O pesquisador e autor de “Irmãos: uma história do PCC” defende outra lógica para tratar da segurança pública, partindo da premissa que é necessário investir em investigação no lugar de estímulo financeiro para ações policiais violentas
O governo Lula 3 apresentou neste mês as diretrizes de atuação do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). Com atraso de dez meses em relação ao início do mandato, um programa com foco no “sufocamento econômico” de organizações criminosas foi anunciado ao custo de R$ 900 milhões, o Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas (Enfoc). A premissa é fortalecimento das investigações, mas o detalhamento do projeto mostrou uma dinâmica já conhecida: mais dinheiro para as polícias. A manutenção dessa logística para a segurança pública é criticada por Gabriel Feltran.
Diretor de Pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor titular do Centro de Estudos Europeus e Política Comparada da Sciences Po, Feltran é autor de Irmãos: uma história do PCC (Companhia das Letras 2018), adaptado como série documental pela HBO como PCC: Poder Secreto, em 2022.
O pesquisador diz que segurança pública não é um problema de polícia e defende outra lógica para a área partindo da compreensão do problema real enfrentado no país. “não temos uma guerra do Estado contra o crime organizado. Isso é a maior das ficções”.
Nesta entrevista, Feltran fala da necessidade de um Plano Nacional de Esclarecimento de Homicídios como estratégia para retomada da soberania do Estado em áreas dominadas por facções e milícias.
Para o pesquisador, o Estado não tem um controle claro das polícias e muitos agentes atuam de forma autônoma e por vezes associados a grupos criminosos. Ele avalia que essa dimensão é enquadrada como se fosse a lógica da segurança pública de um Estado democrático, mas não é.
“Nós perdemos a dimensão do que seria segurança pública, do que seria garantir direito à segurança, de que estratégias técnicas deveriam ser tomadas racionalmente para diminuir o conflito armado brutal que existe entre facções e entre polícia e grupos criminais hoje”, afirma.
Ponte — Como avalia o Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas (Enfoc) e o trabalho do governo Lula 3 com a área da segurança pública?
Gabriel Feltran — Parece-me que foi percebida, com algum atraso, a importância política central da área de segurança pública hoje. No começo do governo parecia não ter sido. Todas as medidas que estão sendo tomadas, agora, parecem tentar produzir outro discurso sobre segurança pública, que, no entanto, ainda está muito longe de chegar naquilo que vários especialistas têm dito ser necessário para que tenhamos de fato outra alternativa de políticas na área.
Primeiro teve aquele pacote todo focado em criminalizar o 8/1 e agir muito claramente para fazer a segurança do Estado democrático. Sobe o [Ricardo] Capelli [secretário nacional de Segurança Pública], que teve um protagonismo naquele momento de crise pesada. Nessa parte, a condução foi firme. Mas o problema é que isso não tem absolutamente nada a ver com o cotidiano da segurança pública: facções, expansão dos mercados ilegais cada vez mais transnacionais e com efeitos em vários lugares do mundo, territórios tomados por grupos armados dos mais diversos, e assim por diante. Depois, veio mais do mesmo: dinheiro federal indo para as polícias estaduais, como se segurança fosse só polícia e como se existisse uma guerra do Estado contra o crime organizado (essa ficção na qual só quem não conhece a área acredita).
O governo parece ter um desafio gigantesco, isso é certo. Fez um primeiro movimento para garantir alguma ascendência sobre as polícias e o mundo militar, dizendo “nós não vamos deixar vocês agirem livremente, do jeito que vocês quiserem”. Agora começaram a falar sobre a vida da segurança pública e aí falta direcionamento político, um projeto claro, conteúdos mesmo. O que tem de bom neste programa Enfoc? A ideia de uma polícia mais inteligente, com mais investigação, não tão militarista e que não produza mais problema ao invés de encontrar a solução. Tem outro discurso, não é o do Bolsonaro.
