Enquanto Bolsonaro determina que sejam feitas ‘as comemorações devidas’ no dia 31 de março, quando o golpe militar no Brasil completa 55 anos, argentinos usam o 24 de março, Dia Nacional da Memória por Verdade e Justiça, para repudiar ditadura
“Eles matavam as mães”, diz uma jovem mulher a um menino ao seu lado que, visivelmente instigado, pergunta sobre as razões de haver milhares de manifestantes em marcha pela Avenida de Mayo, em Buenos Aires, em direção à praça de mesmo nome. Este 24 de março talvez seja, para muitas das crianças desta nova geração, o primeiro contato real com o que foi o último golpe de Estado argentino, ocorrido há exatos 43 anos. A ruptura democrática de 1976 inaugurou uma sangrenta ditadura militar, que deixou 30 mil detidos desaparecidos pelas mãos do Estado de exceção vigente.
A mensagem de quem foi às ruas da capital argentina no domingo (24/3) é clara: “Nunca Mais”. A marcha na Argentina aconteceu uma semana antes do 31 de março, dia em que o golpe militar no Brasil completa 55 anos. Mas diferente do país vizinho, por aqui, ano após o ano, a ditadura é comemorada com festa e tem levado cada vez mais pessoas para as ruas. No ano passado, por exemplo, a data, que caiu em um sábado no meio da Páscoa, atraiu centenas na avenida Paulista pedindo intervenção militar. É comum chamarem o golpe de 1964 de revolução, bem como negar as atrocidades cometidas nos porões da ditadura brasileira, como já fez, mais de uma vez, o presidente Jair Bolsonaro (PSL). Em um vídeo de 2016, Bolsonaro, que era deputado federal, solta rojões em frente ao prédio do Ministério da Defesa com uma faixa parabenizando os militares por não deixarem o país virar Cuba e diz: “Hoje é o dia da segunda independência do Brasil”. No ano passado, ele também fez comemorações.
Nesta segunda-feira (25/3), Bolsonaro determinou que o Ministério da Defesa faça “as comemorações devidas” pela data. O porta-voz da presidência, Otávio Rêgo Barros, destacou que o presidente não considera que houve um golpe militar em 1964. Na semana passada, o presidente do Chile, Sebastián Piñera, chegou a chamar de “infelizes” algumas declarações de Bolsonaro, que em mais de uma oportunidade já elogiou o ditador chileno Augusto Pinochet. Uma das frases definida por Piñera como infeliz é: “Quem procura osso é cachorro”. A expressão se refere à busca por desaparecidos na época da ditadura e estampava cartaz pendurado na porta do gabinete de Bolsonaro quando ele ainda era deputado.
Para María del Carmen Verdú, integrante do CORREPI (Coordenação Contra a Repressão Policial e Institucional), existe uma desconsideração explícita sobre o que foi terrorismo de Estado e esse tipo de mentalidade reforça discursos de atenuação do que foram as ditaduras na América Latina. E embora os hermanos, de uma forma geral, tenham uma visão mais crítica com relação ao período histórico, Verdú consegue ver similaridades entre os governos do Brasil e de Maurício Macri. “Sempre assinalo que, na Argentina, inventamos o Macri antes que vocês inventassem o Bolsonaro, mas que, juntos, eles se potencializam. Destacamos a necessidade de se ter em conta o cenário continental, no qual são evidentes os avanços da direita mais refratária, com o caso brasileiro na dianteira”, aponta.
“Inclusive, [essa visão de negar os crimes da ditadura] se aprofundou em episódios como sustentar que ‘não foram 30 mil’, a presença de destaque de genocidas em desfiles de dias pátrios e a nomeação de funcionários como Pablo Noceti, defensor de repressores da ditadura. Isso não só responde a ideologia reacionária de Cambiemos [coalização de centro-direita que surgiu em 2015 e que elegeu Macri], mas também integra a operação para impor legitimidade à repressão atual”, acrescenta Verdú.
