Os erros que a intervenção do Rio cometeu na primeira grande ação contra as milícias

    Para Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a detenção coletiva de 159 pessoas em Santa Cruz, no final de semana, foi um mandado coletivo disfarçado de prisão em flagrante

    Foto: Reprodução/TV Globo

    No mesmo dia em que o presidente Michel Temer (PMDB) anunciou a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, o general Braga Netto, que assumiria o papel de interventor, reivindicou do presidente a autorização para pedir à Justiça mandados de busca e apreensão coletivos. O governo ventilou a ideia nos dias seguintes e foi duramente atacado por entidades de direitos humanos, juristas e pelo Ministério Público Federal. Oficialmente, a ideia dos mandados coletivos foi esquecida. Mas a prisão em massa de 159 pessoas em Santa Cruz, na zona oeste da cidade do Rio, durante operação de combate a milícia, na madrugada de sábado (7/4), parece indicar que a estratégia não foi abandonada.

    “O que aconteceu em Santa Cruz foi um mandado de prisão coletivo disfarçado de auto de prisão em flagrante”, afirma à Ponte o subcoordenador de defesa criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Ricardo André de Souza.

    A prisão em massa dos 159 foi a primeira grande ação da intervenção federal contra as milícias, na esteira das mortes da vereadora Marielle Franco (Psol) e do motorista Anderson Gomes, em que existe a suspeita de ação de milicianos. Os detidos estavam em um show de pagode divulgado em redes sociais e que trazia as bandas Pique Novo e Swing & Simpatia, conhecidas do grande público.

    Indignados, moradores da região ouvidos pela Ponte afirmam que, entre os detidos, há pessoas inocentes que não têm qualquer ligação com crime organizado. “Eu pessoalmente conheço gente que não possui renda e patrimônio compatíveis com atividade de milícia. Pessoas que moram em casas humildes, é de dar pena”, afirma um morador de Santa Cruz, que pediu para não ser identificado.

    A desembargadora da 4ª Câmara Criminal Gizelda Leitão Teixeira questionou o delegado titular da Draco (Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais), Alexandre Herdy, em ofício expedido na quarta-feira (12/4), sobre a ausência de provas individuais dos 159 presos , no último  final de semana, em Santa Cruz, na zona oeste da capital fluminense.  O grupo foi levado para o Complexo Prisional de Bangu e passou por uma audiência de custódia que durou quase 14 horas, por videoconferência. A informação oficial da Draco é que a operação foi deflagrada fruto de uma investigação de dois anos. De acordo com o Tribunal de Justiça do RJ, até a manhã desta sexta-feira (13/4), não havia informações de que Herdy teria respondido ao ofício.

    Durante a audiência de custódia, realizada na terça-feira (9/4), a juíza Amanda Ribeiro de Azevedo Alves ignorou as alegações dos defensores públicos, de que haveria ilegalidades nas detenções, e converteu os flagrantes em prisão preventiva. Todos estão sendo acusados de compor milícia privada (artigo 288 A do Código Penal) e posse ou porte de arma de uso restrito (artigo 16 do Estatuto do Desarmamento).

    “Na audiência, diante da juíza, argumentamos isso para dizer ao judiciário o seguinte: vocês nunca defeririam isso se isso fosse pedido anteriormente [à intervenção].  E a gente esperava que o judiciário não chancelasse isso quando tivesse conhecimento da forma como a prião dessas pessoas foram feitas. Elas estavam em uma festa aberta ao público, na qual estavam tocando bandas conhecidas”, argumenta Ricardo. Além disso, a defensoria critica a realização da audiência de custódia por videoconferência, por alegar que é direito do indiciado ser apresentado presencialmente ao juiz. Os detidos foram ouvidos conjuntamente em grupos de 25.

    O defensor aponta o que considera mais uma irregularidade nas prisões: a ausência de materialidade, o que impediu individualizar as acusações. “A própria delegada que assina o flagrante diz que é impossível naquele momento delinear individualização das condutas de cada um dos indiciados. Isso caracteriza outra ilegalidade, porque é preciso que você diga o que cada pessoa estava fazendo ali para então dizer que ela faz parte da milicia. Além disso, quando uma prisão em flagrante acontece e há o encaminhamento para o Ministério Público, esse conjunto de provas que consta na prisão em flagrante será o mesmo usado para que o promotor faça a denúncia. Ou seja, se o próprio delegado diz que não pode individualizar as condutas, como é que o promotor fará isso?”, questiona Ricardo André. “Estamos diante de uma insuficiência probatória e, nesse sentido, causou muito espanto que isso tenha sido vendido na mídia como uma ação de inteligência que desbancou a milícia.”

    A Defensoria destaca que pelo menos 11 pessoas do grupo de 159 seriam supostos alvos da polícia a partir de uma investigação que já durava pelo menos dois anos. “O crime de milícia privada demanda uma habitualidade. Eu não posso caracterizar esse crime a partir de um ato isolado. E o flagrante pega um ato isolado. A polícia diz que havia uma investigação que a levou a chegar no local, mas no relatório do flagrante não aponta o número de investigação prévia, um expediente pelo qual a gente pudesse acessar essas alegadas investigações anteriores”, pontua o defensor.

    O flagrante indicou 25 armas apreendidas como prova. “É questionável o argumento de porte e posse compartilhável”, afirma o defensor Ricardo André.

    Segundo uma fonte ligada à polícia fluminense, a ausência de provas individualizadas é um erro em um caso dessa envergadura e a forma como foram feitas as prisões pode indicar uma necessidade de dar uma resposta rápida à pressão da opinião públicas, após os assassinato de Marielle e Anderson.

    ‘Lugar de artista de circo é no picadeiro’

    Entre os presos chama a atenção a história do artista circense Pablo Prince, de 23 anos. Morador de Santa Cruz, o artista vive entre Brasil e Europa, onde integra a equipe de um circo de rua em Estocolmo, na Suécia. Ele é casado e passava o período de férias no Rio com previsão de ida à Suécia para nova temporada no próximo dia 23 de abril, segundo o advogado dele, Alessandro Garcia. “Ele, a mulher e outros dois casais amigos decidiram ir ao show até como uma despedida dele daqui. Ele está incrédulo. Ao lado dos amigos, não sabe por que afinal de contas está preso”, explica o advogado.

    O ator Marcos Frota, que também é da área circense, manifestou publicamente apoio ao Pablo. “Atenção, artista é trabalhador. Tem muita gente inocente na cadeia. Pablo Prince é um artista, é trabalhador. O lugar dele é no palco, é no picadeiro”, diz Frota.

    Para o advogado de outro grupo de detidos, Leonardo da Luz, a falta de materialidade viola direitos fundamentais. “Isso é direito garantido na Constituição. Toda pessoa presa assina a chamada ‘nota de culpa’, em que ela toma ciência do que está sendo acusada. E dentro do registro de ocorrência, qualquer prisão em flagrante tem que ter todos os detalhes da prisão no inquérito e a materialidade, que é a prova. Isso não apareceu em lugar nenhum”, critica.

    Nesta quinta-feira, o ativista Raull Santiago, do coletivo Papo Reto, denunciou o caso nas redes sociais:

    https://www.facebook.com/raullsantiago/posts/1686111884770388

    A Ponte procurou a Draco/IE por meio da assessoria de imprensa da Polícia Civil do RJ, mas, até agora não houve retorno.

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