Professora da rede pública de São Paulo, Adriana Curcio Cosme é parente do coronel Antonio Curcio Neto, que comandou o DOI-Codi em Recife (PE) nos anos 1970; em áudio, insufla bolsonaristas a pedir intervenção militar
Adriana Regina Curcio Cosme, 47, é uma bolsonarista ferrenha nas redes sociais. Nesta segunda-feira (31/10), ela encaminhou uma mensagem de voz sem lastro na realidade em grupos de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) insuflando os bloqueios ilegais de caminhoneiros em rodovias e incentivando protestos para que as Forças Armadas promovam um golpe militar.
“Não é ‘fora, Supremo’, ‘fora, Xande’, ‘Lula na cadeia’, não. É intervenção militar. Artigo 142. Só. Os caminhoneiros começaram e nós vamos terminar. Juntando os dois, acabou, assunto resolvido”, declarou no áudio em referência ao artigo da Constituição Federal que define que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Contudo, o texto, segundo consenso de juristas e até da Secretaria-Geral da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, o tal artigo não autoriza uma intervenção militar para “restaurar a ordem” nem interferir no Executivo ou no Legislativo pelo princípio de separação dos poderes previsto na Constituição.
Adriana é professora da rede pública estadual de São Paulo e neta do coronel Antonio Curcio Neto, que comandou o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), órgão do Exército que foi responsável por prisões, tortura e assassinatos, em Recife (PE), de abril de 1973 a maio de 1974.
A mãe de Adriana, Aurea Regina, e suas tias Ana Lucia e Angela Maria recebem pensão desde 2006 após a morte do militar, que subiu a patente para marechal, a mais alta do Exército. As remunerações líquidas, para cada uma das três, são acima de R$ 8 mil por mês.
De acordo com relatório da Comissão Nacional da Verdade, Curcio Neto foi apontado pelo ex-preso político José Nivaldo Júnior como seu sequestrador, em agosto de 1973, e indicado pelo jornalista Carlos Garcia como responsável por sua detenção, em março de 1974. Ainda na época, foram mortos sob tortura no departamento dirigido por ele os militantes Manoel Aleixo da Silva, Gildo Macedo Lacerda e José Carlos Novaes da Matta Machado.
O Ministério Público Federal ainda apontou que o coronel tinha conhecimento e participação nos assassinatos dos militantes Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos, 1973, cujos laudos necroscópicos foram falsificados por um médico legista para esconder os sinais de tortura.
Na mensagem de voz, Adriana contesta a derrota de Bolsonaro e diz ter propriedade de falar sobre intervenção militar por conta do parentesco, mas mente ao dizer que o avô prendeu a ex-presidente Dilma Rousseff e o ex-ministro José Dirceu quando eram ativistas políticos na época da ditadura.
“Eu vou falar isso porque eu posso falar, porque minha família é militar. Alguns já foram para a reserva e alguns estão na ativa ainda. Inclusive o meu avô, em 64, ele era coronel [inaudível] em São Paulo. Ele prendeu a Dilma, o Zé Dirceu. Foi ele em pessoa. Então, o que eu vou falar é de propriedade, não é boato, não peguei na internet, tô falando eu, eu Adriana. Inclusive se vocês procurarem o sobrenome Curcio na internet, vocês vão ver quem é meu avô, de quem é que estou dizendo. Meu nome é Adriana Regina Curcio Cosme”, diz.
Para ela, o silêncio de Bolsonaro, que demorou quase 48 horas para se manifestar timidamente após a derrota nas urnas, no domingo (30/10), é sinal de aprovação dos bloqueios que o Supremo Tribunal Federal já determinou o encerramento imediato por serem antidemocráticos e contestarem o resultado das eleições, sob pena de multa de R$ 100 mil por hora ao diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Silvinei Vasques, por “omissão” e “inércia” e até prisão em flagrante em caso de desobediência.
“Ele [Bolsonaro] não pode falar, ele não pode falar nada. Inclusive, pelos caminhoneiros estarem parados Brasil afora, ele não pode falar para os caminhoneiros ‘continuem’. Isso é crime. E também não vai falar para parar porque não é o que ele quer. Então, ele vai ficar quieto”, especula a professora. Em seu pronunciamento, Bolsonaro incentivou os protestos “nas quatro linhas da Constituição”, dizendo que é a “esquerda” que impede o “direito de ir e vir”. Até o momento, sua fala não parece ter surtido efeito entre os golpistas, que continuam mobilizados.