Mas do ponto de vista prático, é muito pouco pensar segurança como atividade de polícia. Especialmente porque as polícias estaduais nos levaram a esse estado de coisas. O momento em que a direção das políticas pode mudar é no começo de um governo. Você não consegue mudar a direção da política no meio ou no fim. Agora vem a eleição municipal e a agenda vira completamente outra. Você precisa fazer aliança com todo mundo de novo, paralisa a produção de coisas novas. Depois o governo se desgasta, em seguida perde ainda mais sua base legislativa no terceiro e quarto anos. Vai ficando mais complicado.
Para mudar uma direção de política pública, isso aprendi com a Luiza Erundina [ex-prefeita de São Paulo, autal deputada federal pelo PSOL] lá atrás, é no começo de um governo, quando você tem base e está todo mundo querendo te apoiar para ter os seus espaços no orçamento e no governo.
Por isso nosso trabalho de ficar martelando que é preciso um projeto no tema da segurança pública, ainda no começo de governo. É quando realmente há chance de construir alguma coisa. Infelizmente, me parece que esse grupo não estava preparado para a dimensão do desafio da área, não tinha um projeto claro para a segurança.
Ponte — Quando você fala em um grupo, você se refere ao governo atual?
Gabriel Feltran — Sim e não, estou falando da esquerda brasileira de modo mais geral e consequentemente da ausência de projeto na área de segurança nesse governo. Acreditou-se por décadas que segurança era um não-problema, uma consequência direta da desigualdade estrutural, como se não houvesse atores ou mercados ilegais em plena transformação, se aproveitando dessa desigualdade. Uma incapacidade enorme de formular o problema da segurança pública como um problema da esquerda, dos setores progressistas ou mesmo do centro.
Durante anos, o que nós tivemos no Brasil como segurança pública foram basicamente dois modelos, ambos controlados pela direita e pela extrema-direita. O modelo de São Paulo, tocado pelo PSDB, baseado em militarismo, Polícia Militar ostensiva, e uma ampliação muito forte do encarceramento.
E o modelo do Rio de Janeiro, entre 2008 e 2016, das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) — também de militarização pesada, mas com controle territorial e sem tanto encarceramento. Nos dois casos, deu muito errado.
Nos dois casos nós sabíamos que ia dar errado. Estava muito claro que não era isso que ia resolver nada, conhecendo as facções e o conflito armado que nós temos no país.
Agora vejamos, em SP esse modelo foi liderado por Geraldo Alckmin, hoje vice-presidente. E no Rio, o [ex-governador] Sérgio Cabral e o [ex-secretário de Segurança Pública] José Beltrame tiveram apoio do Lula para as UPPs. Estou falando portanto de grupos políticos que eram adversários mas que hoje não são, e que deveriam apresentar uma alternativa a esses modelos que fracassaram. O Alckmin sabe o que aconteceu em São Paulo. Tenho certeza que ele hoje tem uma avaliação crítica daquilo que propuseram há 25 anos atrás, um modelo que modificou a segurança radicalmente mas que produziu efeitos colaterais nada esperados pelo governo, sobretudo a expansão do PCC (que não terminou ainda hoje).
A ampliação gigantesca do encarceramento foi também a expansão do PCC, além da entrega de uma parcela enorme do orçamento para grupos ligados à segurança privada, que, por sua vez, são ligados às polícias e a essa enorme militarização que foi feita no estado. Quem tem muito dinheiro, e ainda mais se tiver armas, vai se tornar um poder político, que começou a confrontar o poder político constituído, inclusive o Alckmin. Lembro que a certa altura, na campanha de 2018, o chefe da polícia de elite de São Paulo dava entrevistas nas quais se via que ele era nitidamente bolsonarista. Como pode o chefe da Polícia do maior estado do país, e que é controlado há mais de 20 anos por um mesmo partido, ser claramente politizado e contra o governador?
As coisas boas da segurança em São Paulo foram em uma direção diferente dessa do mainstream, da Polícia Militar ostensiva e do encarceramento. Por exemplo, a Lei do Desmanche, feita pelo PSDB, com um grande esforço do Alexandre Moraes e do Alckmin, com as seguradoras, construindo um consenso de que era uma boa saída regular os desmanches ilegais. É a regulação de um mercado ilegal e tem efeitos muito positivos na redução de roubo e furto de veículos. Foi excelente. Tem coisas que foram feitas e geraram um aprendizado positivo, e tem coisas que geraram um aprendizado negativo. O caminho é esse, temos que aprender com o passado.
