O que leva um garoto a entrar no tráfico é a necessidade de ser alguém, diz MV Bill

    Dez anos depois de lançar um livro e dois documentários sobre a vida dos que trabalham na venda de drogas, o rapper MV Bill acredita que a situação dos jovens que entram para o tráfico segue a mesma: “eles não veem futuro ao olhar para a frente”
    mv bill André Porto Ponte Jornalismo
    O rapper MV Bill fala sobre juventude e tráfico Foto: André Porto/Ponte Jornalismo

    Sólon Almeida, especial para Ponte

    Aos 40 anos de idade, o rapper MV Bill fala com sobriedade, crueza e paixão sobre os profundos problemas sociais que há décadas vêm dilapidando a esperança da juventude do país. Suas críticas e reflexões vão para muito além da música e revelam um artista e cidadão extremamente preocupado com o futuro do Brasil. Criado na favela de Cidade de Deus, uma das mais violentas do Rio de Janeiro, Alex (nome de batismo do Bill) mantém um olhar atento ao que acontece nas periferias.

    Há exatos dez anos, o rapper em parceria com o escritor Celso Athayde, dava forma final a uma série de dois documentários e um livro sobre o tráfico de drogas em diversas periferias brasileiras. Pela primeira vez era mostrado, de dentro da biqueira, a tensão, o convívio e o modo de vidas de meninos, meninas e mulheres que trabalham na base da pirâmide da lucrativa indústria dos entorpecentes.

    O livro “Cabeça de Porco” (2005) e os documentários “Falcão – Meninos do Tráfico” (2006) e “Falcão – Mulheres do Tráfico” (2007) ainda nos dias de hoje representam um raio-x preciso da dimensão do problema que cada vez faz mais vítimas de todos os lados. A Rede Globo exibiu os documentários sobre os meninos que atuam no comércio de drogas no programa Fantástico. A repercussão foi explosiva. Bill esteve em audiência com o então presidente Lula, que, segundo o rapper, se mostrou sensível ao assunto. “Muitas políticas surgiram a partir do Falcão. Estimulamos ações em vários ministérios. Mas é muito difícil fazer ações baseadas em emoção e no imediatismo. Por outro lado, ninguém pode esperar soluções para problemas tão graves”, diz MV Bill. Dos 17 garotos entrevistados para o documentário, apenas um ainda estava vivo quando o filme foi exibido.

    Em 2002, o filme “Cidade de Deus”, dos cineastas Fernando Meirelles e Katia Lund, baseado no livro do escritor Paulo Lins, chamou a atenção para a história do projeto do conjunto habitacional para famílias de baixa renda que se tornou um dos locais mais violentos do país. Fora da ficção, MV Bill já vinha registrando em vídeo relatos chocantes que revelam parte da violência dentro da violência. Confira a entrevista exclusiva com o rapper.

    Ponte- Há exatos dez anos vocês estavam captando imagens para o projeto “Falcão”. Já estavam com boa parte do material na mão e ainda visitando as comunidades para ouvir mais histórias. Quais eram as dúvidas que passavam na sua cabeça naquele momento?
    MV Bill- As mesmas que passam hoje. O que faz as pessoas renunciarem à vida e se jogarem no crime. Escuto muitas histórias e há muitas razões. Mas as dúvidas continuam. Pois nenhuma das respostas me fazem entender.

    Ponte- Como foi que surgiu a ideia de executar todo o projeto?
    MV Bill- Não foi uma ideia. Nós filmávamos os shows e como sempre íamos nas favelas, acabávamos filmando os jovens. A iniciativa surgiu quando percebemos que tínhamos uma material expressivo. Aí foi só focar no complemento do material.

    Ponte- Desde o início vocês já imaginavam fazer documentário, livro e ampliar também para a questão das mulheres?
    MV Bill- Nada na minha vida foi pensado. Minha estratégia era viver cada dia. O “Falcão” nunca foi um projeto. Passou a ser quando de repente ele começou a voar. Uma vez o Cacá Diegues foi a um curso de audiovisual da CUFA (Central Única das Favelas), onde ele dava aula e pediu para ver o material. Aos 10 minutos ele já se emocionou e chorou. Vi ali que tínhamos uma obra pronta, ou melhor, que precisava ser lapidada. O resto foi consequência.

    Ponte- Atualmente, como a sociedade e o Estado enxergam os garotos envolvidos no tráfico? A imagem está mais para inimigos a serem exterminados ou para vítimas que devem ser resgatadas?
    MV Bill- É natural que as vítimas desses jovens não reflitam, que ajam pela emoção. Nesse caso, a raiva e a sede de vingança é a emoção. Por outro lado, em geral, esses jovens não vão para a pista cometer crimes, eles ficam nas favelas vendendo suas muambas. Então, a primeira reflexão a fazer é quem é a vítima. Se é um usuário ou se é uma criança que no ato da venda está sendo assediada e aliciada por um adulto. O Estado é invisível para eles, que são invisíveis para a sociedade e para o Estado, exceto quanto uma bala cai no asfalto.