Adriana insiste na teoria inexistente de que o país vai ser tomado pelo comunismo. “Então, se realmente quisermos lutar pelo nosso país para não virar um país comunista, para o Lula não entrar, a única forma é essa e já está acontecendo”.
Ela afirma fantasiosamente que o objetivo do golpe é convocar novas eleições para que Bolsonaro seja eleito. “Quarta [2/11, feriado de Finados], todo mundo para rua. Na quarta-feira à noite, o Exército já toma conta de tudo, as Forças Armadas. Quinta-feira, a gente, porque é tudo na madrugada, a gente acorda já estão todos os verdinhos na rua. O que eles fazem? Fecha o Supremo, o Congresso, fecha os poderes. O Bolsonaro sai, todo mundo sai. A única coisa que não mexe são com as cidades, prefeitos, vereadores. Eles tiram senadores, deputados e os ministros, que é o que a gente quer. No ano que vem, vão entrar os nossos que foram eleitos”.
Vasques será investigado por conta da atuação da PRF em mais de 500 operações que aconteceram no domingo (30) com a suposta pretensão de tumultuar a votação e pelos bloqueios ilegais, já que a corporação tem se portado de forma conivente às manifestações. Vídeos em uma rodovia que divide as cidades de Blumenau e Rio do Sul, em Santa Catarina, mostram um agente dizendo que não vai multar os bolsonaristas. Em outro, em São Paulo, policiais ajudaram os manifestantes a cortar a cerca das proximidades do aeroporto internacional de Guarulhos.
A Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais (FenaPRF) publicou uma nota, nesta terça-feira (1/11), cobrando “postura firme” de Vasques para que a corporação cumpra suas “funções constitucionais”. “A postura do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, em manter o silêncio e não reconhecer o resultado das urnas acaba dificultando a pacificação do país, estimulando uma parte de seus seguidores a adotarem ações de bloqueios nas estradas brasileiras”, diz trecho do texto.
De acordo com o UOL, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já baniu 27 grupos no Telegram, com mais de 153 mil seguidores, que defendiam um golpe militar e convocavam protestos contra o resultado das eleições deste ano. O Núcleo Jornalismo identificou 141 grupos defendendo paralisação e 250 incentivando violência contra opositores de esquerda.
Schadenfreude
Enquanto isso, os opositores de Bolsonaro caçoam nas redes, em arroubos de schadenfreude (lê-se “xadenfroide”), expressão alemã que indica o sentimento de satisfação e alegria despertado pelo infortúnio alheio.
Postagens nas redes sociais mostram momentos em que golpistas comemoram notícias mentirosas como se fossem verdade — em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, vídeos mostram pessoas comemorando uma inexistente prisão do ministro do STF Alexandre de Moraes.
Piadas velhas, incluindo a notícia de que um comboio das Forças Armadas estaria se dirigindo a Brasília para aparar a grama e pintar o meio-fio para a posse de Lula (PT), também circulam. Um usuário mais engajado fez questão de abrir uma thread no Twitter registrando momentos em que os golpistas recebiam “intervenção militar” na forma de spray de pimenta ou bombas de gás lacrimogêneo.
A polícia também está contando com um apoio civil insuspeito para desfazer os pontos de bloqueio. Torcidas organizadas de futebol com caravanas marcadas para acompanhar jogos de seus times em outros estados já prometeram que vão retirar os golpistas da pista na marra. A Galoucura, torcida do Atlético Mineiro, já puxou a fila e, aos gritos de “aqui é Galo, buceta!”, já garante ter acabado com dois bloqueios.
O que diz a Secretaria de Educação de SP
A Ponte questionou a pasta a respeito da mensagem da professora Adriana Cosme. A assessoria encaminhou a seguinte nota e não disse se a servidora será submetida a alguma apuração administrativa.
A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo respeita a democracia e seguirá comprometida pelo direito à educação de qualidade para todos. Sobre a servidora mencionada pela reportagem, a mesma está afastada da sala de aula, em licença saúde desde 2016.
A reportagem também procurou Adriana por mensagem no Facebook, mas não teve resposta até a publicação.