MP e juíza ignoram ilegalidades e jovens são condenados por ‘golpe do Pix’

Lucas Mirtzrael e Samuel Mohamed estão presos desde janeiro e foram sentenciados a mais de 10 anos de prisão; câmeras nas fardas de PMs mostram xingamentos, ameaça, reconhecimento irregular e prisão “para averiguação”

O Tribunal de Justiça de São Paulo condenou, na segunda-feira (29/5), a mais de 10 anos de prisão em regime fechado Lucas Mitrzrael Silva de Oliveira, 26 anos, e Samuel Mohamed, 27, por roubo e extorsão.

Os jovens negros estão presos desde janeiro quando correram de uma abordagem policial e, por usarem bonés, foram apontados como participantes de um “golpe do Pix” contra um homem que foi vítima de um falso encontro na região da Brasilândia, na zona norte da capital paulista.

Na sentença, a juíza Fernanda Alonso de Almeida argumentou que os policiais militares que prenderam os rapazes não tinham razões para mentir e considerou que os depoimentos deles “merecem crédito”, foram “harmônicos” e justificam uma condenação. Ela sustenta que as imagens das câmeras nas fardas dos PMs “denotam a veracidade e fideidignidade (sic) das narrativas prestadas, não deixando dúvidas sobre a participação dos réus na empreitada”.

Ela também aponta que as imagens de câmeras de segurança coletadas pela família que mostram os jovens indo até uma adega, no intervalo de 19h24 e 20h57, não foram suficientes para provar a inocência porque registraram apenas momentos anteriores ao crime, que teria acontecido às 21h20, e que a vítima disse que houve “rodízio” entre os seis criminosos que a renderam.

Mesmo sem terem sido reconhecidos pela vítima e sem portarem nenhum produto de crime, Lucas foi condenado a 12 anos e oito meses de prisão, além de pagamento de 26 dias-multa, e Samuel foi condenado a 14 anos, nove meses e 10 dias de prisão e pagamento de 29 dias-multa.

Contudo, tanto o judiciário quanto o Ministério Público, além da própria Polícia Civil, ignoraram ilegalidades cometidas pelos policiais militares durante a abordagem à dupla. As imagens das câmeras nas fardas dos PMs, que a magistrada cita, mostram abordagem desrespeitosa com xingamentos, PMs fotografando os jovens e enviando as fotos para que a vítima os reconhecesse antes de ir à delegacia, ameaça de tiro enquanto algemam os rapazes e prisão “para averiguação”, algo que é proibido desde a Constituição Federal de 1988.

A juíza solicitou as imagens das câmeras nas fardas dos PMs em 20 de março, mais de um mês e meio depois das prisões. Uma pasta com sete arquivos, sendo seis deles com uma média de 50 minutos e um com um minuto e meio, foi anexada pela corporação aos autos em 12 de abril. Quatro desses arquivos são identificados como “BO” e “flagrante” e outros com a identificação do aparelho. A Ponte selecionou os trechos com as ilegalidades e irregularidades, já que o material bruto dá mais de cinco horas de exibição.

Em três vídeos, os policiais não gravaram os áudios das câmeras. As imagens gravam ininterruptamente, mas o áudio depende de acionamento do policial para delimitar uma situação que seja de interesse policial, ou seja, qualquer interação do policial com o público. Essa interação pode ser desde uma revista a uma perseguição.

No inquérito, o sargento Carlos Eduardo da Cruz Raimundo e o cabo Wagner Oliveira Lima, ambos da Força Tática do 9º BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano), disseram que haviam sido acionados para um caso de roubo com “retenção de vítima” na Avenida Deputado Cantídio Sampaio. Quando estavam seguindo pela Rua do Mestre viram o veículo preto parado na rua e o momento em que um “indivíduo” teria saído do carro e fugido ao ver a viatura. Outras quatro pessoas também teriam desembarcado e corrido para uma viela em direção à Rua Manoel Aquilino dos Santos.

A câmera do sargento nesse momento está sem o áudio acionado e, por estar sentado dentro da viatura, a imagem não alcança o campo de visão dele. Por isso, não é possível ver os suspeitos saindo do veículo e nem quantos seriam quando ele passa a correr. Ele só liga o áudio da câmera quando policiais de outra viatura abordaram Samuel e Lucas.

Na pasta das imagens, não está disponível a gravação do cabo Wagner Oliveira Lima no momento em que ele também persegue os criminosos. A gravação dele, incluindo o áudio, só é disponível a partir do momento que ele o colega, sargento Cruz, encontram a outra equipe.