No Rio, espero que se tenha percebido que o combate militar produzido nas UPPs, somado aos rios de dinheiro que foram jogados nas polícias cariocas, geraram o milicianismo radical que se vê hoje. O poder desses grupos saiu inclusive da área de segurança e chegou à Brasília, passando por todos os caminhos institucionais intermediários. Não se faz essa crítica no seio do governo atual? Deveria haver mais aprendizado nesse processo.
Ponte — O Enfoc tem como um dos pontos centrais o “sufocamento econômico” de organizações criminosas. Você avalia que essa medida é um caminho para solucionar a crise na segurança pública no país?
Gabriel Feltran — “A gente vai privilegiar o sufocamento econômico das facções”. Como? Mandando mais um monte de dinheiro para a polícia militar e a Força Nacional para os estados? “Vamos mandar a Força Nacional lá para o Rio. Vamos solucionar o problema da Bahia enviando agentes federais”. Não era sufocamento econômico? Infelizmente é preciso ver para crer. Até aqui, é mais do mesmo. Isso já foi visto um milhão de vezes.
Para sair desse ciclo vicioso temos que de fato propor outra lógica para a segurança pública, que parta de outra compreensão do problema que temos. Já foi a época da delinquência, do pequeno traficante ou ladrão de bairro, que você reprime e acaba o problema. Hoje, o menino da esquina faz parte de um mercado transnacional; se tirar ele, entra outro no dia seguinte, e teremos dois traficantes (um preso e um solto). Se o matarmos, teremos um traficante no lugar do morto e uma família destruída para sempre. Temos feito isso há quarenta anos. É nessa tecla que eu fico batendo eternamente, como outros colegas também, e continuarei a bater, porque é preciso que alguém fale algo diferente do que já se fez e deu errado.
Ponte — O programa fala em aumentar a inteligência das polícias como caminho para o “sufocamento econômico”. Você concorda com essa medida?
Gabriel Feltran — Quando nós pensamos no que a polícia deve fazer, é claro que esse é o caminho: investigação e não guerra. Quando se pensa no que a segurança pública deve fazer, enquanto política de Estado, isso é muitíssimo pouco. É que no Brasil nós já nos acostumamos a pensar que a segurança pública é a polícia, que é repressão, que é algo que vem depois do problema. O Ministro da Justiça e Segurança Pública poderia trabalhar para que a segurança pública não fosse vista como um problema de polícia. As alternativas que apresento vão em outra direção, que envolvem o sistema de Justiça como um todo, o Executivo, a coordenação de políticas induzidas do ponto de vista federal, mas que possam ser aplicadas pelos estados.
A Segurança Pública precisa de uma coordenação que favoreça a regulação de mercados ilegais, que paute inclusive dos controles interno e externo da polícia (as investigações de crimes cometidos por policiais). É necessário repensar toda a estratégia carcerária para diminuir o número de presos sem produzir insegurança. É preciso recobrar a soberania estatal por investigação de homicídios. Isso desmilitariza a segurança, como projeto. Não temos uma guerra do bem contra o mal, como afirmam os policiais ideologizados. Temos uma área de políticas públicas, tão técnica e política como qualquer outra, que tem que ser tratada como tal.
Não temos uma guerra do Estado contra o crime organizado. Isso é a maior das ficções. O que existe é um monte de dinheiro sendo gerado em mercados ilegais que estão cada vez mais associados entre si, e protegidos por policiais corrompidos que os achacam. Por milicianos que apoiam politicamente os policiais corruptos. E por bons policiais que vêem esses policiais corrompidos e violentos fazerem carreira a partir do dinheiro que ganham nesses mercados ilegais. Finalmente, sabemos que cadeia não isola ninguém da sociedade, ao contrário, produz exércitos faccionados. Seguiremos apostando no faz-de-conta?
