Gabriel Scarcelli estudou em bons colégios e viajou o mundo. Virou motoboy e se mudou para a favela. Foi preso no mês passado, acusado de roubo num inquérito em que o investigador é vítima e a principal prova são reconhecimentos feitos a partir de fotos no Facebook.
As histórias de sucesso em São Paulo, com seus finais felizes e mensagens positivas, costumam ser parecidas e previsíveis. Já os tropeços e as quedas produzem histórias tristes na cidade, cada uma a sua maneira, com pedras no caminho e desfechos incertos que dariam bons romances. É o caso da trajetória de Gabriel Scarcelli Barbosa, de 28 anos, que trabalha como motoboy e neste momento está preso em uma das celas superlotadas do Centro de Detenção Provisória IV de Pinheiros.
Gabriel tem Karina como companheira e um filho de 9 meses, chamado Guilherme. Seria mais um entre os mais de 200 mil homens aprisionados no Estado, cujas biografias não despertam a curiosidade e a empatia dos leitores. Ocorre que a vida de Gabriel tem algumas peculiaridades.
Uma delas é a forma como ele foi preso. O motoboy é acusado de participar de uma quadrilha de roubo de carros que atuava na Vila Mariana, bairro de classe média da cidade. O Facebook foi uma das ferramentas usadas pela polícia para chegar ao seu nome. Outro detalhe na investigação é que o delegado federal que presidiu o inquérito foi vítima de um dos roubos, fato que, segundo juristas, coloca em dúvida sua razoabilidade e imparcialidade.
A fragilidade dos indícios que foram considerados suficientes para trancafiá-lo na prisão também assustam porque revelam como autoridades encarregadas de fazer justiça parecem dar pouca importância para o rastro de injustiças que deixam pelo caminho. Vidas podem ser destroçadas dentro das prisões a partir de acusações nebulosas, que não causam remorsos.
Outro ponto sui generis da trajetória de Gabriel se refere ao caminho que ele vem trilhando na busca em dar um sentido à própria vida. Gabriel é filho de uma professora da Universidade de São Paulo (USP) e de um engenheiro da General Motors. Filho único de um casal engajado politicamente, que atuou nas Comunidades Eclesiais de Base da zona leste. Quando criança, Gabriel viajou por diversos países do mundo e estudou em bons colégios.
Conforme crescia, contudo, o garoto passou a colocar em questão sua origem social e cultural, atravessando a ponte que separa as classes na cidade. Escolheu não fazer faculdade, criou laços de amizades com os moradores da Favela Mario Cardim, na Vila Mariana, vizinha ao prédio de classe média onde cresceu. A sua companheira Karina foi criada lá. Antes de ser preso, Gabriel construía uma casinha na favela onde pretendia morar com a nova família. Parecia satisfeito com o trabalho de motoboy.
A mãe de Gabriel, a professora Ianni Scarcelli, acredita que, no fundo, o filho está preso por ser amigo dos moradores da favela. Ela está sentindo na pele o estigma que envolve a imagem daqueles que vivem em lugares pobres da cidade. Grandes suspeitas podem vir de acusações aparentemente insignificantes. “Do que Gabriel é culpado? De ter avançado os limites de territórios de exclusão que protegeriam cidadãos de bem pertencentes às classes sociais mais ricas?”, questiona. “Ele nunca foi acusado de crime nenhum, sempre trabalhou. É absurdo tudo isso”, diz.
Rumo à prisão
O destino de Gabriel começou a ser definido em 17 de agosto de 2013, quando o delegado da Polícia Federal, Kleber Massayoshi, foi assaltado dentro de uma oficina mecânica na Vila Mariana. O delegado se recorda que dois homens armados chegaram para levar rodas de liga leve. Os ladrões também roubaram carteira e dois celulares do delegado, sendo que um deles era de uso funcional do Departamento da Polícia Federal. “É por isso que a PF assumiu um caso que normalmente seria investigado pela Polícia Civil paulista”, explica Massayoshi.
O caso foi inicialmente distribuído para a delegacia de Crimes Patrimoniais, onde Massayoshi trabalhava. Outro delegado assumiu o caso, mas ele acabou sendo transferindo. Foi então que o delegado Vladimir Schinkarew redistribuiu o inquérito para o delegado vítima do roubo. “Não há questões processuais que o impedem de atuar no caso”, defende Schinkarew. “Suspeição poderia haver se o autor do crime fosse parente do delegado. A gente nem sabia que era o autor. A investigação foi técnica”.
Ao longo das apurações, os celulares roubados foram localizados e grampeados. As imagens da oficina também haviam registrado o rosto dos autores do crime. Eles viviam na Favela Mario Cardim e autoria do roubo foi bem documentada. Duas pessoas foram acusadas. Até então, o nome de Gabriel e dos demais moradores da favela não estavam envolvidos com o assalto da mecânica. Mas o delegado se empolgou.
Ele passou a investigar uma suposta quadrilha de roubos de carros que atuava no bairro, formada por amigos dos ladrões identificados na oficina. Entrou em contato com o 6° Distrito Policial e solicitou que fossem enviados os casos de roubos de automóveis dos últimos meses. Chegaram cerca de 20 inquéritos. Ao mesmo tempo, o delegado passou a pesquisar na página do Facebook de um dos acusados do assalto na mecânica os nomes e as fotografias de seus amigos virtuais. Gabriel era um deles.
