‘Nos ajudem enquanto estamos vivas’: cantora trans Maria Flor escapou da violência pela arte

Atração da 5ª edição do festival Fala!, artista paraense comenta pesquisa da Iniciativa Negra que traçou diagnóstico sobre a proteção social para mulheres negras, cis, trans e travestis em Altamira e Belém

Maria Flor, artista do Pará
Maria Flor, artista e ativista do Pará | Foto: Hugo Chaves/Divulgação

A plateia não piscou quando Maria Flor, 26 anos, entrou no auditório David Mufarrej, na Universidade Amazônia (Unama), em Belém (PA). A voz doce da artista, uma das atrações do Fala! Festival de Comunicação, Culturas e Jornalismo de Causas, promovido pela Ponte em parceria com entidades como Alma Preta, Marco Zero Conteúdo e Papo Reto, contrastava com a mensagem impactante que ela trazia: “Nos ajudem enquanto estamos vivas”.

Mulher trans, Maria Flor mora no Pará desde a infância. Por muito tempo, trocou o dia pela noite com medo de se expor e atrair a intolerância da sociedade. Hoje, tenta escapar da violência pela arte, mas o temor, conta, ainda é presente.

Maria Flor conta já ter sido perseguida nas ruas. Uma vez, o agressor tentou atirar um caixote contra ela. Em outra oportunidade, a tentativa de agressão ocorreu com uma faca.

A artista foi expulsa de casa aos 14 anos. Passou então, com essa idade, a se prostituir. Na época, fazia como muitas amigas trans: trocava o dia pela noite para evitar a violência. As aulas eram só no período noturno, assim como coisas banais do cotidiano, como ir ao mercado ou pegar um ônibus.

Sua primeira apresentação foi em 7 de setembro de 2021, quando participou do Grito dos Excluídos, em Santarém (PA). A manifestação cultural foi em formato de slam — e a artista misturou poesia, música e informações sobre a marginalização dos corpos trans. Começava aí uma outra história de vida para ela.

O Pará vive uma crise de violência contra mulheres negras, cis, trans e travestis. Essa é a conclusão de um estudo lançado esta terça-feira (27/8) pela Iniciativa Negra por Uma Nova Política de Drogas. 

A pesquisa, Realidades Invisíveis: política de drogas, megaprojetos e a sobrevivência de mulheres negras cis, trans e travestis na Amazônia paraense, traçou um diagnóstico sobre a proteção social para esses grupos nas cidades de Altamira e Belém, no contexto da guerra às drogas. A conclusão é que falta assistência geral. Em Altamira, cidade marcada pela construção da usina hidrelétrica Belo Monte, 53% das mulheres entrevistadas disseram desconhecer a rede de proteção e acolhimento na cidade.

“Essas mulheres negras, trans ou travestis são mais negligenciadas pelo Estado”, confirma Dandara Rudsan, uma das coordenadoras da pesquisa. A falta de conhecimento sobre os sistemas de proteção também impressiona Dandara. “Nem o direito à informação o Estado faz chegar nessas mulheres”, diz.

Por isso, afirma a pesquisadora, muitas mulheres vivem à noite, em uma vida alternativa, “uma vida mais cheia de protocolos de segurança”.

Ao todo, foram ouvidas 60 mulheres, 30 de cada cidade. Destas, 73,3% declaram-se mulheres cisgêneras, 25% mulheres transgêneras e 1,7%, não binárias. Quase todas as entrevistadas eram negras, 87% em Altamira e quase 100% em Belém. 

O estudo mostrou haver uma disparidade nos serviços voltados ao atendimento dessas mulheres. Belém tem mais unidades do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Contudo, apenas uma delegacia especializada atende à população de 1,3 milhão de habitantes.

Leia íntegra do estudo Realidades Invisíveis

Em Altamira, a situação é ainda pior. A cidade tem apenas serviços voltados para o atendimento de mulheres em situação de vulnerabilidade econômica ou vítimas de violência. Falta aparato para acolher mulheres usuárias de drogas — um problema, já que 56,7% das entrevistadas usam drogas (ilícitas ou lícitas).

A violência da usina

A pesquisa avaliou que a construção da usina de Belo Monte contribuiu para o aumento da violência contra mulheres em Altamira. O Mapa da Violência 2016 apontou a cidade como a mais violenta do país, no mesmo ano em que a hidrelétrica foi inaugurada. Para os pesquisadores, a política compensatória com ações de educação, saneamento e saúde não se concretizou.

Parcerias entre o governo do Pará e a Norte Energia determinavam que a empresa viabilizasse a implementação de ações de fortalecimento dos órgãos de segurança. O acordo foi assinado em 2011, com investimento previsto de R$ 115 milhões. Até 2014, no entanto, 70% do valor havia sido aportado e os indicadores da violência em Altamira pioraram. 

Leia também: Policial bate em mulher durante abordagem em Itambaracá (PR)

Na cidade, 24% das mulheres entrevistadas contaram já terem sido vítimas de tentativa de feminicídio ou agressão física. 33% contaram terem sido vítimas de violência sexual.

A situação não é exclusiva do Pará. O estudo Violência sexual durante a vida em mulheres trans e travestis (MTT) no Brasil levantou dados de cinco capitais — Campo Grande, Manaus, Porto Alegre, Salvador e São Paulo.

Foram entrevistadas 1.317 mulheres trans e travestis. Desse total, 53% relatou ter sofrido violência sexual. Para 64% dessas mulheres, a violência se repetiu. A maioria (93,2%) não procurou serviços de saúde ou denunciou a agressão que sofreu (94%).

A falta de moradia e o trabalho com sexo mostram-se fatores associados aos casos de violência. Maria Flor corrobora essa análise. A artista conta que são poucas as mulheres trans que conhece que têm emprego fixo. “Para conseguirmos trabalhar, temos que nos passar por pessoas cis”, afirma.

Rotina de agressões

A capital paraense tem números de violência alarmantes. 20% das mulheres entrevistadas em Belém contaram já terem sofrido tentativa de feminicídio ou agressão física. Maria Flor conta ter sido perseguida nas ruas mais de uma vez. Em certa ocasião, o agressor tentou atirar um caixote contra ela. Em outra, a tentativa de agressão ocorreu com uma faca.

A artista viu amigas morrerem e outras apanhar na rua. Ela lembra de uma situação em que uma colega foi à padaria e retornou com o rosto desfigurado e sem alguns dentes.

Foi na arte — e no ativismo — que Maria encontrou seu lugar. A artista criou o Mulambra, um trabalho voltado ao questionamento do desmatamento, poluição e de corpos marginalizados dentro da Amazônia. A performance inicial era da jovem como drag queen. Maria montava-se de planta, terra e galho seco. 

Maria Flor fez intervenção em calça com os nomes, idades e datas de morte de travestis paraenses | Foto: Instagram/Divulgação

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Mulambra acabou virando o nome de uma marca de roupas idealizada por Maria Flor. Ela produz estamparia manual e upcycling (reciclagem de tecidos e objetos). No conceito, estão peças com teor político. Uma delas, uma calça jeans, recebeu o nome de travestis mortas pela violência. “A moda também tem esse papel de comunicar”, defende.

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou as prefeituras de Altamira e Belém, mas não teve retorno. Caso as respostas cheguem, a reportagem será atualizada. 

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