Defensoria Pública da Bahia analisou perfil de quatro unidades socioeducativas do estado; 90,4% dos adolescentes que cumprem medidas são negros. “O sistema quer ver nós presos”, denuncia jovem interno
“Muitos jovens, como eu, são discriminados porque nós somos pretos e porque também moramos em uma favela. O sistema quer ver nós presos, por isso lá fora não dá oportunidade e a gente entra nessa vida aí”. O depoimento ao qual a Ponte teve acesso é de um jovem que cumpre medida socieducativa em uma das quatro Cases (Casas de Atendimento Socioeducativo) que foram objetos de uma pesquisa da Defensoria Pública do Estado da Bahia e resume a realidade vivida por ele antes da internação. O relatório divulgado na quinta-feira (25/11) coletou o perfil dos 172 adolescentes – todos do sexo masculino – das unidades CIA, na região metropolitana de Salvador, Irmã Dulce, no município de Camaçari, e Juiz Melo Matos e Zilda Arns, em Feira de Santana, entre março e abril deste ano.
A pesquisa constatou que em 43% dos casos os atos infracionais foram cometidos junto com adultos, pessoas que já podem ser responsabilizadas penalmente. No entanto, em 81,6% deles os jovens são mais punidos do que os coautores adultos nas mesmas circunstâncias. Enquanto jovens cumprem medidas socioeducativas, adultos respondem o processo em liberdade ou se quer são identificados e têm inquéritos instaurados.
Segundo o defensor Bruno Moura, que atua diretamente na defesa dos internados nas CASEs na Bahia, esse dado desconstrói a visão e o senso comum de que os adolescentes não são responsabilizados por seus atos, somente os adultos. “Mostra, inclusive, que o sistema socioeducativo é mais eficiente na punição do que no sistema dos adultos”, constata. Outra informação que reforça a atuação do sistema socioeducativo é o da baixa reiteração dos jovens às medidas socioeducativas. Na unidade de Salvador, por exemplo, a reiteração atingiu apenas 16,86% dos casos. Para o defensor, Neste cenário, a discussão acerca da redução da maioridade penal é prejudicial aos jovens.
“Em comparação ao sistema penal, esse índice do sistema socioeducativo é muito menor, o que demonstra que existem equipes técnicas que conseguem fazer um trabalho mais individualizado. Este trabalho diferenciado, que se faz com esses jovens, se mostra mais efetivo nesse processo de ressocialização do que se faz hoje no sistema prisional. Encaminhá-los mais cedo para o sistema prisional é tirar uma chance que talvez eles teriam se tivesse no sistema socioeducativo.”
Porém, o defensor ressalva que em muitos casos, as medidas impostas entram em confronto com a própria legislação “que estabelece que as medidas socioeducativas seriam excepcionais e que sejam aplicadas só quando outras medidas não se mostrassem efetivas”. A lei 12.594 institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e elenca as competências e obrigações dos estados e da União em relação às medidas de liberdade assistida, semiliberdade e internação. Entre as medidas protetivas, a Sinase prevê, no 35º artigo, o princípio da legalidade, “não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto”.
Jovens negros são 90% dos internos
A pesquisa dá continuidade a um relatório feito anteriormente, em 2020, nas instituições localizadas especificamente em Salvador. No mesmo ano, uma decisão da segunda turma do STF (Supremo Tribunal Federal) mudou a dinâmica do sistema socioeducativo ao julgar um habeas corpus coletivo e impor o fim das lotações nas unidades de todo o país. Caso o limite da capacidade fosse atingido em determinada unidade, seria preciso liberar adolescentes para que outros fossem admitidos.
A partir desta determinação, se observou, de acordo com Fernanda de Morais, defensora e coordenadora da Assessoria de Gabinete para Pesquisas Estratégicas, uma queda no número de jovens internados. No entanto, o viés racial das medidas socioeducativas perdurou. Em relação ao perfil dos educandos nas quatro CASEs, os jovens negros são absoluta maioria, compondo 90,4% das unidades, enquanto 8,9% são jovens brancos. Apenas um dos adolescentes se autodeclarou indígena. Em Feira de Santana, todos se autodeclaram negros.
