O professor Lucas da Silva Nascimento foi preso após filmar uma abordagem policial no Rio; em entrevista, conta que policiais o criticaram por ter ‘cara de esquerdista’
Dois dias após deixar o Presídio de Benfica, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, o professor Lucas da Silva Nascimento, 31 anos, ainda não se sente livre. Preso no domingo (23/2), no centro da cidade, e liberado no dia seguinte, após uma audiência de custódia, Lucas responde pelos crimes de desacato, resistência à prisão e facilitação de fuga. Tudo isso por ter filmado uma abordagem policial.
Lucas contou à Ponte que estava no mercado quando viu dois homens negros serem abordados na fila do caixa. Teve o instinto de puxar o celular. “É uma maneira de gerar uma segurança: começar a filmar”, explicou. Não sabia que ele viraria o alvo. Os PMs detiveram o professor e disseram à Polícia Civil que Lucas os xingou e ainda contribuiu para que os dois homens negros — “suspeitos”, segundo os policiais — deixassem o local.
Na delegacia, ficou chocado com o comportamento dos policiais. “As pessoas estavam fazendo doutrinação, piadas. ‘Ah, se tivesse votado em Bolsonaro pelo menos a gente desse uma chance’, ‘tem cara de esquerdista, de lulista’. Percebia uma grande demonstração de poder, como estivesse me provocando”, relembrou.
Em nota, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro afirma que os dois homens negros foram abordados por suspeita de uso de drogas, e que o professor “teria auxiliado na fuga destes dois indivíduos” tendo “proferido insultos e oferecido resistência na condução à delegacia”.
Ponte – Como foi o seu dia até o momento da prisão?
Lucas da Silva Nascimento – Eu estava em casa, fui ao mercado e na fila do mercado vi duas pessoas sendo abordadas. Não sabia de nada do que estava acontecendo. Como de costume quando vejo pessoas negras sendo abordadas, comecei a filmar. É uma maneira de gerar uma segurança: começar a filmar.
Ponte – Em qual momento os PMs abordaram você?
Lucas – Não lembro. Voltei para continuar fazendo compras. Não entendi que estava cometendo crime nenhum. A abordagem começou no momento que estava gravando, tive que parar e ela continuou depois. Eu estava pagando as coisas.
Ponte – Você viu quando os dois homens foram embora, se saíram correndo ou se foram liberados normalmente pelos policiais?
Lucas – Não vi os rapazes saindo nem correndo, nada disso. Sei que eu não queria ir para a delegacia, achei que era meu direito ir só com advogado. Uma pessoa me ajudou, foi comigo no carro. Não conhecia, nem sei qual a profissão dele. Ele me chamou de irmão. Me ajudou como irmão de cor, foi isso que aconteceu.
Ponte – Qual a cor de quem foi abordado?
Lucas – Todas as pessoas abordadas eram negras, os dois rapazes tinham a cor mais escura do que a minha.
Ponte – Os policiais foram truculentos?
Lucas – Houve um excesso na hora em que fui abordado, não estava entendendo o porquê estava sendo preso. Depois é complicado porque comecei a perceber um grande nervosismo. As pessoas estavam agindo sob uma emoção muito forte, um estresse muito grande. Achei que as coisas fossem se acalmar na delegacia, os policiais fossem recebidos de uma maneira que as coisas se resolvessem. Nunca imaginei que ia ser preso. Achei que ia testemunhar, [como] eles falaram a princípio.
Ponte – O que aconteceu na delegacia?
Lucas – Na delegacia, me apresentaram com os crimes. Eu lembro que me ajoelhei, chorei. Ouvi palavras irônicas de campanha política, eu não fiz campanha de ninguém, não falei de político nenhum, mas as pessoas estavam fazendo doutrinação, piadas.
Ponte – O que falavam?
Lucas – “Ah, se tivesse votado em Bolsonaro pelo menos a gente desse uma chance”, “tem cara de esquerdista, de lulista”. Dentre essas falas doutrinadoras e partidárias mais tendentes à direita, percebia uma grande demonstração de poder, como estivesse me provocando. Em outras, percebia a melhor das intenções, como me aconselhando a ficar quieto para me proteger. Tinha gente querendo provocar e gente querendo me ajudar. Falando para deixar de ser “esquerdopata”.
Ponte – Qual era o estado da cela em que ficou?
Lucas – Fiquei em uma cela com cheiro horrível, privada entupida. Tudo me fez pensar nas condições de trabalho deles também. Que ambiente é esse, extremamente estressante? Fiquei várias horas na delegacia. As pessoas tentavam entender o que ia acontecer. Depois chegou um senhor na cela, ele era analfabeto e me explicou questões sobre o sistema carcerário que eu não estava entendendo. Ao mesmo tempo, quando soube que eu era professor, ele perguntou o que estava escrito na parede. Lemos o nome de comunidades, Coroa, Paquetá, Jesus, o nome de pessoas, e a última coisa foi “liberdade para todos nós”. Ele ficou comigo durante toda a noite. Éramos eu e ele na cela.
Ponte – Como foi a conversa com o delegado?
Lucas – Eu não pude falar muita coisa. Até agora não sei se podia ter falado, se tinha direito de dar algum depoimento ou se era só a palavra do policial contra a minha. Foi tudo muito cortado. Estava muito abalado, chorando muito, e não pude falar muito.