Os policiais afirmaram que “dois dos suspeitos, ambos trajando boné, tentaram sem sucesso se esconder em uma oficina mecânica”, mas foram interceptados pela equipe identificada apenas como a do tenente França e do sargento Fernandes, que foram dar apoio e fizeram um cerco. Esses dois abordados são Samuel e Lucas.

Tanto no inquérito quanto nas gravações das câmeras, os rapazes afirmaram que correram quando viram a viatura porque estavam fumando maconha e ficaram com receio de serem presos. Samuel chega a dar algo que parece maconha na mão do sargento Fernandes para comprovar. Essa droga não foi apreendida e Samuel fala no vídeo que o policial a jogou no chão.

Nas imagens das câmeras do tenente França e do sargento Fernandes, que gravam os áudios, é possível ouvir o aviso do roubo pelo rádio da viatura e o momento em que, na Rua Manoel Aquilino dos Santos, eles veem Samuel e Lucas correndo e resolvem abordá-los. Assim que sai da viatura, o tenente França xinga Lucas de “arrombado”, questiona onde está a vítima e o manda “tomar no cu” quando o jovem diz que tinha saído de casa. É dever do servidor público tratar todo e qualquer cidadão com respeito.

Em outro momento, quando o cabo Wagner e o sargento Cruz chegam ao local, o cabo pergunta ao colega se a câmera do celular dele é boa para fazer foto e pede para que fotografe Samuel enquanto ele fotografa Lucas para enviar as fotos aos policiais que estão com a vítima do golpe.

A prática, além de informal e de não ter sido mencionada no boletim de ocorrência nem no inquérito, viola o artigo 226 do Código de Processo Penal, que estabelece que a vítima descreva as características físicas do suspeito e depois lhe sejam apresentadas pessoas ou fotos de pessoas de perfis semelhantes para que ela faça o reconhecimento em delegacia ou em juízo. Apresentar fotografias e dar qualquer tipo de informação prévia sobre pessoas que tenham sido presas são meios que induzem e contaminam o reconhecimento.

Câmera da farda do cabo Wagner Oliveira no momento em que ele fotografa Samuel Mohamed | Foto: reprodução/Axon body/PMESP

A vítima, que vamos chamar de Anderson, disse tanto aos policiais quanto na delegacia que não tinha condições de reconhecer ninguém “pois afirmou que não conseguiu visualizar seus rostos devido às baixas condições de luminosidade e por ter permanecido com a cabeça abaixada quase que o tempo todo”. Ele descreveu que pelo menos três assaltantes usavam bonés com máscara e moletom com capuz, e os outros três usavam apenas máscara, sem boné nem capuz.

No termo de audiência onde foi redigida a sentença de condenação, os policiais dizem que Samuel e Lucas estariam com máscaras faciais, daquelas usadas contra a Covid-19, mas nem nas imagens das câmeras nem no inquérito aparece uso de máscaras por eles ou apreensão desses objetos.

Em outro trecho, o sargento Cruz conversa com o tenente França quando eles decidem levar os jovens para o 72º DP (Vila Penteado) e pergunta se deve usar algemas. O tenente França pergunta: “você sentiu que teve risco de fuga?”. Cruz responde que sim, pois a dupla correu na abordagem. O tenente França afirma que não tem certeza se os dois participaram da extorsão, mas decidem levar mesmo assim.

O cabo Wagner Oliveira, quando vai algemar Lucas, o ameaça quando ele questiona a ida à delegacia: “não cisca, não, se não eu dou um tiro no meio da suas costas”. Lucas também questiona o motivo da detenção, que é direito de toda pessoa, mas o policial não responde.

Tanto o tenente França quanto o sargento Fernandes encerram a gravação do áudio de suas câmeras das fardas informando que a detenção dos dois se deu por fundada suspeita e que eles seriam conduzidos para averiguação. Desde a Constituição Federal de 1988, uma pessoa só pode ser presa em flagrante ou por ordem judicial.

Oliveira também repete o reconhecimento informal e irregular quando chega à delegacia. Na porta, ele é avisado por outro PM que a vítima de um outro crime, uma tentativa de roubo que aconteceu na mesma região horas antes, estava ali para registrar boletim de ocorrência. O cabo pergunta a essa segunda vítima, que vamos chamar de Paulo, se ela viu o rosto dos assaltantes, que confirma. Em seguida, o policial mostra as fotos de Samuel e Lucas, mas Paulo não os reconhece, dizendo que um deles usava moletom e calça.

Os policiais que prenderam um terceiro rapaz, de 20 anos, numa rua próxima, que estava com o celular da vítima Anderson, também gravaram a abordagem sem acionar o áudio do aparelho.