Temos um histórico de dois mercados de droga muito lucrativos, o da maconha e o da cocaína. A cocaína se desdobra no mercado do crack e depois vira uma commodity de exportação absurdamente valorizada no mundo todo, nos últimos dez anos. O problema de insegurança deveria começar a ser pensado por esse histórico. Esses mercados vão financiar a enorme compra de armamento que se viu a seguir, a conexão com a lavagem de dinheiro, com o ouro, a madeira, o minério, a pedra preciosa, tudo.
Essa acumulação brutal vai gerar grupos criminais poderosos. Dois deles se tornam tão nacionais quanto internacionais, o Comando Vermelho e o PCC. Viviam em harmonia entre eles, e fizeram parcerias sólidas com máfias, cartéis e redes criminais do mundo todo, literalmente. Basicamente todos os outros pequenos grupos regionais ou locais de criminalidade, hoje, precisam dessas duas grandes facções, também aprendem e negociam com elas. Não há mais nenhum espaço local no Brasil, hoje, cujos atores marginais não tenham inspiração ou associação com essas duas grandes facções.
É preciso que se saiba que os mercados ilegais todos estão protegidos, no plano local, por policiais corrompidos. Além disso, esses mesmos policiais corrompidos estão extremamente politizados, sempre à extrema-direita. Se os governos continuarem jogando dinheiro na mão deles, isso vai piorar. O quadro político é esse. O quadro não é o de uma guerra do Estado bom, contra o crime organizado mau.
Você tem hoje polícias divididas: uma parte minoritária correta lutando contra a parte majoritária, que é essa politizada e corrupta, violenta, que achaca, que tem gosto em matar, em ativamente negociar nos mercados ilegais. A solução para isso não é dar dinheiro para a polícia resolver. Isso é o que se faz há décadas e isso volta como problema político, além de mais insegurança.
Nós não temos mais nem sequer soberania sobre nossos territórios, do ponto de vista do Estado. São muitos territórios onde quem decide quem vive e quem morre são as facções. Cada um dos leitores poderia procurar no Google o nome da sua cidade e o de uma facção. Verá que elas estão também na sua cidade. Será que não era o caso de tentar recuperar essa soberania? Será que a melhor forma de fazer isso é como foi feito nas UPPs? Indo lá, fazendo uma ocupação durante um, dois, três, cinco meses, um ano, caríssima,e depois ir embora e largar de novo para as facções? Ou será que há formas mais inteligentes de recuperar a soberania estatal, que foram testadas ao longo da história por Estados que deram certo?
Ponte — O que pode ser feito neste sentido para recuperar a soberania?
Gabriel Feltran — Precisa esclarecer homicídio, sobretudo. Quem decide quem vive e morre num território é o seu soberano. Não se pode dar licença para matar, porque se perde a soberania. É preciso um Plano Nacional de Esclarecimento de Homicídios, que resolva os casos e puna os autores de forma eficiente. Nós não esclarecemos nem 15% dos nossos homicídios, investigamos só 37%. Quer dizer, 63% dos homicídios não são sequer investigados. Nove estados não sabem nem dizer quantos crimes letais eles investigam.
Esses homicídios não investigados são justamente, claro, os dos meninos inscritos nos mercados ilegais como operadores baixos. Eles estão se matando na periferia, e a polícia os está matando nas periferias. Esses casos não são investigados porque se pensa que é bandido matando bandido, e que portanto é bom. Olha o absurdo de um Estado que se quer moderno trabalhar dessa forma. Diz-se isso abertamente entre quem deveria ser profissional da segurança.
Policiais deveriam ter vergonha de pensar assim, mas têm orgulho disso. O que está ficando de menos nessa conta não é bandido, bem sabemos. Cada dia tem mais. O que se perde, quando se deixa a facção investigar homicídio, é a soberania estatal. Quem define a justiça nesses casos em que o Estado larga, serão as facções. E elas vão se legitimar por isso.