Nunca Mais: lembrar para que não esquecer
O dia 24 de março virou um dia de luta em 2005, na época do governo de Néstor Kirchner, e entrou no calendário de feriados nacionais como o Dia Nacional da Memória por Verdade e Justiça, muito em virtude do empenho de organizações sociais ligadas aos Direitos Humanos. Entre elas, estão os movimentos das Mães e das Avós da Praça de Mayo, grupos de senhoras que, todas as semanas, reuniam-se na Praça de Mayo em frente à Casa Rosada (sede do Poder Executivo argentino) para implorar ao Estado o direito de reencontrar ou de, ao menos, enterrar seus(as) filhos(as) e netos(as) detidos e desaparecidos. Além de ganhar projeção internacional, o movimento tornou-se um dos principais símbolos de resistência na luta pelo fim da ditadura e os lenços brancos com nomes das vítimas bordados à mão, os pañuelos, são até hoje um ícone permanente ressignificado por outras causas populares.
Tamanha convulsão social gerou, diferentemente do caso da Lei da Anistia brasileira – que poupou os responsáveis pelos crimes de lesa humanidades cometidos durante a ditadura -, um julgamento histórico iniciado em meados dos anos 2000 condenou à prisão militares envolvidos no massacre promovido pelo Estado. Com muitos deles hoje em prisão domiciliar, manifestantes também protestaram por penas mais severas a quem chamam de “genocidas”.
A ressignificação de símbolos também passa pela Escola de Mecânica de La Armada, um prédio considerado o epicentro das torturas na ditadura argentina e que hoje se tornou o Museo Sito de Memoria ESMA – pode-se comparar ao Museu da Resistência em São Paulo, onde, na época do regime militar, funcionou o Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna). “Foi nesse prédio de aproximadamente 5 mil metros quadrados, o lugar onde se planejaram os sequestros, onde estiveram alojados mais de 5 mil homens e mulheres, a maioria deles hoje desaparecidos. Nesse lugar, se torturou; nasceram bebês de suas mães em cativeiro, que depois foram separadas de suas mães e entregues a familiares dos repressores, isto é, se levou adiante um plano sistemático de extermínio e por isso falamos que se cometeram crimes de lesa humanidade”, explica Alejandra Naftal, diretora-executiva do Museo Sito de Memoria ESMA.
Para Alejandra, o processo de transformar o lugar e seu símbolo advém de mais de 4 décadas de reflexão sobre o que se passou. “O que tentamos é transformar um espaço que foi de horror, de tragédia, de tormento e, paradoxalmente, hoje é de conhecimento, de expressão e também de reflexão e liberdade. Todos os debates sobre o que fazer com os lugares e como se transmite a memória são debates permanentes na sociedade. Hoje sabemos que houve em toda Argentina mais de 600 lugares de detenção ilegal e as comunidades próximas decidem o que cada uma delas quer fazer em cada lugar”, explica a diretora-executiva.
“Os argentinos e as argentinas concluímos que não queremos mais terrorismo de Estado, não queremos mais golpes militares, não queremos mais repressão ilegal. Acredito que há um consenso de um valor, do “Nunca Mais” a tudo isso, que estamos construindo entre todos”, conclui Alejandra Najal.
A advogada Maria Del Cármen Verdú, integrante do CORREPI (Coordenação contra a repressão policial e institucional), destaca a potência da luta popular para alicerçar o dia 24 de março como uma data para reafirmar os compromissos com a democracia. “A responsabilidade pela sustentação da memória e a luta para que Nunca Mais não seja uma simples expressão de desejos é uma tarefa que tem como protagonista o conjunto do povo trabalhador. Nenhuma das conquistas que tivemos nestes 35 anos de luta, como a anulação das leis de impunidade ou, mais recentemente, o freio à tentativa de beneficiar genocidas, foram concessões de um ou outro governo, se não o resultado da mobilização popular e da luta do povo”, pontuou.
