Negros e pobres percebem aumento maior da violência contra mulher em SP

    Rede Nossa SP aponta que 74% dos paulistanos sentem que a cidade está mais perigosa para mulheres; entre população negra, o número sobe para 81%

    Manifestante segura cartaz com mensagem direta contra a violência durante o 8M realizado todos os anos no Dia Internacional da Muher, em SP | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Os registros de violência contra a mulher cresceram na capital paulista no último ano e, com eles, a percepção da população de que a cidade está mais violenta para elas. Segundo a nova pesquisa “Viver em SP Mulher”, da Rede Nossa SP em parceria com o Ibope, 74% dos paulistanos acreditam que casos de assédio sexual e violência de gênero vêm aumentando na cidade. Entre as mulheres, 82% notam o crescimento, enquanto para os homens, a mesma percepção parte de 64% deles.

    Os dados do relatório, lançado nesta quarta-feira (4/3), encontram respaldo nos números divulgados no final de janeiro pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), que mostram um crescimento de 48,2% nos registros de feminicídio (de 29 para 43) e 2,8% nos casos de estupro (de 2.590 para 2.663) no município entre 2018 e 2019.  

    O estudo revela ainda uma discrepância na percepção de insegurança entre pessoas de diferentes classes sociais, raças e escolaridade. Entre os que se declararam pretos ou pardos, 81% notam o aumento em casos de assédio e violência sexual, ao passo em que entre os brancos o número cai para 69%. 

    No grupo daqueles com renda familiar de até dois salários mínimos, a evolução da violência é notada por 79%. Para quem ganha mais de cinco salários, 61% tem a mesma percepção. Já entre as pessoas das classes “D/E” e que completaram até o ensino fundamental, 89% e 85% notam crescimento nos crimes, respectivamente. Tanto para os participantes da classe “A” como para aqueles com ensino superior completo, o número cai para 64%.

    Para Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os dados revelados pelo estudo são um reflexo da realidade, ainda que influenciados por outros fatores sociais. “O que a gente tem, de um lado, é o empoderamento feminino, em que as mulheres estão mais conscientes dos seus direitos, com uma percepção cada vez mais clara e ampla do que é a violência contra elas”, afirma a especialista sobre a questão da subnotificação de casos desse tipo. “Mas a gente também tem que tomar cuidado pra não relativizar isso, porque não se sabe quantas mulheres não denunciavam há dez, quinze anos, e nem qual o percentual exato de mulheres que estão denunciando agora”, pondera.

    “Além disso, a gente não entende a violência baseada em gênero se não olhar pra essa interseccionalidade, como raça e classe, que são componentes fundamentais pra entender quem são os mais vulneráveis nessa história”, ressalta Bueno.

    Marcha pela vida das mulheres, o evento chamado de 8M, acontece todos os anos em vários locais do Brasil; imagem registrada na marcha de 2017, na avenida Paulista | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Ainda segundo a pesquisadora, mulheres negras e de classes sociais mais baixas estão mais expostas à violência por viverem em territórios com menos acesso à serviços públicos de qualidade, como transporte, delegacias e hospitais. “Isso de fato parece ter conexão com o dia a dia dessas mulheres, que estão sendo mais estupradas e mais agredidas por seus companheiros, estão sofrendo episódios de importunação sexual e estão morrendo mais, vítimas de feminicídio”, completa.

    Prioridade social

    A pesquisa mostra ainda que vem diminuindo o número de pessoas que apostam no aumento da pena ao agressor como medida prioritária do Estado no combate à violência doméstica e familiar. Em 2020, 48% seguem escolhendo essa como a principal ação pública a ser tomada, o que representa uma queda de 3 e 5 pontos percentuais em comparação a 2019 e 2018, respectivamente. 

    No mesmo cenário, segundo o estudo, cresceu o número de mulheres que priorizam a “ampliação de serviços de proteção a vítimas de violência em todas as regiões da cidade”, de 40% para 45%, em um ano. Também aumentou o número de paulistanos que veem como prioridade a criação de políticas de segurança comunitária que aproximariam a população de agentes de segurança. O aumento foi de 4 pontos percentuais de 2018 para 2020, o que representa 20% dos participantes atuais.

    “Essa é a boa notícia dessa pesquisa. No Brasil, qualquer debate que gira em torno da violência, a primeira e talvez a única saída tende a ser a criminalização e o aumento de pena, numa aposta de que a prisão ou leis penais por si só seriam capazes de alterar comportamentos. Mas isso é falacioso porque se fosse assim, o Brasil não tinha crime”, ressalta Bueno.

