Ameaçada de reintegração de posse, antiga escola particular ficou mais de 8 anos abandonada e hoje abriga 15 famílias; ‘o governo não olha para os pobres’, diz moradora de 56 anos que terá que voltar para a rua caso a desocupação aconteça
Há seis meses, depois de passar duas semanas morando nas ruas frias da cidade de São Paulo, Ivone Ferreira Queirós, 56 anos, encontrou um lar. Pode não ser uma casa convencional, mas além de ter teto para morar e um colchão para dormir, lá ela também encontrou afeto. A vida pode não estar boa, mas está bem mais quente do que antes.
Hoje, dona Ivone mora em um quarto na Ocupação Independente Aqualtune, um prédio desativado do Colégio Butantã, na zona oeste de São Paulo. Além de lar, a Aqualtune também tem um cursinho popular, um grupo coletivo de teatro e atendimento psicológico para as famílias, com duas psicólogas que prestam atendimento voluntariamente.
“Eu trouxe uma troca de roupa só e as meninas me doaram roupa, cobertor, colchão, panela, me emprestaram um fogãozinho. Elas me deram muita força. Eu tava na rua e tava precisando de um lugar para ficar, foi quando a Ana, a Karina e a Aline falaram que tinha um espaço pra mim”, conta dona Ivone em entrevista à Ponte.
Desde dezembro de 2008, o prédio de 4 andares que hoje abriga 15 famílias estava abandonado. Em 2016, cerca de 30 famílias ocuparam o espaço e montaram a Ocupação Independente Aqualtune, lar de dona Ivone e outras dezenas de pessoas, entre idosos, crianças e pessoas com deficiência.
Poucos dias depois da ocupação, o proprietário conseguiu uma liminar para a reintegração de posse do local. Mas, por não fornecer os meios para desocupação, como um oficial de justiça e um caminhão para realizar a mudança, os moradores da Aqualtune tiveram uma vitória e puderam continuar no espaço.
“Com isso, a gente conseguiu recorrer e suspender a reintegração. O processo foi andando. Levamos o processo até o STJ [Superior Tribunal de Justiça], alegando erro de citação, já que as famílias não foram citadas, intimadas no processo, na época informaram uma pessoa e deram todas as famílias como citadas”, explica Samy Mitelman, advogado que cuida da ocupação há mais de dois anos.
Antes de se tornar uma das moradoras da ocupação, dona Ivone levou uma vida difícil em Itaguaí, cidade interiorana localizada a 69 quilômetros da capital paulistana. Desde os 15 anos, com algumas pausas entre idas e vindas da capital paulistana, ela trabalhou como boia-fria, migrando de uma região para outra, atrás de um ciclo produtivo para ganhar alguns trocados, sempre acompanhada da sua comida fria. Café, feijão, tomate, batata, milho e algodão. Esses eram alguns dos produtos que dona Ivone cultivou e colheu por décadas.
“Chega um momento que o corpo não aguenta mais né? Eu vim pra cá ver se conseguia um trabalho. É um trabalho muito ruim. Naquela época era em caminhão, hoje em dia é em ônibus. Tem que ir pra longe, era levantar de madrugada, 1h, 2h da manhã, colocar a comida na marmita, pra comer gelada no outro dia”, lembra dona Ivone.
Hoje ela está atrás de um emprego, mas, enquanto não consegue algo, trabalha na portaria da ocupação. Também lava o banheiro de outros moradores enquanto eles trabalham. Para cada banheiro lavado, ela ganha 10 reais.
“As pessoas não dão valor, eles pensam que quem mora em ocupação não trabalha, são bagunceiros, mas quem tem emprego vai trabalhar. Não tem serviço. Se não tem serviço pra gente de 30 anos, vai ter pra mim que tô com 56 anos? Vou tocando a vida. Eu cuido da portaria das 7 da noite até meia-noite. Depois disso não entra mais ninguém. Se sair e não voltar não entra mais. Só pode entrar das 6h da manhã até meia-noite”, explica dona Ivone.
Há uns anos, ela tentou sair do interior pra tentar a vida na cidade de São Paulo. Na época, trabalhou em algumas fábricas, cortando linha de roupas, e também como faxineira em grandes prédios e como empregada doméstica. Mas, no fim das contas, voltou para Itaguaí. Tentou por mais 5 anos viver nas lavouras.