Verdú sublinha que o período ditatorial chegou como uma resposta das elites às lutas populares que pretendiam mudar o estado de coisas e estabelecer justiça social. “Neutralizado todo projeto de mudança nas relações sociais existentes, havia chegado o momento de instrumentalizar a ‘institucionalidade’ por meio da transição ‘democrática’ que continuaria e aprofundaria o modelo de dominação, sobre uma base de ‘paz social’, só que conseguida à base de sangue e fogo. As políticas econômicas que a ditadura não havia chegado a aprofundar seriam implementada por governos constitucionais apresentáveis, legitimados em sua origem eleitoral, sobre o terreno ermo deixado pelo aniquilamento físico da resistência e o terror imposto ao conjunto da sociedade. A repressão explícita da ditadura, uma vez cumprida sua função de extermínio e de “limpeza contra-insurgente”, cedia lugar a métodos mais sutis orientados ao controle social”, explicou.
Atualização das lutas
Neste ano, além das bandeiras tradicionais de manutenção de memória e busca por verdade e justiça, a presença de diversos movimentos trabalhistas, sindicatos, organizações villeras (villa é como são chamadas as favelas na Argentina), coletivos de gênero e dissidentes, ligados às artes além de muitas organizações sociais civis também deram contornos político-eleitorais a suas manifestações. Com a aproximação das eleições gerais, que ocorrem no próximo mês de outubro, a possibilidade de renovar os representantes dos Poderes Legislativo e Executivo e demonstrar nas urnas a solidez da democracia argentina é uma preocupação visível entre aqueles que, hoje nas ruas, juram não permitir que o que passou há 43 anos se repita.
Protestos contra a atual administração do presidente Maurício Macri bem como críticas às suas políticas de segurança pública, regidas pela Ministra de Estado Patricia Bullrich, se espalharam pelos cartazes, performances, intervenções urbanas, gritos e palavras de ordem. “Macri, seu lixo! Você é a ditadura!”, apenas para citar algumas delas. Manifestantes lembraram também as vítimas de gatillo fácil – expressão para letalidade policial -, denunciando que, mesmo em períodos ditos democráticos, a população segue vítima da violência estatal.
Sobre isso, Maria Del Cármen Verdú lembra que nos primeiros 1.059 dias de governo Macri, 1.303 pessoas foram assassinadas pelo aparato repressivo estatal. “O governo da ‘Revolução da Alegria’ vem matando, com gatillo fácil ou em lugares de detenção, uma pessoa a cada 21 horas. Além disso, há presos políticos, como Milagro Sala e Daniel Ruiz, encarcerado por ter participado da manifestação contra a reforma da Previdência e são centenas de pessoas criminalizadas por participar de protestos e mobilizações, como César Arakaki, Dimas Ponce e Sebastián Romero”, denuncia.
Verdú manifesta preocupação porque o aparato repressivo do presidente está muito alinhado com mudanças legislativas, impostas pelo Cambiemos. “Os códigos processuais do país e da capital incorporaram formalmente as práticas que a justiça federal já vinha implementando, como o uso da tecnologia avançada para acessar a vigilância, perseguição e espionagem de pessoas e organizações através de telefones celulares, tablets, computadores e qualquer outro tipo de dispositivo eletrônico. Consagraram também as figuras do infiltrado (agente encoberto), do provocador (agente revelador), do dedo-duro (informante) e do traidor (arrependido), todas de enorme periculosidade pela arbitrariedade que implicam e pelo risco certeiro de fabricação de provas e de incriminações falsas motivadas por dinheiro ou questões pessoais”, explica.
E critica a reforma do Código Penal em curso, que pretende legitimar o gatillo fácil com a ‘doutrina Chocobar’, que oficializa o emprego de armas de fogo por policiais, autorizados a disparar em determinadas circunstâncias, além de aumentar as penas dos delitos que servem para criminalizar pobres e baixar para 15 anos a idade a partir da qual meninos, meninas e adolescentes possam ser penalmente responsabilizados e encarcerados.
Por volta das 16h do último dia 24 de março, já não era possível acomodar mais manifestantes no espaço da Praça de Mayo e, ainda assim, mais gente chegava a cada minuto, vindo das também ocupadas Diagonal Norte e Sul e da Avenida de Mayo, inteiramente tomada, desde o Congresso da Nação. Se antes era possível falar em milhares de pessoas, ao cair da tarde, já são centenas de milhares em uma só voz: “Nunca mais!”.