    Ponte- O que leva um garoto a entrar no mundo do tráfico mesmo sabendo que terá uma vida curta e muito arriscada?
    MV Bill- Conheço muitas versões e acredito em todas elas. As razões e motivações são muitas, mas a principal é a necessidade de ser alguém. E infelizmente, para esses jovens, ser alguém por alguns dias pode ser melhor do que não ser ninguém a vida inteira.

    Ponte- O que você acha da proposta de redução da maioridade penal?
    MV Bill- É natural que os crimes praticados por jovens causem indignação. Porém, todos os crimes causam. É absurdo se pensar com essa lógica, principalmente quando se criminaliza ainda mais quem já nasce criminalizado. Talvez seja melhor baixar a maioridade para oito anos? Ou emancipar as crianças? Pedem a redução como se as cadeias e sentenças para adultos contemplassem a sociedade. Acho que precisamos de reformulação no tipo de punição não só para os jovens infratores, mas também para os políticos que não deixam o estatuto da criança e do adolescente ser cumprido.

    Ponte- Qual seria o impacto disso na estrutura do tráfico de drogas?
    MV Bill- Nenhum. O tráfico não vive desses jovens. Vive do consumo. Se houver alguém disposto a comprar, haverá alguém disposto a vender. A combinação do vício com o capitalismo causa essa bomba quando adicionamos pitadas de corrupção.

    Ponte- Eu acredito que o rap tem muito potencial para mostrar uma alternativa de vida para esses garotos
    MV Bill- A arte não vai salvar. Ela potencializa a educação buscada. O rap é parte da arte, que tem sua força nas favelas e periferias. Mas se o rap continua discriminado, esses jovens acabam sendo muito mais estereotipados do que salvos. É preciso que o rap consiga sair do gueto para ter mercado. E o mercado é que vai salvar esses jovens. A salvação está na integração.

    Ponte- A impressão que me dá é que há um cabo-de-guerra. De um lado, o rap do outro, o crime, disputando esses jovens. Você também vê assim? O que fazer para ganhar essa batalha?
    MV Bill- Essa não é a minha visão. O rap e o crime estão se reproduzindo com mais capilaridade no mesmo ambiente. Às vezes andam juntos e a maioria das vezes separados. O rap não critica o crime, ele mostra outros caminhos, ajuda as pessoas a verem outros sentidos. Mas, se não podemos oferecer uma vida para aquela pessoa, não podemos criticá-la. Ou daremos a ela um trabalho, ou teremos que aceitar que seu ganha pão seja aquele. O problema da sociedade é que todos querem as mesmas coisas: mobilidade social. As vias para isso são muitas. Eu prefiro o rap, mas aqui tem espaço limitado. O crime tem sido uma opção mais abrangente, infelizmente.

    Ponte- De alguma maneira o resultado do trabalho, em relação ao material captado, te surpreendeu?
    MV Bill- Não, esse é meu mundo, essa é minha vida. Tudo que existe no material representa 30% do que eu conheço, do que vivi a vida inteira, infelizmente.

    Ponte- Qual a avaliação que você faz da situação dos jovens envolvidos no tráfico naquela época?
    MV Bill- A mesma de hoje. Eles não veem futuro ao olhar pra frente. Eles não têm perspectiva, não conhecem além dos seus becos. Nasceram no crime, vivem a lógica do crime e por isso há muito tempo perderam a relação com o medo e estão prontos para atacar e não temem os ataques sofridos quase que diariamente. Vivem à base de adrenalina.

    Ponte- A exibição do documentário num domingo, no Fantástico da Rede Globo, potencializou muito a divulgação do trabalho de vocês. Como foi a negociação para essa exibição?
    MV Bill- Um cara chamado Luiz Roberto Ferreira, que na época era gerente social da Rede Globo conhecia o Celso e viu o mesmo material que o Cacá viu, na casa do Celso. Ele levou ao diretor da época, Luis Erlanger [da Central Globo de Comunicação] que fez uma reunião comigo, com o Celso e diretores do Fantástico e do Globo Repórter. Decidimos colocar no ar, nada além disso.

    Ponte- Naquela época você teve a oportunidade de conversar com o então presidente Lula sobre o filme? Como foi essa audiência? Foi firmada alguma ação prática?
    MV Bill- O Lula entendeu o projeto, nos recebeu com alguns ministros. Muitas políticas surgiram a partir do Falcão. Fizemos e estimulamos ações em vários ministérios. Mas é muito difícil fazer ações baseadas em emoção e no imediatismo. E, por outro lado, ninguém pode esperar soluções para problemas tão graves.

