Novo livro de Carolina de Jesus revela o que editores brancos escondiam

    ‘Meu Sonho é Escrever’ traz textos inéditos de uma das principais autoras da literatura negra brasileira

    Livro ‘Meu sonho é escrever’ | Foto: Alma Preta

    “Eu disse: o meu Sonho é escrever! / Responde o branco: ela é louca. / O que as negras devem fazer… / É ir pro tanque lavar roupa”.

    Desse trecho, que integra o livro Antologia Pessoal (1996), de Carolina Maria de Jesus, saiu o título para a mais nova obra da escritora. Meu Sonho é Escrever – Contos Inéditos e Outros Escritos, nono livro da autora, que foi lançado em 18 de março, durante a Mostra de Literatura Negra Ciclo Contínuo, em São Paulo.

    Uma das atividades da mostra, que ocorreu de 16 a 18 de março no Centro Cultural Galeria Olido, foi a mesa de discussão sobre Carolina, que morreu em 1977, aos 62 anos. Organizadora do novo livro, Raffaella Fernandez conta que a obra inclui “dois prólogos que foram retirados das versões publicadas por editores brancos”. Segundo ela, “Carolina os escreveu para dizer como ela se inseria e o que era literatura para ela”. Ainda sobre os escritos inéditos, a organizadora afirmou que a escritora fazia uma mistura entre a cultura popular e o registro erudito, e usava falas do avô e provérbios reproduzidos por ele, trazidos da África.

    Vera Eunice, filha de Carolina | Foto: Alma Preta

    Além de Raffaella, a mesa sobre Carolina Maria de Jesus contou com a pesquisadora Fernanda Rodrigues Miranda e com o curador Marciano Ventura, e teve ainda a presença da filha da autora, Vera Eunice de Jesus Lima que, diante da sala cheia, recordou o pedido feito a ela por sua mãe antes de morrer. Em uma carta deixada com uma vizinha, Carolina pediu à filha para divulgar seu nome.

    Antes do quarto de despejo

    Mineira nascida na cidade de Sacramento, em 1914, Carolina Maria de Jesus dizia ter descoberto a vocação para a escrita ainda na infância. “Ela fazia muitas perguntas, se metia muito nas conversas, então muita gente falava para a mãe dela ‘que negrinha chata!’”, recordou Vera Eunice, a filha de Carolina, durante o lançamento. “Ela reclamava muito de dor de cabeça, então a mãe dela a levou no espírita, que disse: ‘Sua filha não é chata, sua filha é uma poetisa!’”, contou.

    Carolina foi presa injustamente duas vezes. Na primeira, foi acusada por policiais de exercer bruxaria, por estar lendo um livro espírita. Depois da segunda prisão, quando foi acusada de roubar o dinheiro de um padre, a escritora migrou de Minas Gerais para São Paulo a pé.

    “Levaram para a cadeia, bateram muito nela, ela desmaiou, quebrou o braço. Mas sempre negou as acusações. Quando acharam o dinheiro, ela disse ‘aqui eu não fico mais’. Saiu sem comida, sem roupa e veio embora andando”, contou a filha.

    A escritora ficou internacionalmente conhecida em 1960, com o auxílio do jornalista Audálio Dantas, com o lançamento de Quarto de Despejo, livro traduzido para 13 idiomas e distribuído em 49 países, que traz seus relatos diários. Com mais de 100 mil exemplares vendidos, é considerada uma das principais obras da literatura negra brasileira. Retrata a realidade da favela do Canindé, na Zona Norte de São Paulo, a partir da visão de Carolina, que trabalhou como doméstica e catadora de lixo.

    Fernanda Rodrigues, Raffaella Fernandez e Marciano Ventura no lançamento do livro | Foto: Alma Preta

    “Carolina escolheu ser catadora de lixo, escolheu um papel para sua vida. Dizia que preferia ser catadora, porque assim ela poderia ser dona do seu tempo e poderia ler. E mais, conseguia até encontrar uns caderninhos de vez em quando, que poderia reaproveitar e escrever”, afirmou Raffaella Fernandez.

    Contra o sistema literário

    Escritora negra, pobre, mãe solteira e periférica, e tendo cursado apenas as séries iniciais do ensino básico, Carolina Maria de Jesus quebrou paradigmas do mercado literário brasileiro ao conquistar reconhecimento como uma das primeiras escritoras negras do país.

    “O sistema literário brasileiro opera dentro da chave da invisibilização do sujeito negro e dos sujeitos não brancos. Então, colocar a Carolina nesse lugar em que ela merece estar é a nossa demanda, o que cabe à gente”, afirmou Fernanda Rodrigues Miranda.

    A pesquisadora aponta que, mesmo com tal reconhecimento, ainda há muito a ser feito em busca da igualdade neste cenário: “Todas as esferas trabalham com o racismo, com a centralização da fala no homem branco. Então, o desafio está só no começo, acho que a gente só está chegando nessa guerra e ainda há muita coisa para fazer. É assim que a gente entra no sistema literário, brigando!”, concluiu.

    A Mostra de Literatura Negra Ciclo Contínuo teve curadoria de Marciano Ventura em parceria com a agência de conteúdo Alma Preta, o Coletivo Perifatividade, o Clube de Leitura Negrita e a Produtora Sá, além de patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura.

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