Direitos em Cena | O anjo da morte do nazismo em Diadema (SP)

Documentário “Eldorado – Mengele Vivo ou Morto?” conta como o carrasco alemão viveu uma vida de anônimo no ABC paulista

Um botequim próximo da Represa Billings num calor de domingo. Surge um senhor de casacão sobretudo, paletó e gravata apoiado numa bengalinha. De bigode volumoso, o estranho personagem pede uma cerveja preta. Bebe rapidamente o seu aperitivo e volta andando com a sua bengalinha para sua residência localizada ali perto no bairro do Eldorado, em Diadema (Grande SP). Ninguém imaginava que aquele excêntrico cavalheiro não era apenas um exótico senhor. Ele dizia que seu nome era Pedro Hochbinchler. Mas esse era apenas um dos codinomes do oficial nazista Josef Mengele (1911-1979), médico responsável pelo campo de concentração de Auschwitz na Segunda Guerra Mundial. “A primeira vez que eu ouvi falar que um médico nazista tinha morado em Diadema foi quando eu tinha onze anos de idade”, lembra o cineasta, músico e produtor audiovisual Marcelo Felipe Sampaio. O garoto ficou muito impressionado por saber que um membro da SS nazista era praticamente seu vizinho.

Em dezembro de 2004, Sampaio pegou uma pequena câmera e voltou ao bairro do Eldorado, em Diadema. Entrevistou vizinhos e pessoas que conheceram o carrasco alemão pessoalmente. Ali começava a história do documentário de longa-metragem Eldorado- Mengele, Vivo ou Morto?, que só ficou pronto em 2019. “Depois eu fui fazendo uma pesquisa bem mais aprofundada e fui me deparando com histórias sobre o Mengele e outros nazistas notórios. Fui conhecendo os policiais que cobriram o caso e levantando mais informações”.

Cena do documentário: no Brasil, Mengele usava o nome de Pedro Hochbinchler | Foto: Divulgação

Além de Mengele, Marcelo Felipe Sampaio levantou a trajetória de personagens como os oficiais Gustav Wagner e o Paul Francistango. Este último chamou a atenção do pesquisador. “O Francistango era o chefe do campo de concentração de Treblinka na Polônia. Ele foi responsável por mais de 400 mil mortes na Segunda Guerra e ficou comandando a ala 3 da fábrica da montadora Volskwagen no ABC. Toda vez que alguém fazia alguma coisa errada na Volks ele falava: ‘A eutanásia se esqueceu de você’, com sotaque alemão”.

Ao longo dos 71 minutos de Eldorado – Mengele, Vivo ou Morto?, conhecemos de perto a trajetória e as aberrações praticadas pelo médico Josef Mengele, conhecido pelos historiadores como “Anjo da Morte”. Membro da classe média intelectual alemã, o temido carrasco comandava experimentos com pessoas vivas para tentar provar suas teorias eugenistas. “O Mengele não era um simples soldado. Ele era um médico dos oficiais nazistas de alto escalão. Tanto que a cabeça dele era avaliada em quatro milhões de dólares e usava os prisioneiros como cobaias”, descreve Sampaio.

Mengele e seus comparsas acreditavam na eugenia e tinham planos de exterminar os judeus. Após matar as vítimas em câmaras de gás, muitas vezes os nazistas abriam as barrigas dos defuntos em busca de diamantes ou joias. Os cabelos eram cortados para fazer forro de acolchoados ou travesseiros. O médico tinha obsessão com gêmeos e anões, com quem realizava experimentos macabros. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, inúmeros nazistas procuraram se refugiar em territórios da América do Sul. Alguns tinham preferência por países neutros e com regimes totalitários como Argentina e Paraguai. “Esses dois países foram alguns dos lugares que mais acolheram e acobertaram os nazistas em troca de dinheiro. Os alemães tiveram contato direto com os ditadores como o Perón e o Stroessner e existe comprovação sobre isso. A CIA pediu a extradição de buscas do Mengele quando ele esteve no Paraguai e deixou rastros nesses países”.

Diferentemente do que ocorreu nos países vizinhos, os nazistas que vieram para o Brasil estavam apenas se escondendo, segundo Marcelo Felipe Sampaio. O cineasta acredita que a ditadura militar brasileira (1964-85) não investigou esses alemães porque não interessavam às autoridades da época. “Dizer que existiam nazistas pegava muito mal na cena internacional. A ditadura estava mais preocupada em perseguir a esquerda, o Marighella, Lamarca, esses personagens. Não estavam interessados me correr atrás dos nazistas. Tanto que nesse período o Brasil não estava entre as áreas de atuação da Interpol.”

Mergulhado no assunto, Sampaio também produziu e dirigiu o documentário A Trilha dos Ratos (2021) sobre outros oficiais que se refugiaram no continente sul-americano. “Autoridades alemães planejaram uma rota de fuga para oficiais de alta patente e fugiram para a América do Sul com clara colaboração da Igreja Católica e da Cruz Vermelha. Passaportes falsos foram emitidos em troca de dinheiro e tecnologia alemã.” Este filme mais recente está para estrear no streaming.

Uma das grandes dificuldades do diretor foi o financiamento. Marcelo Felipe Sampaio realizou seus trabalhos de maneira inteiramente independente. “Eu dependo do meu trabalho e invisto nessas histórias que ninguém quer contar. Não existe mercado de cinema nem de música no Brasil. Ou você é do mainstream ou do underground. Precisava ter o dinheiro e fazer um filme profissional dentro de um equipamento básico. Então é muito gratificante todo esse reconhecimento que estamos tendo.”

O diretor Marcelo Felipe Sampaio | Foto: Divulgação

Eldorado- Mengele, Vivo ou Morto? recebeu 37 indicações e 23 prêmios em festivais por todo mundo. O filme foi exibido em Nova York e mesmo na Bielorrússia. É o tipo de trabalho obrigatório para conhecermos bem uma realidade que não devemos esquecer nunca. “Foi muito gratificante e espero que esse trabalho sirva como referência para que nunca mais algo como o nazismo aconteça. Acredito que eu fiz o filme na época certa até porque muitos dos entrevistados tinham idade avançada e já morreram.”

Eldorado- Mengele, Vivo ou Morto?
Direção: Marcelo Felipe Sampaio 
São Paulo, Brasil, 2019
Duração: 71 minutos
Onde assistir: Amazon Prime, Apple TV, Now

A coluna “Direitos em Cena” é o espaço para o cinema brasileiro contemporâneo na Ponte: seus filmes, seus diretores, seus personagens. Busca ampliar o espaço de narrativas cinematográficas que muitas vezes não recebem atenção da grande mídia, sempre em relação com os direitos humanos. A coluna é escrita por Matheus Trunk, jornalista, escritor, roteirista e mestre em comunicação audiovisual, autor dos livros O Coringa do Cinema (Giostri, 2013), biografia do cineasta Virgílio Roveda, e Dossiê Boca: Personagens e histórias do cinema paulista (Giostri, 2014).

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