ONU lança guia para observadores de direitos humanos em protestos

    Diretrizes buscam dar instrumentos para sociedade civil monitorar violações de direitos e uso excessivo da força

    Documento busca orientar observadores de direitos humanos | Foto: Eduardo Fujise/Conectas

    O Escritório Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) lançou nesta quinta-feira (5/10), em São Paulo a versão em português do documento Diretrizes para a Observação de Manifestações e Protestos Sociais, que consiste em um guia para observadores de direitos humanos em situação de protestos e manifestações sociais.

    Segundo os participantes do evento, a participação cívica ganhou atenção, no Brasil, durante os protestos de Junho de 2013, contra o aumento das tarifas do transporte público. No entanto, a reação por parte dos órgãos governamentais tem sido de embate e constantes tentativas de desarticular esses movimentos através da criminalização e do uso da força de forma truculenta. Nesse contexto, a participação de observadores de direitos humanos torna-se essencial para desestimular violações, e em caso de ocorrências, relatá-las para as devidas investigações.

    Documento busca orientar observadores de direitos humanos | Foto: Eduardo Fujise/Conectas

    O documento, elaborado em 2016 pelo ACNUDH em parceria com instituições nacionais de direitos humanos e as Defensorias Públicas da região, abrange todos aqueles que participam da observação de reuniões e ações coletivas, fiscalizam o cumprimento de normas internacionais e a ação dos órgãos de segurança pública. Em outras palavras, qualquer um pode ser um observador, garantido pelo artigo 19, parágrafo 2o, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP):

    “Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha”.

    A mesa foi mediada pela oficial de direitos humanos do Escritório Regional do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), localizado no Chile, Ana Paula de Souza. O órgão é responsável por monitorar os protestos, apoiar os observadores, as organizações de direitos humanos e prestar assistências aos casos de abusos denunciados.  O evento de lançamento do documento foi promovido por ACNUDH, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), com o apoio da Conectas Direitos Humanos.

    Para os participantes da mesa, num quadro de intensos retrocessos, acirramento de discursos populistas de ódio e da incapacidade das instituições públicas na contenção do uso excessivo da repressão policial, a luta pela preservação dos direitos de manifestação torna-se urgente. Principalmente num contexto em que grande parte dos direitos fundamentais conquistados vieram por meio de protestos e manifestações sociais.

    Marlon Weichert, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão Adjunto, afirma: “eu vejo esse fenômeno de forma triangular: movimentos que se contrapõe a outros movimentos quase antagônicos, e por fim a intervenção do Estado que, em vez de garantir o direito constitucional, acaba impedindo a liberdade de expressão e de manifestação”.

    A vice-presidente do Conselho Nacional dos Direito Humanos, Fabiana Severo, completou a fala de Marlon reafirmando a necessidade de preservar a liberdade e os direitos fundamentais, tão violados no país. “O direito ao protesto deve, mais do que nunca, ser considerado um direito inerente do cidadão”, diz.

    Henrique Apolinário, assessor do programa de justiça da Conectas, representou a sociedade civil na mesa, e afirma que as diretrizes são pragmáticas no sentido de empoderar a população contra a ação truculenta dos órgãos de segurança.

    “Desde 2013, nós temos acompanhado o enriquecimento das praticas utilizadas pelos órgãos opressores e isso acaba intimidando o engajamento da sociedade civil”, pondera Henrique enquanto comenta sobre a manifestação de Janeiro de 2016, na Praça dos Ciclistas, quando a mídia foi capaz de ditar o número de bombas utilizadas pela PM. “Acho que eram sete por segundo. Mas, quando você busca uma reparação e responsabilização, essas informações não são levadas em consideração pelos órgãos estatais que deveriam fiscalizar”, conclui.

    Violência contra comunicadores

    Camila Marques, advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da Artigo 19, trouxe à mesa reflexões sobre os atores que estão no campo e exercem uma função essencial de dar visibilidade às pautas, às violações e fiscalizar a atuação do poder publico. A advogada destaca a importância da mídia na reverberação das manifestações de 2013. “Por isso são alvos do poder público e da repressão. Comunicadores são frequentemente abordados, tem seus dados registrados, equipamentos apreendidos e danificados, são detidos arbitrariamente e levados para testemunhar, como medida de intimidação”, denuncia.

