‘Não podemos resumir nossa existência a uma opressão que não foi criada por nós’, diz Emicida

    Rapper paulistano lança o disco AmarElo no Teatro Municipal e fala à Ponte sobre música, fé, paternidade preta e maturidade

    Escrever um disco como quem manda uma carta de amor, recheada de temas como paisagens, sonhos, amizade, paternidade e fé. E fazer isso como uma crítica contundente ao estado de coisas. Neste momento em que lança o disco AmarElo e coleciona elogios e repercussão, o talento afiado de Emicida se volta ao afeto, a reivindicar o direito ao afeto. “A gente não pode resumir nossa existência a reagir a uma opressão que não foi criada por nós”, disse Emicida em conversa exclusiva com a Ponte.

    AmarElo foi aclamado em show realizado em um dos redutos da cultura tradicional paulistana, o Teatro Municipal, na semana passada. O título do álbum é inspirado em poema de Paulo Leminski (“amar é um elo / entre o azul / e o amarelo”). São 11 faixas que reúnem, segundo Emicida, heranças, referências e peculiaridades da essência da música brasileira. E que não são novidade para este artista nascido na zona norte de São Paulo: estão presentes em sua música desde sua primeira e clássica mixtape “Para Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida Até Que eu Cheguei Longe”, de 2009.

    Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

    Para além de samplear “Sujeito de Sorte”, música que Belchior compôs em 1976 e, nas vozes de Pablo Vittar e Majur, voltou a ser mania nacional (“Tenho sangrado demais / tenho chorado pra cachorro / ano passado eu morri / mas esse ano eu não morro”), o disco conta com várias participações especiais. Tem o samba de Zeca Pagodinho, o piano de Marcos Valle, a voz potente de Fabiana Cozza.

    Logo no começo da conversa com a Ponte, o palco do Municipal vira personagem. “Minha vó vai fazer 80 anos e nunca pisou aqui, nunca soube o que acontece aqui dentro. E pior que isso, nunca imaginou que o neto dela estaria nesse palco”, contou Emicida. Com a língua afiada e raciocínio sagaz presentes desde o início da carreira, Emicida inicia a entrevista tecendo sua crítica social expondo o racismo no Brasil como elemento estruturante da desigualdade que o país insiste em não encarar e resolver.

    Paternidade preta é outro tema da conversa. Emicida fala de sua convivência com as filhas, que no disco aparece na faixa “Cananeia, Iguape e Ilha Comprida”, do poder dessa relação de curar traumas da infância e construir o caminho do rapper como artista e homem negro distante da estereotipada imagem de brutalidade. “Tenho direito à minha sensibilidade e vou reivindicar a minha sensibilidade, meu direito de chorar, meu direito de sentir que eu sou fraco.”

    Fé e humanidade se misturam, na fala de Emicida, em uma proposta de romper com o eurocentrismo cego e com as imposições do que é sagrado e profano. O rapper a cultura do samba. Usa o rap como fio condutor, fala de candomblé e do agogô como abertura de caminhos. Coloca nossas “religiões musicais” como a música sacra brasileira.

    Para o músico, AmarElo é um disco sobre maturidade. E, para o pai e artista, “maturidade não te diminui, ela te enriquece”.

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