Manobrista Valdir Alves Santos, 22 anos, foi acusado de roubar um celular em 2016. A vítima nunca apareceu nas audiências que condenaram o jovem
Era 22h09 do dia 27 de novembro de 2016. O manobrista Valdir Alves Santos, então há pouco mais de cinco meses com 18 anos, estava prestes a voltar para casa de uma festa na Avenida Brigadeiro Faria Lima, 278, centro de São Bernardo do Campo (Grande SP), quando foi detido. Acusado de roubar o celular de uma vítima branca, o jovem negro, apesar de ser réu primário, foi preso.
Encaminhado para o 1º DP da cidade, Valdir foi acusado de realizar um arrastão em uma casa noturna ao lado de um outro jovem, que na época tinha apenas 15 anos. Ambos confessaram o crime, como afirmou o delegado Rodrigo Augusto David, responsável pelo boletim de ocorrência.
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Os guardas municipais Julio Jose de Lima Neto e William Almeida Fernandes e o segurança particular Fabio Cesar Nunes afirmaram no registro policial que Fabio deteve o adolescente que teria cometido um roubo no estacionamento do local. A vítima teria apontado Valdir como co-autor do crime ainda no estacionamento. A situação teria causado aglomeração de pessoas, que foram dispersadas por gás lacrimogênio pelos GCMs.
Valdir foi liberado no dia seguinte, na audiência de custódia, pelo juiz Anderson Fabrício da Cruz, da Vara de Plantão da Comarca de São Bernardo do Campo do Tribunal de Justiça de São Paulo, que entendeu que não haviam motivos para manter o jovem preso já que ele era réu primário, possuía residência fixa e estava matriculado no 2º ano do Ensino Médio.
Em troca, Valdir deveria aparecer mensalmente no Fórum, para justificar suas atividades, não ficar na rua entre das 18h e as 6h, assim como finais de semana e dias de folga, e não perder nenhuma audiência. A denúncia contra Valdir foi recebida em 13 de janeiro de 2017, pela juíza Lizandra Maria Lapenna Peçanha, da 4ª Vara Criminal da Comarca de São Bernardo do Campo do Tribunal de Justiça de São Paulo.
A única vez que a vítima foi ouvida foi no dia da prisão de Valdir. De lá para cá, ele não foi localizado em nenhuma das tentativas da Justiça. Já o jovem, que trabalhava como manobrista em um estacionamento, cumpriu tudo o que foi combinado: nunca faltou em nenhuma audiência e mensalmente ia ao Fórum.
Mas, em 2 de setembro de 2020, quase quatro anos depois, foi preso pelo roubo, após ser condenado a 6 anos, 4 meses e 13 dias em regime fechado pela juíza Peçanha. Agora ele está preso na Penitenciária “ASP Joaquim Fonseca Lopes” de Parelheiros, extremo sul da cidade de São Paulo.
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A auxiliar de limpeza Joaninha Rodrigues Alves, 44 anos, mãe de Valdir, sabe de cabeça a sentença do filho. É a primeira coisa que ela conta em entrevista à Ponte. A segunda é que o filho mais velho é inocente. “O meu filho já estava indo embora quando tudo aconteceu. Dois amigos iam dar carona para ele, ai ele disse que precisaria achar o amigo dele antes de ir. Quando ele voltou, viu que tinha um movimento no estacionamento e viu os seguranças falando com o menino. Ele tentou chegar perto para ver o que aconteceu e os guardas pegaram ele”, conta.
“Um dos guardas levaram eles de canto e perguntou qual dos dois era maior, o Valdir disse que era ele, quando ele falou isso o guarda falou para ele assumir que tinha pegado o celular e ele ficou negando. Começaram a bater no meu filho e ele falando que não iria assumir. Eles batiam e falavam ‘você tem o celular’ e ele falava que não tinha. Outro GCM bateu uma foto dele, falando que tinha um grupinho, que ele deveria assumir ou morrer”.
Dona Joaninha conta que sabe de todos esses detalhes da boca do próprio filho. Depois a mãe conversou com um casal de amigos de Valdir que confirmaram que eles ofereceram carona e que o jovem voltou para procurar o amigo. A versão também foi confirmada à Ponte por telefone, assim como foi dita na Justiça.
A auxiliar de limpeza conta que só ficou sabendo da prisão do filho pouco antes de ele retornar para casa. “Eu só soube quando ele já estava no Fórum, mas não me deixaram ver ele, falaram que dali ele já iria para o presídio. Isso me tirou totalmente o chão, sem saber o que fazer”.