Anteontem eu vi o filme novo do [Martin] Scorsese (Assassinos da Lua das Flores). O roteiro do filme é basicamente assim: você tem primeiro muita violência privada na terra indígena, definindo as relações de poder. De repente, chega o Estado e não dispara um tiro, mas começa a investigar os homicídios que foram feitos. Interrompe essa cadeia de poder privado, armado, essa perda de soberania. Depois vem o tribunal, o sistema de justiça. Os culpados são punidos. A história é real.
Nossos policiais não adoram os americanos? Era hora de aprender com eles. É um filme sobre como a investigação de homicídio soluciona problemas de violência armada e privada, em locais ermos e com poderes fáticos importantes, além de muito dinheiro jorrando. É preciso regular a violência do mercado ilegal. Temos que ter condição de fazer essa discussão.
Os nossos mercados ilegais são extremamente lucrativos, a violência armada não se faz senão para controlá-los. Quando se vê dados de migração recente no Brasil, você vê que ela é toda para as cidades pequenas e médias do Centro-Oeste. Não existe mais a migração que a gente estava acostumado a discutir, que era do Nordeste para as grandes capitais do Sudeste. Onde está a nova riqueza bruta do país hoje é justamente onde as facções estão reinando, o Centro-Oeste e o Norte do país. Ah, por causa do agronegócio? Não apenas, sobretudo pela cocaína. Tem também o agronegócio, a madeira, ouro, produtos eletrônicos, tem tudo que está circulando pelo mundo. Mas o grosso do dinheiro ali, que as pessoas podem tocar, é o da cocaína.
Parece que é uma cegueira, parece que a gente não quer ver o que está acontecendo. E a solução nos debates é sempre a mesma: vamos prender, vamos prender, vamos prender. As pessoas esquecem que as facções nasceram, cresceram, e continuam crescendo nas cadeias?
Em suma, o que está posto até aqui é mais do mesmo: é entregar dinheiro na mão da polícia para prender as pessoas que eles quiserem.
Por fim, sobre isso de sufocar economicamente o crime organizado. Hoje há muito conhecimento produzido sobre a principal facção do Brasil, o PCC. Esse conhecimento diz que não existe um caixa único do grupo. Você pode sufocar um grande traficante e a facção continua funcionando normalmente porque ela tem uma miríade de grandes traficantes que atuam como empresários autônomos, ligados a miríades de médios, pequenos e microtraficantes, apoiados pelas redes da facção.
O dinheiro que é sufocado, portanto, não é dinheiro da facção. É dinheiro daquele empresário. Outro ocupa o espaço e não falta droga para ninguém. Não seria o caso de ter uma estratégia estatal para recuperar esse dinheiro e torná-lo desenvolvimento?
Ponte — O ministro Dino defende que é essa é a primeira vez que é colocado em prática o Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Com o que foi posto até aqui, é possível afirmar isso?
Gabriel Feltran — Acho muito positivo que o Susp seja reativado. O problema não é que se ative a federalização institucional das políticas. Tem que ter uma direção de programa para isso. A questão é mais de conteúdo do que de forma.
O problema é termos um modelo claro de segurança pública, programas que induzam uma direção, não uma retórica ou discurso. “A partir de agora a gente vai sufocar economicamente”. Vamos ver. A gente ouve isso faz tempo e vemos o crime cada vez com mais dinheiro.
Ponte — Você considera o Susp tímido?
Gabriel Feltran — Eu acho tímido porque parece, pelo nome, que o Susp é parecido com o SUS, por exemplo, e infelizmente não é. A autonomia na ponta é gigantesca e a capacidade federal de indução ainda muito pequena.
O Susp não representa o que o SUS representa na saúde, uma coordenação federal de fato das políticas de segurança. O poder na segurança pública está muito mais na base, nas polícias estaduais e sobretudo na base dessas polícias. O Susp é a direção certa de novo, mas tem que entender o problema político enorme que é representado por uma parte efetiva das forças de segurança fazerem parte do crime, darem proteção ao crime.