“O dado que mais indica a maneira como o sistema de segurança pública age na Bahia é justamente o que indica a autodeclaração de cor, que revela esta forma seletiva de agir”, ressalta Fernanda Morais. Entre outras condições, a ausência da figura paterna é uma das que mais marcam os jovens ouvidos pela Defensoria durante a pesquisa. Somente 21% dos 172 adolescentes contaram a presença do pai de forma mais constante na suas vidas.
“Eu vou fazer diferente. Vou cuidar da minha filha, vou dar as coisas que ela merece trabalhando porque eu não quero mais essa vida para mim. Eu estou refletindo muito na minha medida aqui e eu não quero ser igual meu pai não. Não quero que minha filha seja constrangida de ter um pai que não é presente, que não conversa, de um pai que não fala sobre as coisas que acontecem no dia a dia”, reflete um deles.
Boa parte dos adolescentes foram criados com as mães e os irmãos e precisaram buscar formas de ajudar no sustento da família. Diante da falta das condições básicas de sobrevivência e no contexto da pandemia de Covid-19, a escola se tornou distante e deixou de ser prioridade. O relatório aponta que 94% dos jovens não completaram sequer o Ensino Fundamental.
Falta de liberdade e direitos
Dentro das unidades socioeducativas, um outro adolescente ouvido pela Defensoria Pública lamenta não ter tido oportunidades enquanto estava em liberdade. “Quando ela [minha mãe] morreu eu era jovem, não sabia muito sobre a vida. Fui morar com meu pai e só era desgosto, ele não queria me dar o melhor. Com isso fui morar com a minha irmã que não estava muito boa financeiramente. Ajudava ela de vez em quando carregando feira e aí só foi desgosto. Infelizmente eu conheci esse mundo do tráfico”, relata. Segundo o relatório, mais da metade dos adolescentes cumprem medidas por terem cometido o delito de roubo (53,49%).
O jovem ainda conta que apenas dentro da Case teve acesso à leitura e que as histórias o ajudaram a lidar com a saudade da mãe. “Se tivesse lá fora seria muito melhor para nós porque nós íamos focar nos estudos, íamos ficar fora do mundo que quer só nos dar oportunidade ruim. Seríamos outras pessoas, era uma oportunidade única. E eu dou graças a Deus porque com esse aprendizado eu parei para pensar e eu não quero mais essa vida não”.
Para Fernanda, a internação destes jovens poderia ser evitada se o Estado garantisse os direitos básicos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. “Uma fala que me chamou atenção foi de uma agente socioeducativa quando a gente esteve na Case. Ela falava ‘muitas vezes, a primeira vez que um adolescente senta em uma cadeira de dentista é dentro do sistema socioeducativo’. Ou seja, ele precisa perder um direito fundamental que é a liberdade, pela qual ele fica privado, para ele acessar direitos como a escola, lazer, saúde”, explica.
Na mesma linha, o defensor Bruno Moura lembra que os adolescentes também são alvos de uma política pública repressiva que os tornam vítimas constantes da letalidade policial e da desigualdade social. “O cumprimento das medidas socioeducativas, costumo dizer, é apenas a ponta do iceberg de uma questão muito mais profunda e complexa. Questões que eles vão ter que lidar no momento que retornam para a sociedade, pois eles vão retornar para o mesmo contexto social com o qual lidavam e que levaram eles, muitas vezes, à prática dos atos infracionais”, pontua.
“As questões de infância e juventude não vão ser revolvidas em unidades de internação, medidas socioeducativas e unidades de acolhimento. A gente precisa pensar, de forma mais ampla, em como melhorar aquele ambiente que não só diz respeito ao adolescente como também às suas famílias”, prossegue. O estudo feito pela Defensoria, segundo ele, é um dos caminhos para cobrar a implementação de políticas públicas que incentivem a educação e a inclusão social.
O que diz a Fundac e a SJDHDS
A Ponte entrou em contato com a Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac) e a Secretária da Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS) do Governo da Bahia para pedir esclarecimentos sobre a situação dos adolescentes abordados no relatório e quais medidas estão sendo tomadas para evitar a internação e dar apoio aos egressos das Cases, mas ainda não obteve resposta até a publicação desta reportagem.