Em 2019, dona Joaninha decidiu juntar suas economias e contratar um advogado para tentar arquivar o caso, já que a vítima nunca aparecera. Até então, ela contava com a ajuda da Defensoria Pública. Mas hoje ela se arrepende.
“O advogado disse que pediria arquivamento do processo por conta disso. Mas a partir do momento que eu contratei, ele não foi em nenhuma audiência, mandava outra pessoa no lugar e essa pessoa não fez nada, nem avisou que o Valdir estava com o pedido de prisão. Valdir está sendo acusado por uma vítima fantasma”, lamenta
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Joaninha define o filho como “tranquilo, trabalhador e que sempre ajudou em casa”. Foi com o apoio dele que ela foi morar em Minas Gerais, para tratar de um problema de saúde nas vesículas. Mas voltou após terminar o tratamento, já que não conseguiu emprego por lá.
“Eu voltei dia 17 de fevereiro e arrumei trabalho. Agora que eu estava começando a me ajeitar, trabalhando como auxiliar de limpeza no hospital, isso aconteceu. Toda vez que a gente tá conseguindo seguir a vida, vem o Estado, vem a polícia, e estraga a vida da gente mais uma vez”.
Em 2016, quando foi acusado pelo crime, lembra Joaninha, Valdir tinha um sonho: servir ao Exército. “Mas a Justiça estragou a vida dele”, diz emocionada. “Eles prenderam meu filho no trabalho. Isso é por que a gente é pobre, por que a gente é negro? Qual motivo? Todos os dias ele me mandava uma fotos quando chegava no trabalho, dando bom dia. Ele saia pra trabalhar quando eu tava chegando em casa, porque trabalho de noite no hospital”.
‘Condenado com base em provas frágeis’
A pedido da reportagem, a advogada criminalista Débora Roque, que auxilia a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, analisou o processo. Para a criminalista, Valdir foi condenado com base em provas frágeis, “o que é bem comum no judiciário brasileiro e que contraria os princípios do Estado Democrático”.
“A lei fala que uma pessoa não pode ser condenada com base apenas no que foi colhido no inquérito policial, por se tratar de um procedimento administrativo que não possui o contraditório e ampla defesa. E nesse caso o reconhecimento e as declarações da vítima na delegacia deveriam ter se confirmado em juízo. Isso torna as provas frágeis”, explica Roque.
A criminalista também aponta falhas na versão dada pelos guardas municipais. “O CGM não é testemunha presencial, chegou depois dos fatos ocorridos. Não tem como afirmar que o acusado realmente praticou o ato. Ele efetuou a prisão com base na fala da vítima que, reforço, não compareceu em juízo para reafirmar sua versão, até mesmo para fazer um reconhecimento sob o crivo do contraditório e da ampla defesa”.
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Para o advogado criminalista Diego Garcia, que também auxilia a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, o TJ-SP é “um Tribunal que é reconhecido por dar muito valor a palavra de policiais e punir com severidade crimes de roubo e tráfico, por exemplo”.
A desistência do testemunho da vítima também chama a atenção do advogado, que aponta para um “aparato estatal opressor” que “certamente impediu que Valdir conseguisse mais testemunhas que fossem capazes de afastá-lo da história”.
“A pena que ele pegou é expressiva, mas compatível aos crimes que lhe foram atribuídos. É triste acreditar que o Estado ‘busca’ a suposta ressocialização de uma pessoa primária, de bons antecedentes, que compareceu devidamente ao Fórum para o cumprimento das medidas restritivas de direitos alternativas a prisão, impondo-lhe o regime fechado por quase sete anos”, lamenta.
Para Garcia, tanto a denúncia quanto a sentença não foram capazes de definir qual teria sido especificamente a conduta praticada por Valdir. “Existe uma ação global, que não é delimitada ao menor, ao Valdir ou aos outros envolvidos. Tampouco é informado com quem se achou o celular. Tal imprecisão permaneceu até o fim”.
Outro lado
Procuradas, a Secretaria da Segurança Pública e a Prefeitura de São Bernardo ainda não se manifestaram.
Por e-mail, o Tribunal de Justiça de São Paulo informou que não se manifesta sobre questões jurisdicionais. “Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos juntados ao processo e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito”.
“Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente. O andamento dos processos e a íntegra das decisões, onde constam os fundamentos, estão disponíveis na internet”, completou o TJ.