Carlos Henrique tentava uma carreira como jogador de futebol quando foi preso e morreu por causa de uma infecção antes de ser julgado; família quer que Estado reconheça erro e peça desculpas
Em abril de 2017, alguns meses antes de ser preso, Carlos Henrique da Silva Ferreira, então com 18 anos, marcava um gol pelo Itapipoca em jogo contra o Rio Branco. A partida que terminou empatada em 4 x 4 era uma de muitas onde o camisa 10 podia mostrar sua destreza em campo para, quem sabe, algum olheiro tirá-lo da condição de amador e alçá-lo para a categoria profissional.
Em novembro daquele mesmo ano, Henrique seria preso sob duas acusações: envolvimento com tráfico de drogas e um homicídio. Mandado ao CETOC (Centro de Triagem e Observação Criminológica), um local de triagem de presos e, portanto, de curta permanência, acabou ficando por 5 meses lá, até ser transferido para a CPPL (Casa de Privação Provisória de Liberdade) 5, na região metropolitana de Fortaleza.
Aguardando julgamento, em janeiro deste ano, morreu dentro do CPPL, segundo a família, por complicações causadas por uma infecção na boca. Em entrevista à Ponte, os pais de Carlos Henrique falam em omissão de socorro e negligência. “Na sexta-feira, dia 18 de janeiro, eu fui visitar ele. Quando cheguei lá, ele veio até mim e ele estava com o queixo e a área mais à direita do rosto bastante inchado. Eu até perguntei se ele tinha apanhado lá dentro e ele disse que foi o dente que tava inflamado. Naquele momento, eu não notei a gravidade da situação. Ele pediu que eu comprasse alguns medicamentos que tinham sido receitados e desse para a mãe dele que iria fazer a visita no dia seguinte”, contou Carlos Roberto Ferreira, pai de Henrique.
O relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, divulgado no início do mês, trazia informações que alertavam para uma dificuldade do sistema de saúde em atender demandas crônicas, como, segundo a família, era o caso de Henrique, que tratava o problema dentário desde dezembro.
Silvia Cristina da Silva chegou à CPPL 5 no dia 19 de janeiro, um sábado de chuva, bem cedo, mas só encontrou o filho por volta das 13h40. “Os colegas de cela disseram que tinham levado ele para dentro, porque ele tava com febre muito alta e muita dor. Eles relataram que ele chegou a convulsionar. O quadro estava muito grave. Quando eu cheguei na cela, nem reconheci ele, o rosto estava muito inchado. Eu saí gritando desesperada atrás de algum socorro”, relata. Henrique, que havia se convertido na prisão, vivia na chamada “rua dos irmãos”, um local onde ficam os presos religiosos, em sua maioria, evangélicos.
Segundo Cristina, alguns agentes penitenciários foram até a cela e perguntaram o que estava acontecendo. “Expliquei que meu filho estava passando muito mal e que eu queria ir até a enfermaria. Eles tiraram meu filho de dentro, quase desfalecendo e ainda fizeram a revista para saber se ele não estava com arma, droga. Eu que tive que levar meu filho arrastado até a enfermaria, ninguém me ajudou. A médica perguntou o que era, olhou pra ele e disse: ‘ah, tá com o queixo inchado’. Ela não examinou meu filho de forma nenhuma. Eu estava lá e eu vi. Ela passou uma benzetacil [remédio antibiótico] e disse que ia ficar tudo bem. Só que a dor continuou até o final da visita aquele dia”, afirma a mãe de Henrique.
Sem conseguir conter as lágrimas, Cristina relata que se sentiu impotente ao se despedir do filho e que não se conforma que aquela seria a última vez que o veria. “Eu me despedi e ele disse que não ia me ver mais. Eu fico com essa imagem e com essa frase na cabeça martelando até hoje. Ele disse: ‘mãezinha, eu vou morrer aqui dentro’. Eu não pude fazer nada pelo meu filho. Eu queria, mas não podia carregar ele e levar comigo embora. Ele entrou na cela e foi a última vez que vi meu filho vivo”, afirmou.
Segundo o atestado de óbito e a própria Secretaria de Administração Penitenciária do Ceará, Carlos Henrique morreu no domingo, dia 20 de janeiro, às 12h. Na nota, a pasta afirma que outros presos e agentes penitenciários levaram Henrique até a enfermaria e “o mesmo se encontrava desfalecido e não apresentando sinais vitais. Foi solicitado, de imediato, uma ambulância do SAMU para constatar que o interno veio a óbito”.
A família, contudo, só saberia da morte do filho mais de 24 horas depois do ocorrido. Isso porque Carlos Roberto sentiu que deveria pedir dispensa do trabalho na segunda-feira, já que a transportadora onde presta serviço não teria entregas naquele dia à tarde, e ir até a unidade prisional.
