‘O que eu falo não cabe mais’: Maurício Monteiro, memória viva do Massacre do Carandiru

Educador social — impedido pelo governo Tarcísio de levar adiante seu projeto sobre a história da chacina no Espaço Memória Carandiru (EMC) — luta para não ser calado, no ano em que policiais tiveram suas penas extintas

Maurício Monteiro, 55 anos, exibe diploma universitário. Documento é símbolo da transformação que a vida do sobrevivente do Massacre do Carandiru após a saída do cárcere | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Já faz 32 anos, mas Maurício Monteiro tem aqueles momentos gravados na memória. Aos 55 anos, o sobrevivente do Massacre do Carandiru e hoje educador social luta para não ser calado. Ele é memória viva da ação da Polícia Militar de São Paulo em 1992 que resultou em 111 mortes de presos. Um episódio de violência extrema do Estado que Maurício não pode nem quer esquecer — e tenta a todo custo manter de pé projetos que resgatam a memória da Casa de Detenção de São Paulo.

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Em outubro, o órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) extinguiu as penas de todos os policiais condenados pelo massacre. Ao todo, 74 PMs foram condenados pelas mortes. Mesmo assim, os agentes receberam autorização para aguardar a conclusão do processo em liberdade.

“Mataram pra caramba na [Casa de] Detenção e dali em diante. Estão prendendo pra caramba. E aí, o crime melhorou?”, questiona.

Para muitos especialistas, a violência do massacre teve consequências nefastas que impactam até hoje a vida de todos. Uma delas foi o surgimento e consolidação da facção Primeiro Comando da Capital (PCC). “Como a gente não consegue entender que os netos, os filhos daqueles caras que morreram ali são quem roubou você, quem matou um amigo seu? A violência gera violência!”, resume o educador. 

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A solução, defende, não é simples, mas passa pela ação do Estado — e de políticas públicas que impeçam a roda do crime e da violência de continuar a girar. As ações deveriam se somar ao combate à fome, ao acesso à moradia e até a atenção psicológica dos mais necessitados. 

Maurício não chegou a essa conclusão de qualquer maneira. A violência marcou a vida do educador desde cedo. Ele perdeu o pai — que era policial — ainda na infância. O irmão mais velho foi morto pela polícia quando Maurício era adolescente, fato que mudou sua trajetória e o colocou no mundo do crime. “Quanta violência eu gerei por conta dessa violência que eu sofri?”, avalia ele hoje.

Espaço sem memória

Maurício recebeu a Ponte na sede do Instituto Resgata Cidadão, no Jardim Santa Terezinha, zona leste da capital paulista. O escritório é também o cenário de gravação do canal do educador no YouTube. O Prisioneiro 84.901 existe desde 2021 e tem mais de 21 mil inscritos.

O número é a matrícula de Maurício ao ser preso em 1992. A escolha foi uma forma de ressignificar o número que ele carrega desde a prisão. Nos vídeos, Mauricio conta o que testemunhou durante o Massacre do Carandiru e sobre como era a rotina na Casa de Detenção.

O plano é que o escritório ganhe um novo espaço que será destinado à gravação de vídeos para o canal. Maurício quer colocar grades para deixar o cenário mais realístico, mimetizando as celas do Pavilhão 9, onde ocorreu o massacre. A estratégia é uma alternativa já que o acesso ao Espaço de Memória do Carandiru (EMC) ou o Museu Penitenciário, cenários perfeitos para os vídeos, não estão mais disponíveis.

Maurício Monteiro no Espaço Memória Carandiru | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Maurício conduzia visitas guiadas ao espaço Memória Carandiru, que fica na Escola Técnica Estadual (ETEC), no Parque da Juventude, até outubro do ano passado. Ali funcionou a Casa de Detenção de São Paulo, complexo penitenciário que teve parte de sua estrutura implodida no começo dos anos 2000 e passou a abrigar o parque e a ETEC. 

Criado em 2007, o Espaço Memória Carandiru por muito tempo omitiu o episódio mais marcante e terrível da história do Carandiru. O Programa Educativo Acessível, do qual Maurício faz parte, mudou isso — e pela primeira vez levou a memória do massacre para rodas de conversa, palestras e roteiros de memória (visitas guiadas) no local. Além disso, era possível a qualquer pessoa visitar o local sem a necessidade de agendamento.

