Ministério Público do Rio não investiga execuções praticadas por policiais, diz Human Rights Watch

    Relatório aponta o órgão como o maior responsável pela manutenção da cultura de mortes causadas pela polícia fluminense ao arquivar casos mesmo quando há evidências de homicídio

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    Foto: Carlos Cout / Reprodução site Human Rights Watch (www.hrw.org)

    Somente na última década, a polícia matou 8.000 pessoas no estado do Rio de Janeiro, sendo 645 somente no ano de 2015, segundo o relatório “O bom policial tem medo: os custos da violência policial no Rio de Janeiro”, da Human Rights Watch, divulgado hoje (07/07), que aponta ainda que três quartos das pessoas executadas por policiais são negros.

    “Os policiais responsáveis por casos de uso ilegal da força letal e acobertamentos no estado do Rio de Janeiro raramente são levados à justiça”, diz o estudo, que chama de “lamentavelmente inadequada” a condução das investigações realizadas pela Polícia Civil e destaca que “a responsabilidade de acabar com a impunidade existente nesses casos é, em última instância, do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, que tem competência constitucional para fiscalizar o trabalho da Polícia Civil, além de autoridade para conduzir suas próprias investigações”.

    O pesquisador da Human Rights Watch para o Brasil, Cesar Muñoz, afirmou, em coletiva de imprensa realizada nesta quinta-feira, que “há má vontade do Ministério Público em investigar esses casos e que normalmente as investigações só avançam quando há interesse social e pressão por parte da mídia”.

    Outro ponto do estudo “O bom policial tem medo” trata  da intrínseca relação da corrupção policial com o tráfico de drogas. O recebimento do chamado “arrego” aparece nos relatos dos mais de 30 policiais entrevistados pelos pesquisadores da ONG. Relatos constantes no relatório evidenciam condescendência dos superiores, o que mostra que a corrupção na atividade policial, mais do que naturalizada, é vista com aprovação por agentes que ocupam outros degraus da hierarquia no sistema da segurança pública.

    Em um dos depoimentos, o policial militar Danilo (nome fictício) conta que o batalhão onde trabalhou por anos chegava a recolher R$ 120 mil semanais de traficantes em troca de não incomodá-los com operações em dezenas de favelas. Em outro caso, o PM João falou que traficantes pagavam R$ 2 mil por dia aos policiais de plantão aos finais de semana em uma comunidade na zona norte do Rio.

    O policial Danilo afirmou que matar bandido era exigido como bom resultado pelos superiores e que ouvia coisas do tipo “Não existe vivo com fuzil”. Questionado sobre as razões que o levaram a esse círculo vicioso de corrupção, o policial disse aos pesquisadores: “Eu não denunciei por medo até de morrer, porque essas pessoas não têm escrúpulos”. Ele também temia ser morto por policiais corruptos caso deixasse de levar dinheiro do tráfico de drogas para seus superiores. Em determinado momento, ele conseguiu a transferência para outro batalhão, mas seu medo persiste. No Rio de Janeiro, disse Danilo, “o bom policial tem medo”. Isso justificou o título do estudo.

    Indagado pela Ponte sobre a posição da HRW sobre a legalização das drogas, o diretor da Divisão das Américas da organização, Daniel Wilkinson, afirmou que “a guerra às drogas é um dos grandes problemas que nós temos, na América Latina e nos Estados Unidos”.

    “O uso de drogas não deve ser delito de nenhuma forma. A questão de controlar o tráfico é mais complexa, mas somos totalmente a favor de haver um debate e de buscar novas formas de tratar o problema”, disse ele, para quem os resultados da política de drogas implantada na América como um todo “têm sido horríveis”. “Estamos apoiando os esforços, em nível internacional, de abrir debate e permitir que os governos experimentem novas políticas, como o Uruguai e outros lugares que estão descriminalizando [o uso de drogas], e somos a favor disso”, completou.


    Projeto das UPPs desmoronou por falta de confiança na polícia, segundo HRW

    De acordo com o relatório, a falta de confiança entre a comunidade e a polícia nas favelas onde foram instaladas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) “abre espaço para a violência” e “casos de uso ilegal da força e outros abusos por parte da polícia desempenham papel central no desmoronamento do projeto” das UPPs, que “inicialmente trouxeram a diminuição da criminalidade e dos homicídios cometidos pela polícia”.

    A Ponte perguntou aos pesquisadores se eles acreditam que é possível haver uma convivência harmônica entre policiais militares de UPPs e moradores das comunidades enquanto a formação dos agentes for militarista, modelo que implica numa atuação baseada na noção de que há inimigos a serem combatidos e territórios a serem conquistados, como o tenente da PM cearense Anderson Duarte, que estuda policiamento comunitário, colocou em entrevista à Ponte meses atrás.

