De acordo com dados de boletins locais, perfil de pessoas que mais se infectam no Complexo da Maré, na capital do Rio de Janeiro, se manteve em um ano
“Quem tem abaixo de 40 anos não tem que se preocupar. De 40 a 60 tem suas preocupações e acima dos 60 é cuidado máximo”, observou o presidente Jair Bolsonaro em entrevista no dia 08 de abril de 2020, quando ainda se achava que os mais impactados pela pandemia seriam os idosos e pessoas com doenças pré-existentes. Um ano após essa fala, com dados mais concretos, pesquisas apontam que mulheres, pessoas negras, jovens e adultos e mais pobres têm sido os mais prejudicados durante a pandemia – seja em relação à saúde ou à economia. Mas se, a princípio, o vírus era mais prejudicial para idosos, por que hoje o perfil das pessoas mais acometidas pela covid-19 no país e na Maré é outro?
Para pesquisadores, como o médico e antropólogo Merrill Singer, vivemos hoje o que ele chama de ‘sindemia’, a combinação das palavras sinergia e pandemia. Para ele, uma epidemia sindêmica é uma situação em que o vírus não atua sozinho e que outras variáveis combinadas a ele pioram o quadro da pessoa infectada, sejam doenças pré-existentes, sejam as condições sociais que essas pessoas vivem, entre elas a dificuldade que elas têm de acessar serviços de saúde. A desigualdade social no Brasil tem papel importante na sindemia e como consequência, é possível ver os impactos da doença principalmente em mulheres, pessoas negras (pretas e pardas) e jovens e adultos. O cenário nacional se reflete também na Maré, onde esses mesmos grupos também têm se mostrado como os mais impactados pela doença.
Ao longo de um ano, o boletim De Olho no Corona! vem fazendo um levantamento de casos de covid-19 na Maré a partir de duas metodologias de contagens. Em março de 2020, a contagem se dava a partir do cruzamento de dados de casos confirmados registrados pelo painel da Prefeitura e de casos suspeitos – identificados a partir de sintomas e reportados para o boletim. Desde agosto, com o início do projeto Conexão Saúde – De Olho na Covid, é possível ter dados concretos de casos positivos a partir da testagem realizada pelo Dados do Bem na Maré. Mesmo assim, é possível traçar um paralelo dos cenários de maio de 2020 e abril de 2021.
Em 2020, após a publicação da 4ª edição do boletim do Conexão Saúde, foi possível entender quem eram as pessoas que tinham contato com o vírus ou apresentavam sintomas da doença. Entre as 390 pessoas infectadas naquele momento, 66% eram mulheres e 68% se autodeclaram pessoas pretas ou pardas. Quanto à faixa etária, o vírus é mais letal conforme a idade aumenta, mas a faixa etária de 30 a 59 anos é a mais acometida no território, com 58% dos casos. Até o último boletim, publicado no dia 09 de abril, 2.114 pessoas testaram positivo para covid-19 na Maré. Destas, 1.364 são mulheres, o que equivale a 64% das pessoas testadas, 1.151 se autodeclaram pretas ou pardas (54%) e 1.168 pessoas estão na faixa etária de 30 a 59 anos, 55% do total.
Economicamente, essas pessoas também têm sofrido mais. A média nacional da taxa de desemprego de 2020 foi de 13,5%, o que equivale a 13,4 milhões de brasileiros desocupados. Esta é a maior taxa desde 2012, quando os números passaram a ser acompanhados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), feita pelo IBGE.
A pesquisa aponta que as mulheres (16,4%) têm ocupado um lugar maior na fila do desemprego em relação aos homens (11,9%). A taxa de desocupação entre pessoas de 25 a 39 anos é de 14,2%, também acima da média nacional, enquanto a faixa etária de 40 a 59 anos, a taxa é de 9,9%. Pessoas pretas (17,2%) e pardas (15,8%) ficaram acima da média nacional de desocupação, enquanto pessoas brancas (11,5%) ficaram abaixo dessa taxa. Ainda segundo a Pnad Contínua, nesse período de pandemia a diferença salarial entre brancos e negros também sofreu alteração. No terceiro trimestre de 2020, a distância chegou a R$1.492, também o maior valor desde o início da pesquisa.
