O reconhecimento de um nariz, via WhatsApp, levou Anderson a ser preso por roubo

    Denúncia se baseou em reconhecimento, feito via celular, de uma vítima que só viu o ladrão de capacete; para criminalista ouvido pela reportagem, prova é insuficiente

    O entregador Anderson Dantas de Toledo, 19, com a mãe Vanessa da Silva Dantas | Foto: Arquivo pessoal

    “Eu tenho certeza que não foi ele”. É assim que a empregada doméstica Vanessa da Silva Dantas, 39 anos, começa a entrevista para falar sobre seu filho, o entregador de pizza Anderson Dantas de Toledo, 19, que aguarda julgamento no CDP Pinheiros IV, após ser preso acusado por roubo e tentativa de latrocínio.

    O sofrimento de Vanessa teve início no dia 17 de abril, data em que seu filho sofreu um acidente de moto que acabou por avariar seu ganha pão, além de causar ferimentos na perna do jovem. No entanto, o que era pa ser algo casual, segundo ela, após seu filho empinar a moto ao final do expediente na pizzaria em que trabalhava, foi um dos argumentos usados pela polícia para o levar preso.

    Por volta das 22 horas daquela sexta-feira, um casal estava a bordo de um Ford Fiesta trafegando pela Rua Deolinda Rodrigues, no Rio Pequeno, zona oeste da capital paulista, quando dois homens em uma motocicleta os abordaram. Quando o homem que dirigia o automóvel constatou se tratar de um assalto, acabou por bater seu carro contra a moto. Foi o que bastou para um dos assaltantes atirar. Um tiro no rosto o deixou cego de um dos olhos. O outro disparo atingiu suas costas. Como um dos ladrões antes de fugir roubou o celular de sua companheira, a polícia passou a rastrear o objeto.

    Dois dias após o caso ter sido registrado pelo 14° DP (Pinheiros), a ocorrência já estava nas mãos do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), mais precisamente com investigadores da 4ª Divecar (Divisão de Investigações sobre Furtos, Roubos e Receptações de Veículos e Cargas). Munidos da localização do aparelho devido ao sinal de GPS, seguiram até o local apontado, onde encontraram Toledo, mas nada do aparelho. Segundo o boletim de ocorrência, o jovem negou qualquer participação no crime.

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    Não foram encontrados objetos do roubo e nem armas na residência. No entanto, os policiais civis que estiveram no local tiraram uma foto do entregador de pizza e a encaminharam para a vítima, informando que teriam “prendido um indivíduo que poderia ser o eventual roubador”. Mesmo o atirador estando de capacete, como salienta o próprio documento da Polícia Civil, a mulher reconheceu Toledo, através de traços e principalmente o nariz, como o homem que havia praticado o roubo e atirado contra seu companheiro.

    No mesmo dia 19 de abril a vítima se dirigiu ao Deic. Na sala de reconhecimento, Toledo foi colocado ao lado de outros dois homens. Lá, a vítima também não mostrou dúvida ao apontar Toledo como o garupa da motocicleta e autor dos disparos contra seu companheiro e que também teria tomado seu celular dois dias antes.

    Para defesa do jovem, realizada pela advogada criminalista Maira Pinheiro, todo o processo de reconhecimento foi prejudicado desde o momento em que os policiais tiraram uma foto de Toledo e o apresentaram como suspeito.

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    “O reconhecimento pessoal foi precedido por um reconhecimento irregular, em que foi exibida uma fotografia de Anderson levando as vítimas a pensarem ter encontrado o suspeito. Para o reconhecimento fotográfico ser confiável é preciso mostrar diversas fotografias em iguais condições, como vestimentas e fundos. Esse envio da foto naquela circunstância sepultou o procedimento de reconhecimento confiável”.

    Maira Pinheiro aponta que as diligências não levaram em conta que o rapaz realizou diversas entregas entre 18h e meia-noite naquela data. “Os policiais deixaram de verificar o álibi, que ele estava trabalhando no dia na pizzaria. Tudo aconteceu porque ele mora na favela em que o GPS apontou que o celular estava lá, tem uma moto vermelha e estava danificada”.

    Ainda segundo a advogada criminalista, em conversa com Toledo no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, o jovem contou ter sido pressionado quando da chegada dos policiais .“Ele me disse que estava trabalhando, que os policiais tentaram coagir ele a confessar, que um dos policiais tentou pegar ele pelo pescoço e mandando ele confessar. Diziam que tinham provas que tinha sido ele. Mas que ele mantinha a negativa o tempo todo”.

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    A pedido da Ponte, a também advogada criminalista Débora Roque, que atua junto da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, analisou o processo e também encontrou irregularidades na forma como se deu o reconhecimento.