    Ponte- Como você avalia a condução do poder público em relação ao problema do tráfico de drogas e da violência que ele gera?
    MV Bill- Diante do consumo, que só aumenta, é muito difícil uma solução para esse problema. O crime compra cada dia mais armas como consequência desse consumo. A polícia só ganha com o dinheiro que isso gera, tanto que todos os anos centenas de policiais são excluídos das polícias. Acho que enxugar gelo tem sido o máximo que se pode fazer para combater o crime. Mas acabar com a corrupção na polícia é o que se deve tentar para fechar essa geladeira.

    Ponte- Seria, por exemplo, a hora de ter uma outra audiência com a presidenta Dilma?
    MV Bill- Não acho. Pode até rolar, mas não acho que haverá uma sugestão capaz de mudar esse quadro em uma reunião. O problema é complexo num país complexo de uma Justiça complexa de oportunidades restritas. Nesse caso, a audiência seria para pedir mais oportunidades para os jovens das favelas? Bem, pode ser.

    Ponte- Qual a sua opinião sobre a violência e o tráfico de drogas no Estado de São Paulo? É pior do que no resto do país?
    MV Bill- O tráfico não é positivo em nenhum lugar e a prova disso é que os traficantes querem ver seus familiares longe do tráfico. Em São Paulo é menos pior pela hegemonia de uma facção. Já no Rio existem 4 facções que vivem em guerra entre si e contra a polícia. Fica difícil reinar a paz nessas condições

    Ponte- O livro ‘Cabeça de Porco’ também é resultado do trabalho feito por vocês para tentar decifrar a questão da violência e do tráfico de drogas. Quais conclusões que vocês chegaram?
    MV Bill- O Luiz Eduardo [Soares] foi secretário de segurança nacional. Quando ele caiu, a Cufa ficou num prejuízo de R$ 250 mil, pois existia uma ação que seria realizada, e com a sua saída, o governo não honrou. O que deu um grande prejuízo à Cufa e ao Celso. A forma que o Luiz encontrou de ajudar foi conseguindo que nós fizéssemos um livro com ela, já que não aceitamos receber os royalties do livro que ele nos doaria. A editora não queria a nossa participação. Afinal, era um golpe mesmo. Nossa contribuição com a nossa linguagem acabou sendo decisiva para o sucesso do projeto. Não sei qual a conclusão que eles chegaram. Sei que eu cheguei a conclusão de que o crime não tem fim. Temos que encontrar formas de torná-lo menos violento. Mas o crime, seja ele qual for, não deveria ser tolerado. Mas não podemos aceitar que alguns tenham essa prerrogativa.

    Ponte- O livro descreve situações de extremo perigo. Ora por medo da polícia, ora por medo da guerra entre traficantes. Para você, qual foi o momento mais dramático?
    MV Bill- Em Goiás. Nossos guias eram dois traficantes de merla. Fui preso e apanhei da polícia junto com eles. Mas passou. Me deprime só em pensar em tudo que vivemos nesses momentos.

    Ponte- Em um dos trechos do livro, você e o Celso falam de uma mulher gordinha que era uma traficante que negociava as drogas dentro de casa. E ela era extremamente cativante e agradável. Tanto que era difícil não se sentir a vontade na casa dela. Como foi isso?
    MV Bill- Ela não era gordinha, era magra. Ela era tão vulnerável que resolvemos engordá-la no texto para preservá-la. Ela era somente mais uma mãe sustentando sua casa e sua filha, além de uma mãe doente. Isso não justifica. Mas haverá sempre alguém disposto a vender se houver comprador. Hoje, ela está presa na Papuda [Complexo Penitenciário].

    Ponte- Em relação ao combate ao tráfico de drogas e à violência, a polícia mais ajuda ou mais atrapalha? Qual seria a alternativa?
    MV Bill- A polícia é parte do processo. O combate às drogas e a necessidade de sobrevivência faz os policiais serem mais flexíveis e parceiros dos bandidos por conta da proximidade de suas moradias. Por outro lado, a tensão na busca e na caçada de uns aos outros faz as mães dos dois chorarem. Não estou convencido de que tem que liberar as drogas, mas estou convencido de que ao se liberar certas drogas como o crack, cocaína e outras, o mundo se acaba em uma semana. Estamos num beco sem saída.

    Ponte- Você pretende retomar o projeto e tentar descobrir como estão os jovens envolvidos no crime?
    MV Bill- Não, nunca mais vou voltar nesse tema, virou passado. Vou dedicar minha vida tentando criar alternativas para esses jovens. Mas entrar nas suas vidas com uma câmera não, nunca mais.

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