Ponte – Em qual momento você foi transferido para o presídio em Benfica?
Lucas – Achamos que íamos para Benfica, mas fomos para a Cidade da Polícia [espaço da Polícia Civil na zona norte carioca]. Foi um momento muito tenso, não sabia o que estava acontecendo, o que poderia acontecer. Tinha mais gente sendo levada, senti uma tensão muito grande com a incerteza. Dormimos lá, não no presídio. Não tomamos água, ficamos mais de 10 horas na Cidade da Polícia sem tomar água e sem comida. Da Cidade, fomos para Benfica e passamos para a triagem no presídio. Depois teve a audiência [de custódia] e esperamos umas três horas para a saída. Esperamos bastante tempo. Éramos em 15, só dois brancos.
Ponte – Conseguiu falar mais com o juiz do que havia conseguido com o delegado?
Lucas – Consegui falar mais. Deixei a cargo do advogado, mas consegui falar mais. Não sei se posso falar muito sobre isso, mas falei mais.
Ponte – O que fica de tudo isso?
Lucas – Uma sensação de trauma muito forte, essa experiência de ter dormido no chão da prisão, junto com outras cinco pessoas. Nesse dia que passei no sistema, percebi o quanto é enlouquecedor, o quando as pessoas são oprimidas, são educadas a sentirem raiva. Um jovem que estava detido, devia ter 18 anos, ele estava tão revoltado que disse: “Quer saber, eu vou roubar mais quando sair daqui”.
Ponte – Em qual momento sentiu mais isso?
Lucas – Quando eu fui preso, para a cela, e eu percebi que era isso mesmo. Eu, um professor, artista, estava sendo acusado, de repente, de crimes que eu sabia não ter cometido e não saber o que estava acontecendo fora. Não tínhamos informação nenhuma, não sabíamos nem se poderiam nos dar um copo d’água, nem quando íamos para Benfica, se íamos comer.
Ponte – Teve outras situações de desconforto?
Lucas – Eu não sabia que ia ter que andar de cabeça baixa, virar para a parede, não olhar, fazer silêncio depois de ter sido solto. Não pode ter bagunça. Se os presos fizerem “bagunça”, eles vão queimar o filme dos agentes, entende? É uma bola de neve de opressão. Parece que está todo mundo oprimido ali dentro, as pessoas reproduzem uma opressão sobre os detentos. “Por que esse silêncio?”, fiquei pensando. Eu percebi depois que eu tive que adotar, mesmo tentando ser simpático com todo mundo, um comportamento mais masculinizado. Tive que evitar dar pinta pela minha segurança.
Ponte – Em quais situações isso aconteceu?
Lucas – Todo o momento. Eu senti mais confiança quando eu estava com esse senhor, depois eu estava na incerteza. Eu não sabia quem eram aquelas pessoas, de onde poderia vir algum tipo de proteção. Mas veio. Posso dizer que pessoas cuidaram de mim, de dentro da polícia também. Isso foi muito contrastante. Mais do que raiva, eu senti incerteza completa, abandono, não ter direito à informação da própria vida.
Ponte – Como está sendo essa volta à vida normal?
Lucas – Eu tenho recebido muito afeto, acreditado muito na força do coletivo, da forma não só como meus amigos se uniram com minha família, mas acreditando na redes de comunicação, principalmente a de jornalismo da periferia, da favela, as redes pretas. Pelo que entendi, essas foram as pessoas que noticiaram primeiramente o que tinha acontecido comigo. Isso tudo me dá muita esperança: saber que tem gente pronta para cuidar da gente e fazer justiça, mas, ao mesmo tempo, é uma experiência muito triste. Eu estou bastante instável, confiante, mas instável. Como se eu ainda não estivesse livre, é estanho dizer isso. Por conta do processo e da sensação física, a memória. Eu durmo e não descanso.
Ponte – Terá alguma ação específica por conta de tudo que aconteceu?
Lucas – Uma atitude de vida que pretendo tomar é investir no meu trabalho como artista, como professor, em uma maneira mais segura de dialogar com as pessoas, mas respaldado pelo meu trabalho. De poder falar com quem quer me escutar. Essa postura é a que vou tomar. Tentar falar mais através da arte. As pessoas precisam de arte, precisam saber que podem criar e recriar a própria vida, que têm direito à expressão, que não podem ser silenciadas. Se realmente tivessem direito de se expressar, acho que as coisas seriam diferentes. A arte é justamente contrário à esse silenciamento que vi no presídio, na delegacia.
Ponte – O que tem visto de repercussão do caso?
Lucas – Sei que estão me difamando nas redes sociais. É horrível saber que me difamam sem conhecer minha história, meu trabalho. É mais uma vez um silenciamento, a gente não tem o direito de ser escutado e por isso revolta essas coisas. Importante falar de ser um artista, gay, professor, irmão de um padre, sendo defendido por alguém dos direitos humanos que já defendeu policiais. Essa confusão é que me protegeu. Para mim, é muito simbólica minha prisão, me vi representando a porção negra da população, LGBT+, os professores, os artistas… uma série de redes. Mas eu não quero ser mártir, quero que a situação seja resolvida, a dos pretos. Não adianta as pessoas só comemorarem a minha saída enquanto tem um monte de prisão injusta ainda acontecendo. Me deixaria feliz saber que o sistema está mudando, não que estão me pedindo desculpas.