Se você faz de conta que isso não existe e enche a polícia de dinheiro, esses grupos lá de baixo vão ganhando dinheiro de duas direções. Do orçamento público que você dá para eles, e do que eles achacam do crime. São muitos e muitos milhões provenientes desses achaques. Esses grupos corrompidos ficam muito mais poderosos do que os grupos sérios, que não fazem achaque, que não são corruptos. Se não regulamentar e diminuir o mercado ilegal, eles vão permanecer muito fortes.
Ponte — Quando pensamos na atuação de governos estaduais, por exemplo, o do Rio de Janeiro, nós vemos que tipo de trabalho voltado para a segurança pública? Há repetição de medidas falhas?
Gabriel Feltran — Há dias atrás estávamos discutindo a milícia que tinha matado três médicos. Antes estávamos discutindo o massacre do Jacarezinho, e mais para trás a morte do Ecko. Bem antes disso discutimos traficantes derrubando helicóptero da polícia, o massacre da Candelária, a morte de Tim Lopes lá atrás. Quer dizer, a gente vai ficando velho, vai vendo as coisas se repetirem.
Ao mesmo tempo, o problema vai se intensificando. Estamos naturalizando operações com 28 pessoas mortas, mas não só isso: essas operações podem ser seguidas de uma coletiva de imprensa messiânica, considerando herói quem morreu por não ter sido protegido, desafiando o STF e ameaçando pesquisadores. Onde isso vai parar?
Uma coisa é saber que existem morros nos quais a polícia não consegue entrar sem um blindado. Já seria absurdo o bastante. Mas outra coisa é uma situação na qual mais da metade (57,5%, segundo dados do Geni-UFF) da área da cidade ser ocupada por milícias e a outra parte ser ocupada por facção. Muito pior do que isso é ter uma polícia inteiramente controlada por grupos políticos que estão ligados aos mercados ilegais.
O poder na segurança pública vem de baixo para cima, e deveria ser diferente. As polícias controlam muito mais as Secretarias de Segurança do que o contrário, a ponto de no Rio de Janeiro não existir mais Secretaria de Segurança. Existe secretaria de uma polícia e secretaria de outra polícia, que é simplesmente a materialização do que acontece de fato em muitos outros lugares. Terrível.
“O que acontece na viatura fica na viatura”, os policiais sabem. É de lá que emana o poder, da polícia ostensiva que se vê como heróica e justifica sua corrupção por esse suposto heroísmo. Tem trabalhos muito bem feitos sobre isso já no Brasil, como o do Adilson Paes, por exemplo, que já foi um dia coronel da Polícia Militar de São Paulo, hoje um excelente intelectual.
É o grupo de policiais que está na rua, aquele que vai mandar, no limite, na Segurança Pública. Aí o poder vem da rua para a instituição, para o sistema de justiça, e dos estados para cima, até chegar lá no governo federal. Tudo ao contrário do que deveria ser.
A gente não tem hoje um controle claro do Estado sobre as polícias. Temos muito mais polícias agindo autonomamente. Isso passa como se fosse a lógica de uma política de segurança pública de um Estado democrático. Não é. Nós perdemos a dimensão do que seria segurança pública, do que seria garantir direito à segurança, de que estratégias técnicas deveriam ser tomadas racionalmente para diminuir o conflito armado brutal que existe entre facções e entre polícia e grupos criminais hoje.
Ponte — E o caso da Bahia que vem de gestão petistas há 16 anos? Ela é o exemplo de como a esquerda não tratou da segurança pública?
Gabriel Feltran — Na Bahia, a polícia está hiperpolarizada contra o governador e ele, sentindo que está emparedado, quer fazer um discurso pró-polícia. Politicamente falando, não interessa para a polícia da Bahia reduzir essas taxas de mortos, porque elas caem no colo do governador que elas vêem como adversário. O governador não controla as polícias, mas o inverso. Elas podem derrubá-lo, ele não as pode controlar. E isso não é um problema só da Bahia, é um problema de todos os estados.
Do ponto de vista da polícia, é muito rentável que as taxas sejam ruins na Bahia, porque ela joga na conta política do governador e o desgasta politicamente. Do ponto de vista do governador, como um governante do PT, ou apresenta uma solução diferente dessa, ou vai ser engolido por isso.
