ocorreram visando o bem estar e melhores condições de tratamento para os pacientes, que viviam em situação precária nos hotéis conveniados ao DBA” [De Braços Abertos].

    Não há vagas

    No dia 26 de janeiro, a Prefeitura iniciou a retirada dos beneficiários do Programa ‘De Braços Abertos’  dos hotéis conveniados ao projeto criado na gestão Fernando Haddad (PT). De acordo com a pasta, a ação integra o Programa Redenção, lançado em maio de 2017, para que os dependentes químicos sejam transferidos aos centros de acolhimento 24h e Repúblicas da Jornada de Autonomia.

    Na quinta-feira passada (1/2), o Hotel Impacto, localizado na Rua General Osório, nº 404, foi o segundo a ser desocupado. A Ponte acompanhou a ação, que começou por volta das 8h. A rua não foi interditada como no hotel anterior e havia  três viaturas da GCM (Guarda Civil Metropolitana) estacionadas no cruzamento com a Avenida Rio Branco.

    Moradores do Hotel Impacto deixam o prédio | Foto por Sérgio Silva/ponte.org

    A reportagem viu pelo menos dez pessoas saírem pacificamente do prédio. Uma delas, uma senhora de 68 anos, entrou na van da Prefeitura aos prantos, dizendo não saber para onde ia e que estava no programa há um ano, trabalhando com artesanato. Um casal de catadores, que chegou a também ser levado por outro veículo, retornou 20 minutos depois revoltado. “A gente chegou lá [centro de acolhimento] e não tinha vaga”, revelou Maria Aparecida.

    “Eu tinha meu barraco e daí me trouxeram para o hotel. Agora, querer me tirar para colocar na rua, não dá”, complementou Paulo, companheiro de Maria.

    O chefe de gabinete da SMADS, José Castro, informou que tinha sido um “erro administrativo” a transferência do casal para o centro Autonomia em Foco e que os dois seriam encaminhados ao CTA Santana. De acordo com Castro, “grande maioria das pessoas do Hotel Impacto se organizou para que houvesse a construção de um consenso e de um respaldo de que [a saída] fosse de maneira tranquila pelo fato de todos quererem ir para outros equipamentos”.

    Vans da assistência social da prefeitura para traslado de moradores | Foto: Sérgio Silva/ponte.org

    No entanto, fontes de dentro da prefeitura informaram à Ponte que a operação aconteceria na sexta-feira (3/2), com a presença da Polícia Militar e da GCM, mas que foi feito um acordo para que não tivesse violência e, por isso, a retirada dos beneficiários aconteceu no dia anterior.

    Questionado sobre ainda ter pessoas que estavam resistindo à saída, o chefe de gabinete disse que “foi um número infinitamente menor” e que “as pessoas em situação de drogadição, o comportamento alterna bastante durante o dia, mudam de opinião, voltam, por isso a gente faz [a retirada] com tanto cuidado, dando o tempo que é necessário”.

    A Ponte não teve acesso ao interior do prédio, já que às 13h, ainda haviam moradores dentro do local e a imprensa só poderia adentrar quando o último fosse retirado do hotel. A assessoria de imprensa da Prefeitura, que estava presente, informou que a partir daquele momento a autorização da entrada seria de responsabilidade do dono do imóvel, que não era possível saber quando ele apareceria, e que os assistentes sociais permaneceriam atendendo os dependentes químicos.

    A reportagem permaneceu no local até às 16h30, quando representantes da administração municipal já tinham se retirado. Por volta das 15h30, um homem que se disse apenas “responsável pelo imóvel”, colou uma faixa escrita “Fechado para reforma”. Questionado sobre a conduta, já que alguns moradores ainda permaneciam dentro do prédio, o homem apenas descolou o aviso e não quis se manifestar. Minutos depois outro colou novamente a faixa, mas também não quis se pronunciar.

    No dia seguinte, os outros moradores foram retirados. O local abrigava 38 pessoas e o chefe de gabinete informou que elas seriam encaminhadas “ao equipamento mais adequado de acordo com o estágio de autonomia de cada pessoa”.

    Na semana anterior, foi a vez do Hotel Santa Maria, cuja desocupação foi avisada dois dias antes. Às 7h, o quarteirão foi isolado por viaturas da IOPE (Inspetoria Regional de Operações Especiais) e Canil  da GCM. Segundo a SMADS, 29 pessoas moravam no local, sendo que “6 não estavam no hotel no momento da chegada das equipes, 15 foram encaminhados para equipamentos sociais da Prefeitura, três recusaram o atendimento e dois se dirigiram a outro hotel social por conta própria. Os que aceitaram atendimento foram encaminhados para os CTAs Santana e Prates, para as Repúblicas Santana e Santa Cecília e um idoso acabou levado para a Morada São João.”

    O local foi interditado, já que, segundo laudo da Covisa, órgão de vigilância sanitária da secretaria municipal de Saúde, o local estava em condições insalubres e não apresentava certificado de controle de pragas, certificado de limpeza de caixa d’água, alvará do Corpo de Bombeiros e contrato de serviços terceirizados.

    O Sindicato dos Psicólogos de São Paulo publicou uma nota criticando “a forma com que a gestão do prefeito João Doria (PSDB) vem tratando a população com sofrimento psíquico decorrente do uso de álcool e outras drogas, principalmente na região conhecida como cracolândia”. No texto, relembram os episódios que marcaram o ano passado inteiro, com atuação da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar, que, segundo a entidade, “agiu com truculência na cracolândia, que só fez espalhar os usuários pelas ruas adjacentes”. Para se ter uma ideia, de maio a dezembro do ano passado, uma ação por semana com bombas de gás aconteceu na região, segundo dados da LAI (Lei de Acesso a Informação).

    Ainda na nota, o sindicato aponta que “66 pessoas, incluindo crianças, nas ruas da cidade e foi tomada sem nenhum diálogo com os envolvidos. O acolhimento nos CTAs (Centro de Acolhimento Temporário) tampouco é satisfatório, já que as pessoas se queixam de falta de vagas ou de não poder ficar com seus objetos pessoais. Ou seja, a prefeitura está negando a elas um direito humano básico: o direito à moradia”.

    Os dois prédios desocupados na semana passada eram administrados pela organização social IABAS (Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde). Segundo a secretaria municipal de Saúde, a OS (Organização Social) fará parte do Programa Redenção, uma vez que gerencia outros equipamentos de saúde, tais como “Unidades Básicas de Saúde (UBS); Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); Assistência Médica Ambulatorial (AMA); Pronto-Socorro Municipal da Barra Funda gerenciados por essa OSS, que fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)”.

    Em nota, a pasta também disse que “o tratamento de saúde dos beneficiários foi intensificado nos equipamentos da SMADS – Centros Temporários de Acolhimento, Repúblicas e Centros de Acolhimento para famílias. Não existe segregação dos dependentes químicos nesses locais, uma vez que a SMADS preza pelo cumprimento das normas estabelecidas no SUAS, garantindo atendimento individualizado por meio do Plano Individual Atendimento (PIA)”.

     

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