Terra que produz alimento e dignidade: há mais de 20 anos, 450 famílias produzem alimentos orgânicos no assentamento Quilombo Campo Grande, no sul de Minas Gerais
De um lado, cerca de 450 famílias em uma terra sem uso pelos donos há mais de 20 anos, que voltou a ser produtiva depois de ser ocupada pelo MST (Movimento Sem-Terra). Do outro, João Faria da Silva, um dos maiores produtores de café do Brasil, que quer arrendar os quase 3.200 hectares de terra, a chamada massa falida da Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (Capia), uma usina de cana-de-açúcar que decretou falência no final dos anos 90. Esta é a realidade do assentamento Quilombo Campo Grande, na Fazenda Ariadnópolis, em Campo do Meio, sul de Minas Gerais. A disputa acontece desde 1998.
Para a Justiça, quem tem razão é a massa falida em recuperação judicial desde 2015 e que estabeleceu o acordo com a Jodil Agropecuária e Participações Ltda, que tem em seu quadro societário João Faria. Na visão do movimento, todo esse jogo tem como objetivo final a expansão das terras e aumento de lucratividade para o empresário. No último dia 7/11, a decisão do juiz Walter Zwicker Esbaille Junior, da Vara Agrária de Minas Gerais, definiu que as famílias teriam até a quarta-feira (14/11) para saírem do local onde produzem alimentos orgânicos como café, mandioca, morango e outros cultivos.
Daniel Tyguel, presidente da Aliança em prol da APA da Pedra Branca, relata a vistoria realizada nos dias 6 e 7 . “Dá para perceber que existe uma visão de que ele está lidando com criminosos. Ele chegou com 15 viaturas, inclusive uma delas o batalhão de Choque, para verificar a área produtiva. A visita aconteceu de uma maneira ostensiva. Eles passaram 6 horas na área. A área é extremamente produtiva. São 500 toneladas de café por ano, além de outros produtos, como semente agroecológica de tomate”, explica. “Nós tivemos uma surpresa com a decisão, uma vez que o juiz esteve aqui e ele viu que a área é produtiva. Se o juiz fosse minimamente humano poderia ter avaliado que existe uma dinâmica econômica”.
A entidade presidida por Daniel faz parte ao lado do café Guaí, produzido pelos assentados no Quilombo Campo Grande, do Orgânicos Sul de Minas, de uma central de associações de produtores rurais da região.
A reportagem da Ponte chegou em Campos do Meio, por volta das 3h30 da madrugada da quarta-feira (14/11), para acompanhar a reintegração, que não ocorreu até a tarde de sexta-feira (16/11). O local de encontro com o MST foi o Sindicato da Agricultura Familiar.
Por volta das 7h30 da manhã do dia 14/11, alguns carros foram em direção ao quilombo. A estrada que leva até ele passa por outros lotes não ligados ao MST, que mantêm produções agrícolas. Cerca de 10 pessoas faziam a guarda na entrada das terras ocupadas pelo movimento.
O quilombo está localizado em uma grande área que divide o terreno com o esqueleto de uma antiga usina que funcionava ali há mais de 20 anos. São diversos acampamentos que possuem uma produção agroecológica e orgânica.
Lá dentro, há uma escola frequentada pelas crianças durante o dia e por jovens e adultos (EJA) durante a noite. Eles fornecem alimentação própria do acampamento para quem estuda lá. Durante os dois dias de tensão com a possível reintegração de posse, a escola foi usada como base para a organização da resistência, caso a polícia tentasse entrar no local. Nos arredores da escola, existe um grande viveiro que produz mudas de mata nativa, árvores frutíferas e diversos tipos de café.