Essas fotos começaram a ser mostradas para as vítimas dos casos de roubo de carro de autoria desconhecida. Foi então que Gabriel e outros amigos que moravam na favela, começaram a ser relacionados à história como integrantes da quadrilha. O motoboy foi identificado pelas vítimas de dois casos. Magno (eles não autorizaram à Ponte dar o nome completo), outro morador da Favela Mario Cardim que estava na timeline do Facebook, foi reconhecido em dez casos. O delegado Massayoshi afirma que as vítimas demonstraram convicção no reconhecimento, mesmo em assaltos ocorridos meses antes.
O passado de trabalho de Gabriel e dos amigos e suas trajetórias sem deslizes não serviram para aliviar as suspeitas levantadas por reconhecimentos dignos de cérebros com o dom da memória fotográfica. Gabriel trabalhava havia 6 anos como entregador em uma famosa pizzaria no período da noite. Completava o salário com um segundo emprego de entrega durante o dia. Magno era o chefe dos motoboys da mesma pizzaria e respeitado pelos colegas de trabalho e pelo chefe. Joilson, também motoboy e morador da favela, chegou a ser preso e depois foi solto por não ter sido reconhecido pessoalmente.
Há aspectos irônicos nesta história. No dia 8 de junho deste ano, véspera de seu aniversário, Gabriel teve o carro roubado no bairro. Um jovem armado o abordou e levou seu Ônix comprado em inúmeras prestações enquanto estacionava para ir ao médico. Na mesma época, Joilson também teve seu Vectra roubado. Estava com seu filho de 4 anos dentro do carro, mas o ladrão deixou que ele o tirasse antes de partir. Não seria absurdo supor que os dois fossem acusados de serem integrantes da quadrilha que os roubaram.
Em novembro do ano passado, uma operação cinematográfica foi montada para prender os suspeitos da investigação da Polícia Federal na Mario Cardim. Moradores contam que eram dezenas de homens armados e encapuzados da PF, que fecharam as ruas e deixaram assustadas as cerca de 350 famílias que vivem no local. Gabriel foi procurado na casa da mãe, mas não estava. As prisões foram revogadas. Mas Gabriel teve sua prisão novamente decretada no dia 21 de junho. Foi preso neste dia.
“O fato da vítima do roubo ser o responsável pelo inquérito torna a investigação tendenciosa desde o começo. A sensação de impotência diante da agressão acaba contaminando a isenção profissional esperada do delegado”, afirma o professor do Departamento de Direito Processual da USP, Maurício Zanoide. “A investigação do roubo de um celular que se estende para dezenas de casos não me parece uma tentativa de se fazer Justiça, mas de se passar um recado, do tipo: ‘não mexam comigo nem com a Polícia Federal’! Falta razoabilidade nas decisões de alguém que investiga o próprio roubo do qual foi vítima”.
Família em Construção
A trajetória de Gabriel é constantemente indagada com perguntas que se repetem. O que faz um menino de classe média abrir mão dos estudos e preferir ter amigos na favela? Essas escolhas não deixaram passar imunes seus pais que já se questionaram sobre elas. Ianni diz que boas explicações para compreender o filho lhe foram sopradas principalmente pela mestra zen-budista Monja Coen.
Gabriel buscou na Favela Mario Cardim conforto familiar que havia perdido bruscamente. Quando criança, ele era muito chegado à avó que morava na Vila Alpina. Convivia com tios, primos e uma vizinhança cujas relações eram amigáveis e solidárias. Ele tinha 5 anos quando a avó morreu de um câncer fulminante. “Isso causou uma perda irreparável e a família extensa se dispersou”, diz Ianni que acha que a favela em frente ao prédio na Vila Mariana levava o filho a associar o lugar com a época feliz que vivia com a avó na periferia da zona leste.
Na elaboração do luto, a pequena família encontrou refúgio em viagens pelo mundo. Pai, mãe e filho foram a acampamentos isolados no Quênia, trilharam pelo Nepal, Vietnã e Miamar. Como militantes que eram, mantinham o discurso de não discriminar povos, pessoas e profissões.
Essas experiências e valores não facilitaram a trajetória escolar de Gabriel, cujos questionamentos sobre modos de ensino e conteúdos eram constantes. Embora tivesse notas boas e gostasse de estudar foi perdendo o interesse pelo ensino formal. Completou o segundo grau aos trancos.
Os pais, contudo, percebem que hoje não há sentido em remoer as escolhas do filho e terem respostas a tantos porquês. Gabriel segue sua busca por uma vida que faça sentido, como os demais humanos. Só que há uma diferença, contra a qual os pais prometem lutar. Gabriel segue agora com a marca da favela. Ele será suspeito até que prove o contrário. Terá que se calar ao ser humilhado pelas autoridades. Pode suar para ganhar seu dinheiro honestamente, mas será cinicamente ironizado ao afirmar sua inocência. Terá que saltar as mesmas pedras que as colocadas no caminho de milhares de moradores de bairros pobres da cidade.
Um fato injusto que requer muito esforço para ser esclarecido. Autoritarismo e arrogância que requerem muitas ações para que se cumpra a lei. Pela liberdade de Gabriel!
Um fato injusto que requer muito esforço para ser esclarecido. Autoritarismo e arrogância que requerem muitas ações para que se cumpra a lei. Esforços pela liberdade de Gabriel.
Excelente reportagem! Parabéns!
[…] Bruno Paes Manso, na Ponte […]