“A prefeitura que pagava meu aluguel lá. Eles pagavam meu aluguel, porque com o que eu ganhava na roça ou eu comia ou eu morava na roça. E lá tem esse programa. Com o que eu ganhava, pagava a comida, água e luz”, relata dona Ivone.
Apesar da vitória em 2016, hoje a situação da Ocupação Aqualtune está bem complicada. Os herdeiros querem de volta o terreno do pai e, hoje, não cabe mais recurso jurídico para reverter a decisão de reintegração de posse da antiga escola. “A gente já vem há um tempo tentando fazer negociações com a Prefeitura, com a Secretaria de Habitação, mas as respostas são sempre as mesmas: que o Estado não tem moradia na prateleira, que hoje em dia nem o auxílio aluguel está disponível. Temos alguns casos na Ocupação de algumas famílias em situação de extrema vulnerabilidade”, explica Samy.
O advogado acredita que o novo pedido de reintegração aconteceu depois de uma decisão do Ministério Público Estadual de SP. “Recentemente, tivemos uma vistoria da Prefeitura, por conta do prédio ocupado que desabou no Largo do Paissandú. Depois dessa vistoria, foi feito um relatório com diversos reparos que a gente deveria fazer. Aí, o MP entrou com uma ação civil pública ordenando que a Prefeitura e o proprietário tomassem as medidas pra consertar o prédio”, expõe Samy.
Se a reintegração acontecer, dona Ivone terá que voltar a morar na rua. “Não tenho pra onde ir. Hoje em dia eu não tenho nada, o governo que a gente tem, com um prefeito e um governador que não olha para os pobres. Nós temos o direito à moradia. Pra mim vai ficar ruim, eu tenho problemas de doenças, que não posso tomar chuva e sol. Faço tratamento, tenho pressão alta, tomo calmante”, desabafa.
‘Ou eu dou comida para os meus filhos ou eu alugo uma casa’
Quem também não tem para onde ir é o pintor Rafael Teixeira, 28 anos, que mora na Aqualtune com a companheira e três filhos pequenos. A situação da família de Rafael é bem delicada: seu filho mais velho, Pablo, é diabético. Por isso, explica o pai, não tem como pagar um aluguel sem faltar alimentação para a família.
“A alimentação dele é toda a base de produtos integrais. O Pablo tem que comer de 3 em 3 horas, precisa comer toda hora. Eu não posso toda hora dar uma fruta, mas posso dar uma bolacha. Ou eu dou comida para os meus filhos, dou o necessário, ou eu alugo uma casa. Eu quase não durmo, não consigo dormir. Tenho ido dormir às 4h da manhã pra levantar 7h. Sempre pensando: ‘meu Deus, será que vai chegar hoje?’. Onde vou colocar minhas coisas? Onde vou colocar meus filhos? Não tenho para onde ir”, desabafa Rafael.
A rotina do pai gira em torno do filho mais velho. “Todo dia eu tenho que medir a diabete dele, assim que começa o dia. É sempre quando ele acorda, antes do café da manhã, e aí eu aplico a primeira dose de insulina. A medição da diabetes é repetida depois do almoço e do lanche da tarde. Dependendo do nível, ele toma outra dose de insulina”, conta o pintor.
O medicamento de Pablo é retirado no posto de saúde, fornecido pelo SUS (Sistema Único de Saúde). “Eu pego o medicamento no posto, todos os materiais são de lá. A máquina pra medir é como se fosse um empréstimo, fica comigo e a responsabilidade é minha. Quando a gente chega lá, eles puxam pelo sistema e veem tudo”, explica Rafael.
A doença de Pablo foi descoberta há 5 meses, três dias antes da família sair da casa que moravam no Jardim José Bonifácio, na zona leste da cidade. As coisas apertaram e não havia mais dinheiro para pagar os R$ 500 do aluguel do imóvel. “Eu tinha três dias pra entregar a casa e estava procurando outra casa. O Pablo ficou internado. A mãe dele, que tem pressão alta e estava gestante, ficou nervosa e aí ficou os dois internados”, lembra Rafael.