Somos todos iguais, mas nem tanto
A vacinação também é um fator que realça essa desigualdade de classe e raça. O início da imunização foi marcado pela imagem da enfermeira Mônica Calazans, uma mulher negra de 54 anos que atua na linha de frente e que foi a primeira pessoa a ser vacinada no país. No Rio, a cena se repetiu: a idosa de 80 anos Terezinha da Conceição, junto com a técnica de enfermagem Dulcineia da Silva, foram as primeiras a receberem o imunizante. Mesmo sendo maioria da população brasileira (54%, segundo o IBGE), a realidade de pessoas pardas e pretas sendo vacinadas não acompanha essa maioria. Por outro lado, a do número de mortes acompanha.
No país, sete a cada dez pessoas infectadas pela doença são negras, segundo o IBGE. Em uma pesquisa feita pela ONG Instituto Polis, 250 homens negros morrem a cada 100 mil habitantes, enquanto o número de pessoas brancas que falecem por coronavírus é de 157 por 100 mil habitantes. Já entre as mulheres é de 140 mortes de negras frente a de 85 brancas por 100 mil habitantes.
Já o número de pessoas brancas vacinadas é quase o dobro do de pessoas negras: enquanto 3,2 milhões de pessoas brancas já tinham recebido, ao menos a primeira dose, 1,7 milhões de pessoas negras foram imunizadas no país. De acordo com dados organizados pela Folha de São Paulo, 38% de pessoas brancas já foram vacinadas em relação a 21% de pardos ou pretos, além de 12% de pessoas amarelas, 2% de indígenas e outras 27% que não informaram não tiveram a cor informada. “A população negra que chega a mais de 90 anos é menor que a população branca porque a expectativa de vida da é menor, tanto pela morte da juventude negra – por causas externas – quanto por outros acometimentos que o racismo impacta, como a forma que se acessa saúde”, explica Rita Borret, coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade, sobre a disparidade entre pessoas brancas e negras vacinadas no Brasil.
O número de pessoas negras vacinadas tende a aumentar, tendo em vista que desde final de fevereiro os remanescentes de quilombolas foram incluídos no grupo prioritário e têm sido vacinados, mas a desigualdade em relação à vacinação segue. Outro fator que ajuda a entender a desproporção de pessoas negras vacinadas é o fato dessa população não estar presente em cargos que majoritariamente já foram vacinados, como profissionais de saúde.
Outro fator importante a se destacar é a desigualdade social no ato da vacinação. Com o avanço da vacinação na cidade do Rio, é possível perceber também que algumas áreas são negligenciadas com a vacinação, como é o caso das favelas e periferias. De acordo com o boletim do Conexão Saúde, enquanto na Zona Sul 130.730 pessoas foram vacinadas com a primeira dose até o dia 06 de abril, 8.418 moradores da Maré receberam a primeira dose. Dessas, apenas 1.662 já receberam a segunda dose e estão totalmente imunizadas.
Pensando nessa disparidade que surge a campanha Vacina Pra Favela, Já!, que reforça a necessidade de se criar um plano de vacinação que possa priorizar moradores de favelas e periferias, assinado por 48 organizações, coletivos e instituições das cidades do Rio, Mesquita, Itaguaí que fazem parte do Painel Unificador COVID-19 nas Favelas do Rio. “Seja pela falta d’água nas casas e de acesso pleno aos serviços de saúde, altos índices de servidores essenciais e informais para os quais o isolamento social é impossível, alta densidade intergeracional nas moradias, falta de informações adequadas e verificadas, e diversos outros fatores, o risco de contágio e exposição dos moradores de favela se torna maior e sua capacidade de enfrentamento é menor”, destaca a carta aberta enviada a gestores municipais e estaduais ressaltando a importância da vacinação nas favelas e periferias do estado do Rio.