Falta de preparo policial resultou em mortes de pessoas com deficiência durante abordagens desastrosas neste ano. Sexta-feira (3) é o Dia da Pessoa com Deficiência no Brasil
A diarista Queli Cristina da Silva Duarte, 40 anos, mora em São Mateus, bairro da zona leste da cidade de São Paulo, e não conhece a vendedora Ana Maria Lima Dias, 41 anos, que vive a mais de 2.600 quilômetros de distância, na cidade de Presidente Dutra, no interior do Maranhão. Porém, ambas compartilham de uma mesma dor: seus filhos, que tinham deficiência foram mortos por policiais neste ano.
É provável que, assim como Queli e Ana Maria, existam diversas mães que estejam passando pela mesma situação, mas não há como afirmar o número exato de pessoas com deficiência que sofreram violência policial porque nunca foi feito um levantamento deste tipo no Brasil. Analisando casos recentes, ouvindo familiares, especialistas e pessoas com deficiência que já passaram por abordagens policiais é possível dizer que, além de racista, as forças de segurança pública no país também são capacitistas. Nesta sexta-feira (3/12), se comemora o Dia da Pessoa Com Deficiência no Brasil.
De acordo com o Atlas da Violência, no ano de 2019 foram registrados 7.613 casos de violência contra pessoas com deficiência (PDCs) no Brasil. Foi a primeira vez que o grupo foi analisado pelo estudo, porém não há dados específicos em torno das ações policiais contra pessoas com deficiência.
“Certamente esses números não correspondem à realidade. Não existem meios para que uma pessoa com deficiência possa registrar um caso de violência numa delegacia, por exemplo. Se um surdo for prestar uma queixa, terá alguém que entenda de libras para se comunicar com ele?”, questiona Marcelo Zig, filósofo e fundador do Quilombo PCD, coletivo formado por pessoas negras com deficiência.
“A gente tem uma sociedade que é capacitista e discriminatória. Não adianta a gente falar de diversidade e inclusão se isso não ocorre por parte da administração pública. Nesse sentido, a polícia precisa urgentemente de um programa que trate sobre esses temas. É preciso avaliar todos esses indicadores de discriminação e preconceito que existem dentro da corporação”, diz a consultora de inclusão da Inclusive Agency, Renata Jullioti.
Duas mortes e o mesmo despreparo
Um dos aspectos mais visíveis do autismo de Thiago Aparecido Duarte de Souza era a sensibilidade ao toque. Pessoas autistas podem desenvolver hipersensibilidade em alguns sentidos como audição e tato. É comum que elas se irritem em ambientes com muito barulho ou ao serem tocadas. Queli Cristina acredita que a reação do filho ao ser abordado pelo cabo da PM Denis Augusto Amista Soares, que estava de folga, possa ter sido o motivo do disparo que acertou a sua boca, o deixando hospitalizado durante 12 dias antes de morrer.
Em abril deste ano, o jovem de 20 anos saiu de casa para ir na padaria e encontrou no caminho Fernando Henrique Andrade da Silva, 27 anos, suspeito de ter assaltado um homem momentos antes. Os dois rapazes foram abordados por Denis, que deu o tiro que matou o filho de Queli Cristina.
“As pessoas que viram ele parar os garotos gritaram para ele não atirar. Ele podia ter mandado os meninos deitar ou atirar na perna. O Thiago não gostava que ninguém encostasse nele, por isso ele pode ter feito algum movimento quando o policial pegou nele. Depois que meu filho caiu no chão, ele ficou passando por cima do corpo”, relembra a diarista, que acredita que o filho foi vítima de capacitismo.
“O Thiago teve uma infância muito complicada. Sempre foi rejeitado na escola e só veio ter alguma independência depois dos 16 anos, depois que passou a fazer tratamento psicológico”, conta Queli.