Ponte — O Senado discute a Lei Orgânica das Polícias, aprovada pelos deputados federais com um texto de manutenção da atual estrutura e com pontos polêmicos como a desarticulação das Ouvidorias. Com o parlamento que temos hoje, é possível enxergar um caminho progressista para a segurança pública?
Gabriel Feltran — Não, a gente vê muito retrocesso. No dia do primeiro turno, eu pensei comigo, está decretado o que vai acontecer. Não teve Bolsonaro depois, menos pior claro, mas no primeiro turno ficou evidente que o bolsonarismo foi o grande vencedor nas eleições legislativas.
O Lula se aliou com Deus e todo mundo contra o Bolsonaro. A gente vê de Guilherme Boulos ao Alckmin, Simone Tebet, Temer, todo mundo. Você tem uma aliança gigante de todo um espectro da política brasileira contra um grupo da extrema-direita e esse grupo, sozinho, vence no legislativo. Nas municipais talvez vejamos a mesma coisa.
O governo federal sendo do Lula, é muito difícil governar, mas tem que fazer. Tem que ir para outra direção, chamar o jogo para os critérios técnicos, mostrar que eles não estão entregando números aceitáveis, e não cair no discurso corporativo de agradar comandantes locais que não serão aliados jamais.
As últimas eleições todas têm produzido congressos extremamente conservadores e incapazes. Os caras estão lá fazendo vídeo para postar no TikTok ao invés de estarem discutindo assuntos sérios da República. Nos vídeos, o que se fala é que tem que matar bandido, é isso que circula na área de segurança.
Ponte — Qual o caminho para tratar da segurança pública na dimensão federal e dos estados?
Gabriel Feltran — É preciso mostrar que existe outra alternativa a esse modelo militarista, tosco, de gente tacanha e violenta como o bolsonarismo adora, que é parte do problema da insegurança. Esse caminho de uma outra política de Segurança, técnica e pensada como política pública, tem ao menos quatro pilares:
Primeiro: a construção de um Plano Nacional de Esclarecimento de Homicídios.
Fazer o Ministério Público agir, dar liderança à Polícia Federal, priorizar a investigação e não a militarização, para que a gente chegue na ponta resolvendo efetivamente situações drásticas de violência letal. Isso tiraria muito poder da mão dos grupos armados que hoje controlam a vida e a morte numa grande parte dos territórios do Brasil, na maior parte dos territórios urbanos do país. Isso é a primeira coisa. Primeiro pilar de uma política pública: retomar a soberania para o Estado. Não é preciso disparar um tiro para isso.
Segunda coisa: é preciso fazer controle externo e interno das polícias. Não é só câmera corporal, que inclusive é uma iniciativa de controle interno, produzida pela parte respeitável da polícia de São Paulo. Tem também muitas iniciativas de controle externo necessárias para os casos de corrupção, associação cotidiana a criminosos e proteção a eles. Transparência com os orçamentos, relação promíscua e ilegal com a segurança privada etc. Nós tivemos a ADPF 635 [ADPF das favelas], tivemos outras iniciativas que são base do que deve ser feito para que o Estado retome o poder sobre as suas forças de segurança. Por isso essas iniciativas são tão difamadas pela extrema-direita, porque é aí que se mexe com o poder, ilegal e despropositado, das polícias de hoje no Brasil.
A politização dessas forças de segurança, que inclusive deveria ser fortemente restringida institucionalmente, é um problema de primeira grandeza. Grupos armados a serviço de um Estado não podem ser autônomos politicamente. Eles têm que ser forças do Estado, absolutamente despolitizadas e técnicas, controladas pelos governos, que por sua vez são rotativos e democraticamente eleitos. Você não pode ter um grupo armado extremamente politizado e que não é trocado, não é submetido a eleição, fala o que quer e sobretudo faz o que quer, inclusive matar a torto e a direito. Esse grupo armado incrustrado no Estado hoje é uma ameaça concreta para o próprio Estado de direito.