“Eu cheguei no horário de almoço deles, por volta de meio-dia e esperei um tempo. Quando me apresentei como pai do Carlos Henrique, veio uma equipe, me levou para uma sala: ‘Olha, o Carlos Henrique morreu. Ele não resistiu’. Eu questionei por que não tinham avisado a família e eles disseram que não tinham o contato”, conta Carlos Roberto. Segundo Cristina, todas as fichas que ela preencheu desde que o filho entrou para o sistema prisional, tinham seu número de telefone. “Se eu não tivesse ido lá na segunda, quando a gente ia saber da morte? Na outra semana só, no sábado, quando fosse fazer a visita. Ele seria enterrado como indigente”, revolta-se o pai.
O atestado de óbito aponta como causa da morte “derrame pleural” e “pericardite”. Segundo Drauzio Varella, médico com ampla experiência no sistema prisional, em seu blog, derrame pleural é acúmulo de água na pleura, essa membrana que reveste o órgão, e uma das causas são as infecções não tratadas. A pericardite segue a mesma lógica, mas se refere ao acúmulo de água na membrana do coração.
A mãe de Henrique, Cristina, explica que não quer discutir ou não a culpabilidade do filho e que se ele tivesse errado, que pagasse, mas vivo e de maneira digna. “Meu filho entrou lá com saúde e morreu dessa forma e nem tiveram a dignidade de avisar que ele tinha falecido. Isso indigna muito muito, ele era muito novo. Tinha a vida pela frente. O Estado interrompeu a vida do meu filho. Pegaram ele vivo e devolveram o corpo”, desabafa Cristina.
No dia 6 de abril, véspera do aniversário de 20 anos de Henrique, moradores do Conjunto Alvorada, comunidade onde ele vivia, fizeram um jogo de futebol comemorativo e em homenagem ao jovem. “Ele era muito querido. Tinha muitos sonhos ainda. Chegou a pedir desculpas para nós e dizer que ainda daria muito orgulho para a gente”, lamenta o pai.
A família recebeu orientação jurídica no Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar, na Assembleia Legislativa do Ceará, na última terça-feira (16/4), sobre as possíveis formas de responsabilização do Estado e reparação do caso, mas ainda nenhuma decisão foi tomada.
Henrique fazia parte da parcela de presos provisórios do sistema prisional do Ceará, que, de acordo com a presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-CE, Ana Virgínia Porto, já chega quase em 70%. Dados do último Infopen, informavam que o Ceará tinha 66% de presos nessa condição. A quantidade no Brasil é de 40% aproximadamente.
“Já supera os 70% de provisórios. A política de segurança pública é a guerra às drogas e isso gera acúmulo muito grande de presos provisórios. Ao mesmo tempo, o sistema de justiça não dá resposta e as audiências de custódia acontecem como se fossem um favor que o Estado faz ao sujeito”, afirmou Ana Virgínia.
A Ponte questionou o número de presos provisórios atuais por e-mail, mas não obteve resposta. A pasta apenas havia informado, em reportagem anterior, sobre o relatório do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, que tem feito esforços para analisar os casos não julgados e com auxílio da Defensoria Pública mais de 7 mil processos já foram revisados.
Em abril, a Justiça do Ceará “extinguiu a punibilidade” dele da acusação do homicídio por causa do seu falecimento. Quando Carlos Henrique faleceu, o jornal O Povo chegou a noticiar a morte, sem identificar o preso, e informou que o Governo do Ceará tinha dito que a morte era de causas naturais.
Outro lado
A Secretaria de Administração Penitenciária do Ceará afirmou, em nota, que o atendimento dado a Carlos Henrique da Silva Ferreira seguiu os padrões e foi adequado. Também afirma que, em uma das vezes que o rapaz foi à enfermaria, teria se negado a ficar no local. Eles confirmam que informaram o falecimento do detento apenas no dia 21 de janeiro, mas não especificam como.
“Os módulos de saúde das unidades prisionais são responsáveis por atender a demanda da atenção básica de saúde ou atenção primária em saúde, conhecida também como a porta de entrada dos usuários nos sistemas de saúde, ou seja, é responsável pelo atendimento inicial. Os profissionais são capazes de resolver problemas de saúde mais comuns e de promover a saúde e prevenir doenças. Tem como objetivo orientar sobre a prevenção de doenças, solucionar os possíveis casos de agravos e direcionar os mais graves para níveis de atendimento superiores em complexidade”, diz a nota. “Caso haja necessidade de um atendimento especializado, o detento doente é encaminhado para um local especializado, dentro ou mesmo até fora do sistema prisional”.
Também destacam alguns números positivos que marcam os 100 dias da gestão de Luis Mauro Albuquerque à frente da SAP, como 145 mil atendimento de enfermagem, mais de 15 mil atendimento médicos, acompanhamento psicológico de detentos e medicamentos entregues aos presos doentes.