    A pesquisadora e educadora nas áreas de gestão pública e gênero Amanda Sadalla, atualmente mestranda na Escola de Governo de Oxford, reforça a tese de Bueno. “Parece que agora a sociedade está começando a entender que só a criminalização não funciona. Nesse sentido, a gente tem dados como o do programa Ministério Público ‘Tempo de Despertar’, implementado pela Gabriela Mansur em que a reincidência dos homens que passaram por um programa educativo de ressocialização foi de 65% para 2%, entre 2014 e 2016”, destaca.

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    “Então, o homem que entende que o que ele fez tá errado, ele não vai repetir. O homem que entende que o que ele fez está certo e que a sociedade está sendo injusta com ele, vai ficar mais violento ainda e vai descontar isso na mulher”, complementa Sadalla. 

    Medo, assédio e denúncia

    De acordo com o estudo, 51% das mulheres entrevistadas deixam de andar a pé à noite nas ruas da cidade com medo de violência, enquanto 43% afirmam que sofreram algum tipo de assédio dentro de transportes coletivos, o que representa um aumento de 18 pontos percentuais na comparação com 2018.

    Além disso, três em cada 10 paulistanas (32%) afirmam que se sentiriam mais à vontade para denunciar casos de assédio e/ou violência por meio de aplicativos de celular, enquanto apenas 21% delas denunciariam presencialmente em delegacias da mulher – entre elas, apenas 29% são pretas ou pardas.

    “Muitas vezes o atendimento nas delegacias é precário, não tem profissionais suficiente pra fazer os atendimentos nesses espaços e muitas vezes ela [a vítima] é revitimizada e mal atendida. Então, às vezes o constrangimento e o medo de ser maltratada é tão grande que isso as desestimulam [a denunciar presencialmente]”, justifica Samira Bueno.

    Acolhimento e conscientização

    Para as especialistas ouvidas pela Ponte, é necessário que os governos estadual e municipal de São Paulo priorizem o fortalecimento e a integração de serviços públicos de acolhimento, conscientização e apoio às mulheres vítimas de violência.

    “A gente tem que cobrar ações de longo e curto prazos. E isso significa treinamento pras pessoas que trabalham no transporte público sobre como ajudar essa mulher, o que fazer e como reagir [em um caso flagrante de violência]. Treinamento aos policiais, para eles entenderem que a mulher não tem culpa e poderem ajudar. Treinamento nas escolas e nos serviços de saúde pras pessoas poderem identificar quando essa mulher tá sofrendo a violência”, argumenta Amanda Sadalla.

    Em segundo lugar, pondera a educadora, “a população brasileira em si tem uma percepção de que [para casos de] violência doméstica e violência de gênero têm que se buscar ajuda na delegacia e na polícia. Só que, principalmente, para os casos de violência doméstica, essa mulher, mesmo que vá na delegacia, quando voltar para casa vai seguir dependendo financeiramente desse agressor. Então quem poderia resolver esse problema talvez fosse a assistência social, a área da saúde, de assistência infantil, habitação, e por aí vai”.

    Outro lado

    Em nota, a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo) afirma que o governo estadual “tem intensificado as ações de combate a todos os tipos de violência contra a mulher e trabalhado para aumentar o número de notificações desse crime, inclusive com a realização de campanhas publicitárias para estimular as denúncias”.

    “Paralelamente, ampliou de uma para 10 as DDMs 24 horas, sendo sete na capital e as outras nas cidades de Campinas, Santos e Sorocaba”, diz a nota. Outras 30 serão inauguradas até 2022. Atualmente, existem 133 delegacias especializadas funcionando em todo o estado de São Paulo.

    A SSP-SP afirma ainda que em 2019, “1.851 estupradores foram presos no estado, uma alta de 6% em relação a 2018. Com relação as 177 ocorrências de feminicídios registradas em 2019, em 76 delas houve prisão em flagrante – 22,6% a mais que em 2018. Para fazer a denúncia, a vítima ou seu familiar pode comparecer em qualquer unidade policial – os policiais adotam o Protocolo Único de Atendimento, que estabelece padrão para o acolhimento das vítimas”, conclui o posicionamento oficial.

    Sobre a pesquisa

    A nova pesquisa “Viver em SP Mulher” foi produzida em dezembro de 2019 com 800 moradores da cidade de São Paulo. Deles, 56% são mulheres e, entre elas, 48% são pretas ou pardas e 48% brancas (4% responderam “outras”); 36% são da classe “A/B”, 54% “B/C” e 10% D/E e 44% têm renda mensal de até dois salários mínimos. Confira versão simplificada da pesquisa ou a íntegra no site do Nossa São Paulo.

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