Neon Cunha, ativista trans: ‘Lembro de gente morta com tiro na testa, com a cabeça debaixo de coturno de policial’

    Entrevistada do mês no Pluralidades, série de lives da Ponte, ícone da luta pelos direitos de mulheres trans e travestis relembra da violência policial contra essa população em SP e do seu pedido à OEA para ter uma “morte digna”

    “Gosto de dizer que eu sou filha de uma faxineira”, apresentou-se Neon Cunha logo no início do 6º episódio da série de lives da Ponte Pluralidades, conduzido pelo repórter Caê Vasconcelos. “Mulher negra, ameríndia, transgênera pela ordem de percepção”, prossegue altiva, sem vacilar. Ela se define também como ativista independente, pois se dá “a autonomia de estar onde quiser, com quem quiser”.

    Expulsa de casa muito cedo, “aprendeu se virar muito só, que conhece exclusões sociais”. “A filha de faxineira aprende uma coisa muito cedo: ser invisível e enxergar todos os detalhes”. Com 51 anos, afirma que não teve uma vida plena, nem infância, nem adolescência. Trabalha na Prefeitura de São Bernardo do Campo há 39 anos, mas com as mudanças na legislação previdenciária deve trabalhar mais 12 até se aposentar. “Se esse não é um sistema perverso, que faz analogia ao sistema escravo, não sei que sistema é esse. Não sei como as pessoas não estão discutindo isso”.

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    As humilhações e agressões sofridas ao longo da vida foram sendo transformadas em lutas em diferentes frentes. “Articulo com mães que são vítimas do Estado, com mulheres catadoras, com as Mulheres da Luz. Estou esparrada porque a pauta, para mim, é de mulher”, explicou.

    Operação Tarântula

    Dados da União Nacional LGBT apontam que 35 anos é a idade média de uma pessoa trans aqui no Brasil. Uma pessoa que chega aos 51 pode ser considerada sobrevivente. E quem sobreviveu operações de extermínio organizadas pelo Estado?

    Em 1968, em plena ditadura militar, a rainha Elizabeth II visita São Paulo. Para tornar a vista da cidade mais aprazível para os olhos nobres o prefeito da época, Faria Lima, ordena a primeira operação de “limpeza” do centro da cidade. Assim começou a tradição de higienização do centro, que se vale até mesmo de extermínio humano para deixá-lo mais civilizado.

    Foram nos anos 80, no entanto, que as operações se tornam mais frequentes, um padrão do Estado. É nesse contexto que Neon, então com 12 anos, passa a frequentar a região do centro de São Paulo, tendo contato pela primeira vez com mulheres trans e travestis.

    “Lembro de algumas violências. Me deu um estalo um dia, e eu comecei a lembrar’, confessa. “A gente está falando de extermínio mesmo, de eu ter visto gente sendo executada com tiro na testa, de ter a cabeça prensada na calçada por coturno de policial, de ser negociada por policiais”. Relembra que, na negociação, os PMs queriam as mais novas para ir para o quarto com eles. Quando foi sua vez, lembrou-se da orientação das mulheres mais velhas e fingiu passar mal para ser liberada do quarto para onde quatro policiais a levaram.

    Arrastão, Rondão, Riquete, Tarântula são alguns nomes das operações violentas de extermínio no centro da capital. E o alvo, como sempre, era bem definido: mulheres trans, travestis e as LGBTs pobres. Essas operações eram tão normalizadas a ponto de o prefeito Jânio Quadros dizer: “nós precisamos limpar a cidade dos anormais”, relembra Neon.  É interessante observar que as intenções de Quadros já eram cantadas em seu famoso jingle político “varre, varre, vassourinha”. A ativista aponta que havia um “pacto social para a exclusão dessa população do centro da cidade”.

    Estado e imprensa se uniam. O delegado José Wilson Richetti passava a agenda das batidas aos jornalistas para que estes pudessem cobrir adequadamente o espetáculo da limpeza promovida pelo Estado. Tomava geral da polícia e do bandido”, afirmou Neon, cuja a memória ainda traz lembranças de pessoas que se suicidaram para não cair nas mãos da polícia.

    “Aprendi muito cedo sendo olheira de cafetina que, às vezes, a invisibilidade te dá uma segurança de existência”, refletiu ainda olhando para seu passado. “A ditadura termina em 85, as operações de extermínio vão até os anos 2000, vira e mexe surge alguém com essa ideia”.

    Vitória na OEA

    Tendo sobrevivido à ditadura, Neon chega à segunda década do século XXI decidida a “tornar a mulher em si visível”. Em 2014, ela tomou duas decisões: colocar prótese e retificar seus documentos. Estava cansada de ter a vida negada pelo outro, pelo Estado, pela sociedade. A primeira decisão foi tornada real sem problemas. Já a segunda precisou de uma nova batalha, uma que entraria para história.

    Em 2016, Neon pede morte assistida à OEA (Organização dos Estados Americanos) caso seu gênero e sua identidade não fossem reconhecidos pelo Estado brasileiro. O caso fez com que fosse a primeira pessoa trans a falar presencialmente à OEA a convite do Géledes – Instituto da Mulher Negra. Mas não seria apenas por isso que ela entraria para história.

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    “[Eu] não existia. O que adiantava um corpo sem nome, sem gênero, ocupando um espaço determinado pelo outro o tempo todo. Era a morte em vida. Eu só queria oficializar a morte com dignidade”, esclareceu durante o Pluralidades. “Era uma forma de morrer com a dignidade que é negada às pessoas trans”.

    Apesar de percalços, ela saiu vitoriosa de mais essa batalha. Teve seu direito reconhecido na Vara Cível da Família. “Ninguém imaginava que entrou na vara da família”, destaca. Neon ainda aponta que, pela primeira vez, usou-se a Constituição Federal para garantir o direito ao registro.

    “O que me irrita é saber que desde 88 nosso direito tava lá e que um bando de gente desonesta lucrou com nossos sofrimentos”, desabafa, citando os advogados que, antes da decisão do STF, cobravam fortunas para fazer retificação de documentos para pessoas trans.

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