    “Estamos diante de mais processo em que a prova fundamental de autoria é o reconhecimento feito pelas vítimas. Uma das vítimas declara que ‘apesar dos autores do fato estarem utilizando capacete, tem a certeza do acusado ser o autor pois o reconheceu principalmente pelas características do nariz fino’”. A advogada ainda aponta que “nas declarações da vítima ainda consta que os policiais enviaram uma foto do suspeito, antes do reconhecimento formal na delegacia. Esse fato deveria ser levado em consideração, pois o reconhecimento formal está contaminado”, explicou.

    Anderson com a namorada, filha e a mãe | Foto: Arquivo pessoal

    O jovem nega que tenha praticado ou participado do crime. Segundo ele, naquela data, chegou por volta das 18h na pizzaria em que trabalha e realizou diversas entregas em bairros próximos. Ainda de acordo com sua versão, após a meia-noite, quando retornava para casa, sofreu uma queda de moto, no que resultou em lesões nos dois joelhos e na coxa. Sua moto, uma Honda 160, cor vermelha, sofreu avarias no paralama, guidão, painel e na proteção do farol. Com a motocicleta parada, acabou por trabalhar no sábado (18/4), com a moto emprestada por seu cunhado.

    Trechos do processo revelam que a chegada dos policiais civis na casa de Toledo se deu por volta das 8h de domingo, quando ele foi acordado por sua sogra. No local, o jovem contou, segundo parágrafo da investigação, que ao chegar do trabalho na sexta-feira, encontrou um grupo conversando perto da sua casa. Momento que, um dos jovens, o qual ele conhecia, contou ter feito um assalto e em posse dos cartões das vítimas, pediu lanches, sendo convidado para ficar e comer, o que recusou. Para a polícia e o Ministério Público, o adolescente com quem Toledo contou ter conversado era quem conduzia a moto quando do roubo. Ele foi reconhecido pelas vítimas através de foto em rede social.

    Tal reconhecimento também é criticado pela criminalista Débora Roque. “Já a vítima dos disparos, reconhece duas pessoas. Uma delas foi reconhecida por meio de fotos retiradas do Facebook. Ou seja, tais reconhecimentos por si só não poderiam ser utilizados como base para uma condenação, ou para a decretação de uma prisão preventiva com fundamento em indícios de autoria”, pontuou.

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    Outro ponto levantado pela defesa que formaria o círculo irregular da investigação foi a forma como se deu a chegada e acesso dos policiais civis à casa em que Toledo mora com os sogros e a namorada. “A gente tem policiais fazendo busca e apreensão na residência e esse procedimento não foi documentado, ele deveria ter sido filmado. As pessoas que presenciaram a busca na residência deveriam ter sido ouvidas como testemunhas e não foram”, sustentou Maira Pinheiro.

    Imagem do circuito interno da pizzaria onde Anderson trabalha. Foto: Arquivo

    Outro indício que a Polícia Civil se apegou para ligar Toledo ao crime, foi uma denúncia anônima recebida por uma pessoa que teria assistido a uma reportagem sobre o caso na TV Record. De pronto, o denunciante sustentou que um dos autores do crime se chamava “Anderson” e era morador da comunidade conhecida como Jardim do Lago, mesmo local em que o entregador de pizza mora.

    “Eu acho muito conveniente uma denúncia anônima que só é reportada depois que o denunciado já está preso. A Polícia Civil tem normas administrativas que estabelecem regras para como uma denúncia anônima deve ser documentada e encaminhada. Não há menção a qual delegacia recebeu essa denúncia anônima, por qual meio de comunicação”, ponderou a advogada de defesa Maira Pinheiro.

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    A investigação policial ainda cita que na casa de Toledo foram encontrados dois capacetes, um na cor preta e outro na cor vermelha e em “análise às imagens de monitoramento os policiais verificaram que o criminoso que ocupava a garupa estava utilizando um capacete preto com adesivos semelhantes aos do objeto apreendido com Toledo”.

    A defesa de Toledo também reforça o álibi de que o jovem trabalhava na pizzaria no momento do crime, para demonstrar que a investigação da Polícia Civil prendeu a pessoa errada, já que imagens conseguidas com o estabelecimento mostram o motoqueiro no local em diversos momentos daquela noite do dia 17. No entanto, o gerente do local, em depoimento à polícia, não confirmou se no horário do roubo Toledo estava ou não no local ou fazendo alguma entrega.

    Ao pedir pela prisão preventiva a investigação da Polícia Civil relatou que Toledo “utilizava a pizzaria como um álibi para os crimes que praticava, de forma que entre uma entrega e outra rondava a região em busca de vítimas”. Para sua mãe, a emprega doméstica Vanessa Dantas, a versão não procede, já que seu filho estava em um bom momento da vida, dando valor a todo tipo de trabalho, principalmente após o nascimento da filha.

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    “Ele trabalhava quase 12 horas por dia com serviços de motoboy e entregador de pizzaria, além de jardinagem com o sogro dele. Fazia muita coisa para pagar a moto e cuidar da filha de um ano e cinco meses. Estava empolgado. Procurando fazer tudo certinho. Ele estava fazendo exame para tirar a CNH (Carteira Nacional de Habilitação)”, contou Vanessa para a reportagem.