    Documento busca orientar observadores de direitos humanos | Foto: Eduardo Fujise/Conectas

    Camila menciona o caso do fotógrafo Sérgio Silva, responsabilizado pela justiça pela perda do olho devido a um tiro de bala de borracha disparado Polícia Militar, em junho de 2013. De acordo com a sentença “ao se colocar o autor entre os manifestantes e a polícia, permanecendo em linha de tiro, para fotografar, colocou-se em situação de risco, assumindo, com isso, as possíveis consequências do que pudesse acontecer”.

    Outro ponto ressaltado pela advogada foi sobre a importância dos comunicadores na preservação da transparência dos fatos e no apoio à Lei de Acesso à Informação. “Existe uma opacidade total quando se fala de polícia e de segurança pública. Os comunicadores garantem a prestação de contas e a fiscalização que, de outra forma, não existe”, completa.

    O coordenador auxiliar do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos, Davi Quintanilha Failde de Azevedo conta que, desde 2013, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo tem tomado medidas de monitoramento das práticas policiais durante as manifestações. Um plantão de denúncias pra cumprir a função de fiscalização e observação de violações nas manifestações foi criado da época, além da criação de um livreto pra empoderar a sociedade dos seus direitos e saber a quem recorrer em casos de violações. Em abril de 2014, a Defensoria Pública ajuizou uma ação civil pública pedindo à Justiça o estabelecimento de medidas para coibir excessos policiais em manifestações públicas.

    “Algumas das nossas exigências foram a expedição de parâmetros de atuação da PM no Estado de SP; identificação de todos os policiais atuando nas manifestações; publicação do ato administrativo posteriormente, abstenção da utilização de alguns equipamentos que já são proibidos em outros países e também proibição da participação da Rota como forma de inibir a manifestação”, explica Davi.

    Produção de provas

    O coordenador ainda enfatiza a importância das Diretrizes no empoderamento da sociedade civil, inclusive para a produção de provas por meio do uso de mídias sociais.

    De acordo com a Declaração de Princípios Sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, “as leis de privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e a difusão de informação de interesse público”. O texto ainda completa dizendo que “os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da sociedade”. Em outras palavras, filmar a atuação policial é um direito do cidadão.

    Marlon Weichert acrescenta reforçando a necessidade da criação de articulações que envolvam as mídias alternativas como forma de garantir essas provas. “Eu cheguei a fazer uma reunião com eles e naquele momento meu sonho de consumo era que tivesse um aplicativo pra remeter as cenas de violação pra um comitê que pudesse lidar com aquela informação. Temos muitos dados sendo coletados e não conseguimos ter um fluxo de seguimento a essa informação pra tenha um fechamento”, completa.

    Mais repressão do Estado

    A trajetória de repressão estatal é antiga. Mas há quatro anos, evidências de intensificação tem dados as caras. Segundo Camila, desde 2013 o estado tem investido massivamente em armamento menos letal, canhões de jato d’água e equipamentos de vigilância e monitoramento. Além disso, surgem novas técnicas de repressão, como o Caldeirão de Hamburgo ou a tropa do braço. Outro ponto, é a sofisticação dos processos de criminalização de manifestantes e movimentos sociais. “Ano passado pela primeira vez a lei de organizações criminosas foi aplicada contra membros do MTST. A lei anti-terrorismo foi aprovada e não satisfeitos, o Congresso já propôs duas PLs que visam piorar e introduzir a motivação politica ideológica pra quem comete crime de terrorismo e querem excluir a salvaguarda à manifestantes”, explica Camila.

    A participação de órgãos internacionais na discussão da preservação do direito à manifestação social é essencial para a conquista dos espaços e para forçar o Brasil a adotar posicionamentos e padrões internacionais. “É muito importante que o Alto Comissariado das Nações Unidas de Direitos Humanos, faça a leitura de que há uma preocupação com o Brasil. Eu acho muito importante que os organismos internacionais estejam bem informados sobre o que está acontecendo no nosso país”, conclui Marlon.

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