Ana Maria Lima perdeu o filho dentro de casa na frente do avô de 99 anos. A mãe de Hamilton César Lima Bandeira conta que policiais civis entraram na residência e dispararam três tiros contra o rapaz. A motivação para o crime teria sido um postagem nas redes sociais onde o jovem, que tinha deficiência mental e fazia uso de remédio controlados, falava de Lázaro Barbosa, suspeito de cinco mortes no estado de Goiás.
“Eu sou teu ídolo, Lázaro. Boa sorte, Lázaro”, escreveu Hamilton. Na época em que foi morto, em junho deste ano, a investigação e busca feita pela polícia de Goiás foi espetacularizada por diferentes canais de comunicação.
“Ele tinha 23 anos e mentalidade de um menino de 12. Se os policiais fossem capacitados teriam percebido isso. Meu filho era um rapaz educado com todo mundo e gostava muito de brincar com as crianças e ficar no celular. Ele não era agressivo, mas ficava nervoso quando faltava os remédios”, lembra a vendedora. “A polícia foi racista e capacitista. O delegado me disse que todos têm direito a defesa, mas o meu filho não teve”, conclui.
A falta de uma formação e preparação adequada pelas forças de segurança é o maior problema apontado pelos especialistas na relação do capacitismo dentro das policiais. De acordo com Renata Jullioti, uma das primeiras áreas que deve tomar a iniciativa de mudar padrões e levantar a questão do capacitismo é a segurança pública. “O capacitismo é mais uma das discriminações que existem dentro da corporação, assim como a questão de gênero e de raça”.
Racismo e capacitismo
Segundo o IBGE, 17 milhões de brasileiros possuem algum tipo de deficiência. Esse número equivale a 8,4% da população. E assim como na totalidade dos habitantes, essa parcela também é composta em sua maioria por pessoas negras. Marcelo Zig explica que as questões do capacitismo muitas vezes são deixadas de lado mesmo dentro do debate racial.
“Sempre se fala que um jovem negro é morto a cada 23 minutos no país, sobre a violência obstétrica ser maior em mulheres pretas, mas a gente não discute quando essas violência atingem as pessoas com deficiência. Quando isso ocorre, existe uma invisibilidade em cima do nosso grupo, que também é uma forma de nos matar.”
Quando se trata de violência policial, Zig dá um exemplo ocorrido com ele mesmo para falar do despreparo para lidar com pessoas com deficiência. “Certa vez, um policial com uma arma em punho me abordou e pediu para eu descer do carro. Eu falei que precisaria tirar a cadeira de rodas que estava na mala. Ele não deixou que eu fizesse isso, talvez por pensar que eu estava mentindo. Ele estava apontando a pistola para mim, falando mais alto e cada vez mais nervoso. Teve que um outro policial intervir ou aconteceria algo pior ali.”
Além da agressividade, o capacitismo estrutural faz com que as pessoas, inclusive policiais, venham a ter atitudes de compaixão com pessoas com deficiência em momentos desnecessários. “Outro dia eu vi uma matéria que mostrava que o chefe de uma quadrilha que era cadeirante e todos os comentários eram capacististas. As pessoas ficam incrédulas e tempo todo tiram a humanidade das pessoas e se relacionam apenas com a deficiência dela. A polícia não está pronta nem para proteger, nem para autuar essas pessoas, se for necessário”, diz Zig.
Para ingressar nas forças de segurança, é necessário fazer uma série de testes, dentre eles os físicos. Isso já é um ponto que tira qualquer chance de alguém com deficiência fazer parte dos quadros de diferentes policiais. Marcelo Zig lembra que há uma probabilidade grande do capacitismo se voltar contra os próprios agentes policiais.
“É uma profissão de alto risco e são inúmeros os casos de policiais que se tornam pessoas com deficiência. O que acontece com elas? São afastadas ou aposentadas por invalidez. Será que elas não poderiam ser aproveitadas dentro da corporação para atuarem em serviços administrativos ou de inteligência?”, indaga.
O que dizem as polícias
A Ponte procurou as Secretarias de Segurança Pública do Maranhã e de São Paulo para entender se há novas orientações e treinamentos para a abordagem de pessoas com deficiência por pate de policiais e aguarda resposta.