No 72º DP, como a Ponte mostrou, o delegado Antonio Toshio Nishida Júnior não solicitou as imagens das câmeras das fardas e considerou que Lucas e Samuel tinham praticado os crimes porque usavam bonés. “Muito embora não tenham sido reconhecidos em solo policial, a vítima descreve que três dos roubadores trajavam bonés (os indiciados todos usavam tal indumentária), bem como consta que os militares estaduais perseguiram os capturados ininterruptamente sem perdê-los de vista”, escreveu, ao entender que a fundada suspeita se configurava e que a prisão foi em flagrante.

Porém, o argumento de que os policiais perseguiram os assaltantes sem perdê-los de vista também não se sustenta pois a equipe que encontrou a vítima Anderson é diferente da que abordou Lucas, Samuel e o terceiro rapaz de 20 anos.

O promotor Paulo Henrique Castex acusou os três por roubo com agravantes de ser praticado por mais de duas pessoas, com uso de violência ou grave ameaça com emprego de arma; e extorsão, também com esses agravantes, além de ser cometido por meio de restrição de liberdade da vítima. Os dois crimes têm penas que variam de quatro a 10 anos, mas o tempo pode ser maior devido aos agravantes, que acabaram acatados pela juíza Fermanda Alonso.

À esquerda, Lucas Mirtzrael, à direita, Samuel Mohamed, de 26 e 27 anos, respectivamente | Fotos: arquivo pessoal

Para Maíra Zapater, professora de direito penal da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o entendimento de que Samuel e Lucas foram presos em flagrante é contestável. “Aquele flagrante poderia ser considerado ilegal por conta da forma como foi feita a abordagem, por ter sido desrespeitosa, o reconhecimento, a questão da foto, e isso poderia ser objeto de um habeas corpus para relaxar o flagrante [pedido para que os jovens respondessem em liberdade] e essas provas seriam discutidas em juízo [na fase de processo]”, analisa. “O problema que a gente tem é que em juízo esses argumentos não foram trazidos”.

“O que esse caso mostra é que a câmera na farda do policial permite ter acesso a uma situação de ilegalidade, mas ela sozinha não faz o trabalho de toda uma cadeia de atos: do delegado de polícia na hora de lavrar o flagrante, do Ministério Público na hora de oferecer a denúncia e do juiz que não repassa isso para o processo”, critica a professora.

Ela aponta que a falta que reconhecimento da ilegalidade na abordagem faz com que esse tipo de prova perca o valor, já que deveria ter sido questionada no início de tudo, quanto os jovens foram detidos, embora tanto a promotoria quanto a juíza poderiam ter feito contestações. “Se o flagrante é ilegal, isso implica que a pessoa não pode ser presa pelo flagrante, mas ainda pode haver a investigação do crime. Ainda que a juíza tivesse se insurgido sobre essa ilegalidade, isso não necessariamente, por essa razão, seria um impeditivo para a condenação”, explica. “A questão é que o sistema de justiça criminal e a legislação são feitas para condenar”.

Zapater também avalia que caberia uma investigação contra os policiais por abuso de autoridade. “Uma pessoa culpada ou não pelo crime tem direito de ser abordada por um policial sem que ele pratique abuso de autoridade”, afirma.

As famílias de Lucas e Samuel disseram à Ponte que vão recorrer da sentença. “Sinto muito, de todo o meu coração, pelo que a vítima passou na mão dos verdadeiros bandidos, o trauma que fica, mas o meu filho não tem nada a ver com isso”, lamentou Adailza Macedo, 45, mãe de Lucas. “Eu tinha uma noção que a justiça do nosso país é falha, agora tenho a certeza porque sinto na pele. O racismo também.”

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Ela disse que denunciou os policiais à Corregedoria da PM. “Os policias foram totalmente abusivos, com xingamentos, palavras de baixo calão, tentando intimidar ele [Lucas] para falar o que eles queriam ouvir. Ele foi ameaçado de morte por um policial mesmo estando algemado”, critica. “O Lucas disse que estava em choque e com muito medo.”

O que diz a polícia

A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública sobre as gravações e respectivas ilegalidades bem como se os policiais que não acionaram os áudios das câmeras podem ser submetidos a alguma penalidade e se a denúncia de Adailza está sendo apurada pela Corregedoria. Até a publicação, não houve resposta.

O que diz o Ministério Público

Questionada sobre as ilegalidades apontadas nas gravações e se as imagens foram analisadas pela promotora Michele Demico Camargo, a assessoria do órgão encaminhou a seguinte nota:

Os vídeos foram analisados. Os réus já foram condenados, com base nas provas dos autos, seguras e consistentes.

O que diz o Tribunal de Justiça

A reportagem também perguntou à assessoria sobre os pontos elencados, que enviou a resposta:

O Tribunal de Justiça não emite nota sobre questões jurisdicionais. Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente.

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