    Vanessa também explicou que seu filho foi preso devido ao local onde mora, uma vez que, pela condição que a moto apresentou ele não conseguiria trabalhar. “Tem imagens no horário depois dos crimes que mostram ele trabalhando. Não teria como ele trabalhar até o final do dia com a moto quebrada e ele machucado? Eu tenho certeza de que não foi meu filho”.

    Para a defensora do jovem, a principal explicação para sua prisão é a ânsia da polícia em concluir um caso que chama atenção em virtude da condição social da vítima e por ela ter sido baleada. “Quando você tem uma vítima de classe média atingida por um tiro na cabeça e outro nas costas, num contexto de crime patrimonial, existe uma demanda de uma resposta sobre quem foi. É mais um caso de reconhecimento precário”.

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    Em audiência realizada nesta terça (15/12), a juíza Isaura Cristina Barreira, da 30ª Vara Criminal, não divulgou a sentença sobre o caso e também não encontrou irregularidades no reconhecimento realizado por fotografia, mas acatou o pedido de liberdade provisória solicitada pela defesa de Anderson Dantas de Toledo. Em seu despacho, a magistrada pontuou que o réu possui trabalho lícito e residência fixa. No entanto, o entregador de pizza vai continuar preso devido sua condenação em outro processo.

    “Acho que foi um avanço. Foi importante reconhecer que não há necessidade de ele seguir preso provisoriamente porque não tem nenhuma necessidade do processo ser suprida com o encarceramento dele. Acho, também, que a gente apresentou provas consistentes do álibi dele”, frisou a advogada Maira Pinheiro.

    A defesa vai elaborar um habeas corpus na tentativa que de Toledo possa deixar o sistema prisional.

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    Em nota, a Secretaria de Segurança Pública diz que “O caso foi investigado por meio de inquérito policial instaurado pela 4ª Delegacia da Divisão de Investigações Sobre Furto, Roubo e Receptação de Veículos e Cargas (Divecar), do Deic, o qual apurou a participação do suspeito em dois roubos e uma tentativa de latrocínio. Quatro vítimas realizaram reconhecimento pessoal e apontaram o homem como autor dos crimes. Imagens da pizzaria e do local do crime foram analisadas e também comprovaram o envolvimento do indiciado. Além disso, uma bolsa foi localizada no local dos fatos e a proprietária reconheceu o suspeito como autor do roubo. O caso foi encaminhado à Justiça, que ratificou a prisão do indivíduo”.

    Procurado sobre o caso, o Ministério Público não havia respondido até a publicação da reportagem.

    Outro caso e no mesmo dia

    Além de esperar julgamento preso pelo caso no Rio Pequeno, Toledo já foi condenado a cinco anos e quatro meses por um outro roubo a ele imputado e ocorrido naquele mesmo dia 17 de abril, a cerca de 20 quilômetros de distância do outro.

    Segundo a investigação policial, Toledo e o mesmo adolescente teriam roubado uma mulher. Naquela data, ela estava na Rua Rubens de Souza Araújo, no Parque São Domingos, zona noroeste da capital, quando dois homens que se encontravam em um carro Honda Fit de cor prata anunciaram o roubo e levaram seu veículo Honda HRV. No momento, a mulher havia parado na via para alimentar um carrocho. O veículo foi encontrado pouco tempo depois e a três quilômetros do local do roubo.

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    O reconhecimento de Anderson Dantas de Toledo aconteceu após a vítima ter se dirigido ao Deic. Lá, Toledo foi apresentando a ela, que o “reconheceu sem sombra de dúvidas como aquela pessoa que teria descido do carro e a ameaçado com arma de fogo”, diz um trecho do documento. A vítima também reconheceu, através de fotos do Facebook, um adolescente, o mesmo que estaria com o entregador de pizza no roubo do Rio Pequeno.

    Quando do julgamento, o defensor público que estava auxiliando Toledo chegou a apontar que a vítima afirmara que “o réu tinha tatuagens nos braços, mas confrontada com o fato de que nas imagens as duas pessoas permaneceram com mangas longas, não soube explicar o relato”.

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    O processo ainda trouxe a versão de Toledo, que negou a participação no roubo. “Estava em casa com a minha filha e com minha esposa, lembro porque não fui trabalhar. Seis horas da tarde fui trabalhar na pizzaria e fiquei até meia-noite. Não pratiquei esse roubo. Não sei o motivo pelo qual estou sendo acusado. No dia que fui preso os policiais foram na minha casa dizendo que eu tinha roubado um celular. Fui para delegacia onde fui levado para reconhecimento, e me disseram que fui reconhecido pela vítima. Não conhecia a vítima nem o delegado de polícia. Tenho 19 anos de idade e respondo por uma tentativa de latrocínio. Conheço o menor porque estudamos juntos”.

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