Sua sogra e sua cunhada ajudaram a cuidar a filha do meio, Laura, enquanto sua companheira estava internada e ele precisava cuidar de Pablo. Mas, como ainda estava sendo amamentada, Laura precisou da mãe, que teve que sair do hospital antes de ter alta médica.
“Eu tinha que ficar com o Pablo, tinha que entregar a casa, não tinha o que fazer. A gente tinha combinado de que quando ele ganhasse alta, ela voltaria pra o hospital. Ela voltou e eu fiz a correria da casa, quando encontrei a Ocupação. A Toninha me indicou quando eu estava desesperado, sem ter onde colocar as minhas coisas, sem ter onde colocar meus filhos. Ela me indicou e o pessoal me acolheu. Agora que a gente tá se organizando, arrumando tudo direitinho, vem essa reintegração de posse”, conta o pai angustiado.
A luta pela permanência
Ainda sem data marcada, mas com a certeza de que irá acontecer. Essa é a realidade da reintegração de posse da Ocupação Aqualtune. Na última quarta-feira (5/6), o Oficial de Justiça avisou que a liminar já está em suas mãos. Agora, para executá-la, só basta um telefone dos proprietários do local. A expectativa é que a reintegração ocorra nos próximos 20 dias.
Na última sexta-feira (7/6), os moradores fizeram um ato contra a reintegração de posse, na praça da Sé, no centro de São Paulo. Por volta das 8h30, cerca de 20 moradores de reuniram. Às 9h, saíram do bairro de Pinheiros, zona oeste, rumo à região central. Dona Ivone, Rafael e Pablo estavam entre eles.
O grupo chegou na Estação Faria Lima, linha amarela do metrô, para embarcar sentido Estação da Sé, na linha vermelha, mas nem todos tinham os R$ 4,30 da passagem. Cerca de quatro moradores precisaram da ajuda dos vizinhos para conseguir o dinheiro.
Na Sé, o grupo se encontrou com algumas pessoas de outros grupos que lutam por moradia e com alguns integrantes do MPL (Movimento Passe Livre), que apareceram para fortalecer a manifestação.
Por volta das 11h da manhã, depois de algumas falas públicas, os moradores partiram para o Edifício Martinelli, onde haveria uma reunião na Secretaria Municipal de Habitação. Cinco pessoas foram recebidas pelo secretário adjunto João Farias, entre elas o advogado Samy Mitelman, que contou à Ponte o que foi discutido.
“A justificativa deles é a mesma. Como o prédio fica em uma área rica, em Pinheiros, é um valor muito alto pra qualquer situação de apropriação ou coisa do tipo. A conversa que a gente teve foi no sentido de fazer um pedido para a Secretaria de Habitação se manifestar no processo, para pedir a suspensão da reintegração até que se fosse dado ao menos algum auxílio nos casos de maior vulnerabilidade, mas eles disseram que não farão isso. Ficou combinado que a prefeitura vai nos enviar a ata dessa reunião para juntarmos no processo. Nessa ata constará que eles tentarão dar um auxílio para essas famílias com maior vulnerabilidade. E, a partir disso, a gente poderia pedir a suspensão da reintegração”, explica Samy.
Procurada pela reportagem, a SEHAB (Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo) informa, em nota, que mantém tratativas para a desocupação pacífica do prédio de propriedade privada e que já foi objeto de pedido de reintegração de posse. Quem cuida da negociação representando a prefeitura é o Núcleo de Solução de Conflitos.
“Cabe ao município a tentativa de uma desocupação voluntária das famílias. No entanto, até o momento, elas preferem aguardar a decisão judicial. Aos ocupantes, é oferecido cadastro nos programas habitacionais do município”, diz a nota.
De acordo com a SEHAB, está prevista, para esta semana, uma reunião entre os moradores e a administração municipal.
A matéria foi atualizada às 14:50, do dia 10/06/2019, para incluir o posicionamento da Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo.
[…] [4] Ponte Jornalismo – Ocupação Aqualtune: a escola abandonada que virou lar na zona oeste de SP (https://ponte.org/ocupacao-aqualtune-a-escola-abandonada-que-virou-lar-na-zona-oeste-de-sp/). […]