Advogada defende educação antirracista para combater “humor” que justifica agressões; polícia diz investigar Kerollen Cunha e Nancy Gonçalves, que deram macaco e banana de brinquedo a crianças negras no Rio
A advogada criminalista e especialista em direito antidiscriminatório, Fayda Belo, 41 anos, tomou a frente para denunciar um caso que ela definiu como um exemplo de “racismo recreativo”, termo que dá nome ao livro publicado pelo jurista Adilson José Moreira em 2019. A expressão ressalta que o “humor” com nuances ou explicitamente racista colabora para justificar agressões em forma de brincadeira. Fayda acredita que a educação antirracista é saída para combater novos casos.
O vídeo denunciado que circulou nas redes sociais mostra as influenciadoras Kerollen Cunha e Nancy Gonçalves, que são mãe e filha, entregando para crianças negras no Rio de Janeiro macacos e bananas de pelúcia. Em vários momentos das imagens, elas riem enquanto fazem as entregas.
Fayda também usou sua rede digital — são quase 2 milhões de seguidores, somando as contas que mantém no TikTok, Twitter e Instagram — para pedir que o Ministério Público e a Polícia Civil fossem mobilizados. “Racismo não é entretenimento. Racismo é crime”, escreveu em publicação feita no Twitter. Foram cinco milhões de visualizações
A ação teve efeito e foi publicizada pela própria Fayda. “O caminho que a gente tem é o de denunciar”, defende. No caso do Rio de Janeiro, um inquérito policial foi instaurado no âmbito da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância na quarta-feira (31/5) para apurar a conduta das influencers após Fayda protocolar uma notícia crime. A mesma ação foi feita junto ao Ministério Público do Rio.
A advogada influenciadora diz ser reticente as denúncias de racismo que aborda nas redes sociais. “Você vê que eu não posto vídeo todo dia e não são sobre todas as coisas que eu falo”, comenta. Mas há casos, como esse no Rio, em que mostrar como punir a violência racista pode ser positivo para impedir novos casos.
“A gente tem crianças negras que tiveram a sua infância ridicularizadas, desumanizadas ao vivo. Nesses casos a gente precisa debater de maneira rigorosa, para que nós consigamos uma resposta jurídica rápida. A gente precisa falar”, argumenta Fayda.
Ela diz que mobilização popular não é para desmerecer o trabalho do judiciário do Ministério Público, mas para tentar de certa forma romper o racismo institucional que, em sua visão, “normaliza e minimiza as dores” dos negros e marginalizados.
“Para que isso não ocorra a gente precisa falar. Para que entendam que aquilo não é gracinha, não é piada. É algo grave. Tivemos duas crianças que foram animalizadas e expostas para mais de milhões”, diz em referência ao caso de Kerollen Cunha e Nancy Gonçalves.
Estados precisam de delegacias de combate ao racismo
A lei 14.532, de 2023, tipificou o crime de racismo e injúria racial, o que aumentou a pena antes fixada em uma a três anos de prisão para de dois a cinco. Essa mudança é tida como marco importante para a advogada que se especializou no combate à discriminação.
Sua análise é que o próximo passo na luta contra o racismo é a ampliação para todos os estados de estruturas de polícia que foquem na apuração de crimes de descriminação de raça e gênero. Para Fayda esse diferencial garante que o atendimento às vítimas seja mais cuidadoso e acolhedor, diferente, segundo ela, do que ocorre em delegacias que acabam amontoando uma série de especialidades.
Outro caminho que a advogada entende como ideal para que o respeito às diferenças prevaleça é que a educação antirracista seja uma política de Estado. É por meio disso, argumenta Fayda, que de fato se dará a “virada de chave” para que casos como o das influencers sejam cada vez mais incomuns e que as pessoas passem a de fato entender o que é o racismo e que vivemos num país marcado pelo preconceito.
“O Brasil não aceita que é racista”, completa Fayda.
Saúde mental nas redes
Influencer comparada a Annalise Keating, da série americana How to Get Away with Murder, pela abordagem sobre casos criminais, Fayda diz ter um controle rígido das suas redes sociais. Em seu perfil do Instagram só pode fazer comentários nas postagens quem seguir a advogada por mais de oito dias.
“Isso acaba filtrando bastante os xingamentos. Eu aceito que as pessoas discordem de mim por ali, agora só entrar no perfil e chamar de feia não dá”, comenta.
Seus seguidores, os crimelovers (apelido dado em referência aos conteúdos que Fayga produz comentando situações com possíveis penalizações criminais), tem parecido se adaptar bem à medida imposta pela advogada. A maioria dos comentários no Instagram, por exemplo, é de apoio ao trabalho da criminalista.
“Quem for para me xingar sabe que eu já vou responder citando o artigo criminal”, brinca Fayda.
Absorvida pela própria vivência como mulher negra, pelos casos criminais em que atua e agora pelas denúncias de racismo online, Fayda diz que tem cuidado da saúde mental com sessões de terapia e se “desligando do mundo” para ficar com a família sempre que possível.
Outro lado
A Ponte procurou as influenciadoras Kerollen Cunha e Nancy Gonçalves por meio das redes sociais, mas não teve retorno. Por meio da conta do TikTok kerollenenancy_, a dupla publicou nota redigida por sua assessoria jurídica em disseram que “não havia intenção de fazer qualquer referência a temáticas raciais ou a discriminações de minorias”.
“Sendo assim, gostariam de se dirigir às pessoas que se sentiram diretamente atingidas, para dizer que não tivemos intenção de as ofender individualmente, nem como gênero, etnia, classe ou categoria a que elas pertençam”, diz o texto.