Policiais abordaram Via Sacra realizada pela Pastoral do Povo de Rua e ameaçaram levar padre a outro local para se explicar: “senti como uma forma de intimidação”, afirma religioso
Seguindo a tradição católica da Semana Santa, o padre Júlio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, encenou nesta Sexta-Feira Santa (15/4), nas ruas do centro da cidade de São Paulo, a Via Sacra, rito que relembra o sofrimento de Jesus Cristo no seu caminho até a pena de morte, conforme o Evangelho de São Mateus (27:30-31): “E cuspindo nele, tomaram o caniço e batiam-lhe na cabeça. Depois de caçoarem dele, despiram-lhe a capa escarlate e tornaram a vesti-lo com as suas próprias vestes, e levaram-no para o crucificar”.
Assim como ocorreu há mais de dois mil anos, agentes de segurança do Estado também estiveram no local, intimidando fiéis que acompanhavam a procissão.
A celebração católica se caracteriza por caminhar e fazer paradas em lugares específicos para relembrar momentos vividos por Jesus antes de ser pregado na cruz. A procissão organizada pelo padre Júlio, com a presença de moradores de rua que vivem na região, teve início no Largo de São Bento e em sua quarta parada, em frente ao prédio da Prefeitura de São Paulo, no Viaduto do Chá, foi abordada por quatro policiais militares.
Toda ação no local havia sido pacífica, segundo Lancelotti. “A população de rua pendurou cobertores nas grades em frente à Prefeitura como forma de protestar contra as operações do “rapa” [retirada de pertences por agentes do Estado]. Quando os cobertores foram retirados, foram jogadas flores naquele espaço. E várias dessas pessoas estavam manifestando o seu sofrimento e realidade que vivem”, contou o padre à Ponte.
“Quatro policiais militares entraram no meio da manifestação e queriam saber quem era o responsável. Quando chegaram até mim, queriam me levar para outro local. Eu disse que não iria porque estava comandando a procissão. Eles insistiram e eu concordei em falar com eles ali. Queriam saber o que era aquilo que estava ocorrendo, para onde iria, até que horas iria e tiraram foto dos meus documentos”, detalhou Lancelotti.
De acordo com o religioso, os policiais acompanharam a procissão até o final. O padre acredita que a presença da PM foi uma forma de intimidar um ato que, ao mesmo tempo que respeitava as tradições da Igreja Católica, também serviu como forma de manifestar o incômodo das pessoas que moram atualmente nas ruas da maior capital do país.
“Eu senti a presença dele como uma forma de intimidação. Nossa procissão teve várias reivindicações da população em situação de rua, denunciando a violência da polícia, por isso tem uma natureza diferente das vias sacras que ocorreram em outras paróquias da cidade. Claro que a polícia vai se incomodar muito mais com uma manifestação feita por essas pessoas”, aponta Lancellotti.
O padre ressaltou que os cristãos estão vivendo, ao final desta semana, um momento de reflexão sobre a morte de Jesus e, por isso, é tempo de pensar nos mais necessitados. “Que sejamos comprometidos na defesa da vida dos descartados e torturados pela violência e miséria que atormenta nosso povo”, disse o Lancelotti como mensagem de Páscoa.
O número de pessoas vivendo nas ruas da capital paulista aumentou 31% nos últimos dois anos, saltando de 24.344 em 2019 para 31.884 em 2021, conforme o Censo da População de Rua divulgado pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Também aumentou o número de famílias que deixaram de contar com um teto sobre suas cabeças: os entrevistados que relataram estar em situação de rua com uma pessoa da família, que eram 20% em 2019, eram 28,6% em 2021.
O que diz o governo
A reportagem questionou a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, do governo Rodrigo Garcia (PSDB), sobre o que motivou os policiais militares a abordarem o padre Júlio Lancelloti durante uma procissão. A resposta foi a seguinte:
A Polícia Militar acompanhou manifestação realizada nesta sexta-feira (15) que se deslocaram pelas principais vias do centro até à Secretaria da Segurança Pública (SSP) e posteriormente à Catedral da Sé, onde era realizado um teatro ao ar livre comemorativo a Semana Santa, seguido da celebração de uma missa. O ato reivindicatório por justiça e moradia aos cidadãos em situação de rua transcorreu de forma pacífica e não houve interdição das vias. Após o evento, os participantes se dispersaram.
(*) Atualizada em 16/4, às 21h, para acrescentar o posicionamento da Secretaria da Segurança Pública