    “A estratégia de segurança pública no Rio de Janeiro é militar. É subir favelas, fazer operações militares e sair. Por isso nós vimos as UPPs de forma tão positiva, porque [a ideia] era mudar essa mensagem. Agora, o que não aconteceu foi uma supervisão dos casos de má conduta. Quando começou a haver casos de corrupção, abusos e execuções extrajudiciais nas UPPs, aconteceu o mesmo que com os outros casos, que foi nada. Exceto quando é um caso que sai na mídia, como o do Amarildo, e aí tem algo acontecendo. Mas na maioria das vezes não aconteceu nada e, quando a comunidade vê o policial extorquindo, roubando, ela perde a confiança”, respondeu o pesquisador sênior para o Brasil da HRW, Cesar Muñoz.

    Para ele, o conceito de que existe um inimigo a ser combatido, como se fossem “mocinhos e bandidos”, precisa ser revisto. “A mentalidade de combate é a de entrar na favela e sair. A mentalidade da UPP tem que ser a de criar uma relação de confiança com a comunidade e de cooperar [com ela]. Isso é o mais importante. Os problemas das UPPs são muito tristes”, completou o pesquisador, que afirmou, ainda, que é difícil definir uma única razão para o fracasso do projeto, pois são muitos os motivos, mas para ele, a impunidade de policiais que cometem ações criminosas é um dos principais.

    Diante da insistência da Ponte na pergunta sobre sua posição sobre a desmilitarização, ele respondeu que a HRW não tem a intenção de definir como o Brasil deve estruturar suas polícias, mas que é necessária “uma polícia que responda à sociedade, que respeite os direitos humanos e os direitos do policial, porque o código disciplinar agora não respeita os direitos do policial”.

    “A letalidade que chama a atenção dos relatórios não é contra a lei”

    Para o delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone, a atuação do Ministério Público não é omissa, como coloca a HRW. “Não é por omissão, o Ministério Público atua de forma positiva, e não negativa. Ele não deixa de exercer sua função, mas exerce sua função exigindo o arquivamento dos casos. E não é só o Ministério Público. O Poder Judiciário também tem sua participação para homologar os pedidos do MP sem questionar a fragilidade do arquivamento”, afirma.

    Segundo o delegado, a “letalidade policial não é contrária ao nosso ordenamento jurídico”, uma vez que é legitimada por promotores, magistrados, pela mídia e a sociedade quando se dirige aqueles que são considerados “inimigos”, como traficantes de drogas, porque “o Estado brasileiro trabalha com a lógica de que bandido bom é bandido morto” e tem o extermínio desses “inimigos” como política.

    “No final você ainda tem parte da sociedade aplaudindo quando essa violência é dirigida a pessoas constituídas como inimigas, que é quando se entra no debate sobre se quem morreu era inocente ou bandido. A polícia tem que legitimar sua ação violenta o tempo todo em cima da condição do morto. E aí as coisas só serão consideradas negativas quando não se consegue comprovar que o morto era um inimigo”, encerra Zaccone.

    Outro lado

    A reportagem pediu, por e-mail, um posicionamento do MPRJ sobre a afirmação da Human Rights Watch de que a instituição é omissa em relação às investigações de casos de execuções extrajudiciais praticados por policiais no estado. A assessoria de comunicação do MPRJ enviou a seguinte resposta:

    “O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) vem atuando em diversas frentes no intuito de reduzir o número de mortes decorrentes de intervenção policial e de outros delitos praticados pelos agentes de segurança.

    Entre 2010 e 2015, período mencionado no relatório do Human Rights Whatch, o MPRJ ofereceu denúncia em 278 dos 988 casos investigados pela polícia nesses seis anos, cabendo ressaltar o aumento significativo de proposituras de ações pelos membros da instituição. Foram 7 denúncias em 2010; 14 em 2011; 34 em 2012; 43 em 2013; 84 em 2014; e 96 em 2015.

    Relevante iniciativa foi a criação do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP), ocorrida em dezembro de 2015, com a incumbência de auxiliar os órgãos de execução do Ministério Público encarregados do controle externo da atividade policial, da fiscalização do sistema prisional, da tutela de direitos transindividuais relacionadas à segurança pública e da repressão aos homicídios decorrentes de intervenção policial.

    Além de outras iniciativas, o grupo vem trabalhando junto às instituições de segurança pública no fomento à capacitação permanente dos policiais militares e civis.

    No âmbito da PMERJ, estão sendo ministradas instruções, com a participação semanal de integrantes do GAESP, aos policiais militares inicialmente selecionados para o programa de capacitação, em razão de terem atuado em regiões do estado com altos números de registros de ocorrência com morte. O objetivo do programa é atingir todos os policiais que atuam no policiamento ostensivo.

    Em paralelo, o GAESP está trabalhando diretamente com as Áreas Integradas de Segurança Pública, seguindo o mesmo critério de número de mortes decorrentes de intervenção policial, com a finalidade de realizar trabalho preventivo que reduza o número dessas ocorrências.

    No campo da repressão, vem prestando auxílio aos órgãos de execução do Ministério Público que apuram as responsabilidades dos agentes públicos envolvidos nas mortes durante conflitos, atuando nos inquéritos policiais através de contato direto com a Polícia Civil”.

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