Terceira coisa, o nosso sistema prisional. O modelo paulista foi seguido em praticamente todos os estados do Brasil. Expansão prisional, o mesmo modelo de ampliação do encarceramento. É basicamente entregar meninos jovens e paupérrimos na mão das facções que controlam esse sistema penitenciário, em todo o território nacional. Entregar um exército ávido por pertencimento a grupos que instrumentalizam essa vontade de pertencimento, que formam essa molecada no crime.
O que a gente está fazendo é formando gerações para favorecerem o crime, e não para se reinserirem socialmente. É preciso uma reforma absoluta da política carcerária, produzindo uma diminuição muito importante do contingente de pessoas presas. Penas alternativas, justiça restaurativa etc. Que fiquem presas apenas pessoas que cometeram crimes violentos e que representam perigo se estiverem na rua. Isso não é a realidade da enorme maioria de quem está preso hoje. E há gente muito violenta que não está contida. Tudo errado, em suma.
O último ponto, não menos importante e talvez mesmo o mais importante. Após recuperar a soberania para o Estado, tem que regular o mercado ilegal. Isso, sim, vai sufocar economicamente os grupos ilegais que fazem dinheiro em torno da ilegalidade das mercadorias que eles comercializam globalmente, ou que eles protegem ilegalmente, no caso os policiais corrompidos.
É preciso que haja regulação das economias ilegais, das economias ilícitas, a começar pelas economias de drogas, mas não só delas — o contrabando, roubo e furto de veículo, as estratégias de lavagem de dinheiro que hoje são transnacionais. Isso tem que vir da América Latina, a região de longe mais violenta do mundo, que concentra quase metade dos homicídios do planeta.
É preciso entender que o dinheiro que hoje circula no mundo criminal tem que sair da mão dos grupos criminais. Não deve ser difícil entender isso. Essa sim seria uma política de atuação econômica no mundo do crime. Não fazer como hoje, derrubar uma quadrilha e manter essa estrutura gigantesca de acumulação ilegal criando outras e outras.
Esses grupos estão recrutando pessoas pobres como seus trabalhadores mais baixos, os que vão ser expostos à violência. O moleque tem 3 anos de defasagem escolar aos 16, o mercado de trabalho está fechado para ele. Ele começa na biqueira, que sempre emprega os inempregáveis. A nossa segurança vai lá e os mata, os prende e os entrega para as facções, ao invés de protegê-los.
Se você olhar para esses quatro pontos de que falo acima, eles desmilitarizam o olhar para a segurança pública e tiram poder da parte corrupta das polícias, hoje dominantes. Eles reduzem o problema da ilegalidade enormemente. Bons policiais devem acolher esses pontos, porque eles são bons para eles. São pontos fundamentais de segurança pública que não continuam a guerra, ao contrário, atuam contra a guerra. Facilitam muito o trabalho das boas polícias.
Se você tem 100% do mercado de droga como sendo ilegal, é muito difícil para a polícia controlar, é mais fácil ganhar dinheiro com ele. Se essa franja de mercado ilegal se reduz para 10%, vai ser muito mais fácil fazer policiamento, prevenção de corrupção, hot spots e tudo mais. Essas medidas de que falo acima são boas para a polícia, são boas para os bons policiais. Deveriam ser apoiadas por eles e o são por alguns.
São medidas muito ruins para quem está ganhando dinheiro com o mercado ilegal, sendo policial, ou para quem acha que a guerra vai resolver alguma coisa, os maus policiais. Para quem se beneficiou desses 40 anos em que as políticas de segurança só pioraram, fazendo dinheiro sujo e justificando isso por seu heroísmo imaginário, que só expõe os próprios pares a mais riscos.
Para os que não se cansaram de matar, acham que têm que matar mais para ficar melhor a situação. Para os que comemoram por WhatsApp quando matam um bandido, mostrando fotos e fazendo sarcasmo. Para esses, minhas propostas aqui não devem ser positivas. Devem ser combatidas. Para os demais, e para o governo federal atual, estou seguro de que seriam.