O projeto era financiado pelo Programa de Ação Cultural (Proac) até o ano passado. Contudo, o fim do patrocínio também levou ao fim das visitas, já que o Centro Paula Souza, que administra a ETEC, recusou qualquer proposta para a continuidade da ação, mesmo que de forma voluntária. Maurício conta que o fim das mediações levou ao fim das visitas de maneira direta, sem necessidade de agendamento. 

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No site da ETEC há um aviso informando que o Memória Carandiru voltou a receber visitas agendadas no dia 6 de outubro deste ano. Os visitantes têm apenas dois dias para marcar um tour pelo espaço — às terças-feiras, das 13h às 18h, e quartas-feiras, das 10h às 12h. 

Maurício conta que ele, a historiadora e técnica em museologia Nádia Lima e a pós-graduada em Direito Penal e também egressa do sistema prisional Helen Baum buscam outras formas de financiar o projeto. Hoje, sem acesso ao Espaço Memória, o grupo faz mediações no Parque e no Museu Penitenciário. 

Museu do Território 

A busca agora é de recursos para construir o Museu do Território do Carandiru, cujas inspirações são o Museu de Percurso do Negro, em Porto Alegre (RS) e o Museu Comunitário do Jardim Vermelhão, em Guarulhos (SP). O projeto no sul do país não tem sede, mas percorre locais importantes para a comunidade negra porto-alegrense. Já o Jardim do Vermelhão tem proposta semelhante: a iniciativa, de moradores do local, conta a história da comunidade que lutou por moradia digna, acesso a eletricidade e água por meio de um roteiro expositivo.

Maurício espera que o Espaço Memória Carandiru permaneça aberto ao público. O educador conta não querer mais atuar no local, mas sonha com acesso democratizado ao público. “O que eu falo não cabe mais naquele território”, lamenta. 

Maurício Monteiro na sede do Instituto Resgata Cidadão | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O educador defende a importância de que pessoas como ele sejam protagonistas em espaços como o Memória Carandiru e o futuro museu do território. Mas não é otimista “porque quando a gente ocupa, eles desocupam”. 

São esses sujeitos que trazem “a vista do ponto”, como Maurício se refere aos significados daqueles espaços. O intuito é que algo como o Massacre do Carandiru nunca mais se repita. “Ninguém vai falar de detenção com glória. As pessoas têm que entender que o bagulho era do inferno e que aquilo foi o princípio de muita violência”, diz.

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É essa mensagem que Maurício tenta passar para jovens pretos e pobres, maioria entre os atendidos pelo Resgata Cidadão. O instituto existe há mais de 20 anos e é uma ONG regularizada. Maurício começou a participar do trabalho na instituição em 2011 e hoje é seu diretor financeiro. 

As principais ações do Regata Cidadão são a formação de um corpo educativo que atua em mediações no Parque da Juventude e na entrega de cestas básicas. Antes da pandemia, o instituto também oferecia aulas de boxe (com o projeto Boxe Vencedores), do qual Maurício também era professor. 

Um pôster repleto de fotos de alunos enfeita a parede do escritório de Maurício. Ele apresenta com orgulho as imagens dos ex-alunos e conta que alguns chegaram a conquistar campeonatos nacionais. 

O escritório também tem colado na parede diversos diplomas. “É um incentivador para os jovens”, conta ele. Um dos que mais o orgulha é o da formação em Gestão Ambiental e Sanitária pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), concluído em 2016. “O cara ficou preso um monte de tempo e tem um diploma. Se ele tem, por que eu não tenho?”, diz Maurício, simulando o pensamento que deseja provocar nos mais jovens.

Importância de ser quem é

Quem sobrevive ao cárcere pode encontrar um caminho de virada de chave, mudança de vida, pela educação. Maurício Monteiro sabe que, por ser quem é — no passado e hoje — muitas portas jamais se abriram. Mas o educador faz questão de insistir em abri-las. 

Quando estava perto de se formar no curso de Gestão Ambiental na FMU, ele pediu a palavra a uma professora. O educador contou então aos colegas de curso sobre seu passado. Emocionados, os estudantes fizeram questão de que ele fosse o orador da turma. 

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Ele se lembra que, no dia da formatura, rasgou o discurso pré-formatado e também expôs ao público quem ele era. A emoção atingiu novamente todos os presentes. Falar de si, do que passou e sobre onde quer chegar é uma estratégia que o educador passou a usar para combater a violência e abrir caminhos a muitos outros que virão atrás.

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