José Ferreira Barbosa, 59 anos, foi o primeiro morador a conversar com a reportagem. Em sua casa de alvenaria, sem nenhum tipo de acabamento, vivem 7 pessoas. “A tristeza é muito grande, desde que começou esse empasse eu tenho me sentindo sendo assassinado, eu não tenho tido forças para plantar. Eles chegam e acham que são dono da razão. Eu sempre falo que as pessoas tem que vir aqui dentro e conhecer o que o movimento dos sem-terra quer fazer. Nós falamos de vida, não falamos de morte, a gente não faz baderna. Aqui dentro eu aprendi a construir um alimento saudável, a construir o meu próprio adubo e não depender de química nenhuma, depender da própria lavoura que tem tudo o que precisamos”, diz José, nitidamente abatido com a possibilidade de reintegração.
A segunda visita foi ao morador João Silva, um dos mais antigos do local. Segundo ele, faz 18 anos que ele mora e produz nas terras do Quilombo. “Eu falei pro juiz, uma terra dessa não se vende e não se dá. Pode vir o que for, pode derrubar tudo, mas um cabra que tá aqui há 18 anos não sai não. Era tudo no escuro, do ano passado pra cá criou luz e eles que tirar nós”, relata João.
Os moradores de Campo Grande não sabem até quando continuarão na terra que fizeram de sua e, também, fizeram voltar a cumprir alguma função social. Advogados que acompanham o Movimento questionam o passo a passo da justiça.
De acordo com Daniel Tyguel, presidente da Aliança em Prol da Água Branca, que participou da audiência de conciliação, a decisão do juiz não faz sentido. “A empresa teria um projeto de recuperação da área, de tornar produtiva. Esse era o argumento para uma limitar que retiraria as pessoas, o juiz havia se manifestado e fez uma vistoria. Na audiência, o pedido de 60 dias para reintegração foi reduzido para apenas uma semana”, conta o representante.
“O juiz não atuou como mediador em uma conciliação, ele já tinha uma posição bem definida. Praticamente não deixou ninguém falar, em determinado momento ficou 1h30 em silêncio na sala e as pessoas se perguntaram o que estava acontecendo. Foi quando o juiz disse que já estava escrevendo a ata. Ninguém entendeu”, conta Tyguel.
Em entrevista à Telesur, Ester Hoffmann, da direção Nacional do MST, afirma que toda essa manobra jurídica faz parte do projeto conservador que começou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff. “Tudo está dentro das medidas que vem implantando na sociedade uma ideia de conservadorismo e que, a partir de agora, com a eleição de 2018, se concretiza na escolha do candidato Jair Bolsonaro”.
Depois da visita no acampamento, a reportagem da Ponte foi em direção à cidade, onde o MST realizou um ato ecumênico com a presença de alguns representantes da igreja católica e evangélica. Cerca de 100 pessoas participaram do ato, entre integrantes do MST e moradores da cidade que apoiam o Quilombo. A Polícia Militar de Minas transitou algumas vezes pelo local onde ocorria o protesto.
As famílias vivem sob tensão desde a determinação do juiz, tanto no acampamento quanto no sindicato. A angustia pela indefinição do futuro e a vontade pela defesa do chão são os sentimentos dos moradores do assentamento. Em tese, elas já deveriam ter saído da terra na quarta-feira (14/11), apesar da promessa de resistirem. Até às 7h da manhã da sexta-feira (16/11), não havia movimentação da PM, o que significa que a reintegração não tem data definida para acontecer. Adiado o processo, as famílias não imaginam até quando viverão no Quilombo Campo Grande. Para a maioria das pessoas ali, a terra é para produzir alimento e dignidade.
[…] em 2ª instância, o pedido de reintegração de posse da área onde fica o Quilombo Campo Grande, do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), em Campo do Meio, sul do estado. O […]
[…] De acordo com Daniel Tyguel, então presidente da Aliança em prol da APA da Pedra Branca, “o juiz chegou com 15 viaturas, inclusive uma delas do Batalhão de Choque, para verificar a área produtiva. A visita aconteceu de uma maneira ostensiva. Eles passaram 6 horas na área”. […]