Estado brasileiro que mais mata adolescentes, o Ceará enfrenta há pelo menos três anos grave crise no sistema socioeducativo para jovens infratores, que seguem internados sob condições insalubres e sem acesso à atividades que garantam a ressocialização
Gabriel Oliveira é um menino de poucas palavras. Não fala sobre o futuro porque nunca esteve seguro que o teria. Cresceu na casa dos avós com a mãe e o irmão, em um bairro pobre de Fortaleza – cidade brasileira com o maior índice de homicídios de adolescentes -, vendo amigos roubarem e matarem com olhos de quem não foi ensinado a valorizar a vida. É um menino muito tranquilo, apesar da realidade que vê ao seu redor. Gabriel só ousou sonhar com o futuro quando tinha dez anos e pediu que sua mãe alugasse um lugar para que ele oferecesse aulas de karatê. “Aos 15, já serei faixa preta, mãe. Vou começar a trabalhar”, prometeu. O menino era tão tranquilo que, quando a Polícia estacionou a viatura na frente da casa dele para contar à família que Gabriel havia sido capturado por roubar uma bicicleta, a mãe, Ariadne, não acreditou. “Eu não sabia como lidar com a situação”, admite ela. Sem saber o que fazer, ela bateu várias vezes no filho, em tentativa vã de mudar o destino. “Os castigos o deixaram pior”, diz Ariadne, que conta que fazia tudo o que podia para compreender o menino, mas não conseguia. Ela se recorda de um diálogo que teve com o garoto: “Filho, por que você faz isso?”, perguntava. E Gabriel respondia: “Ah, mãe, eu quero ter o que mostrar. Quero ostentar”.
Apesar da advertência da Polícia, Gabriel continuou a fazer pequenos furtos em bairros vizinhos e voltou a ser capturado muitas vezes. Na terceira delas, quando roubou uma bicicleta ameaçando a vítima com uma arma de brinquedo, ele foi levado para um centro socioeducativo sob uma detenção temporária de 45 dias. Naquele dia, começou uma longa jornada de três anos em praticamente todos os centros socioeducativos de Fortaleza. “Sentenciado duas vezes, ele fez 14, 15 e 16 anos preso”, conta a mãe.
Os centros socioeducativos têm a aparência de uma prisão comum. Do corredor, é possível ver dezenas de braços magros suspensos entre as frestas das barras de ferro e outros tantos corpos deitados em camas de concreto sem nenhum conforto. O chão – assim como os colchões – está encharcado com urina e água de esgoto. As paredes apresentam infiltração e deixam no ar um insuportável cheiro de umidade e morfo. Apesar do ambiente insalubre, os jovens não têm permissão de sair. Ali, o tempo parece congelado para pouco mais de 700 jovens. Privados de liberdade por envolvimento em crimes de todos os tipos, a eles as horas parecem mais longas, porque estão também distantes de educação, lazer e qualquer outra atividade que lhes permita sair dos dormitórios por alguns minutos. Ainda que seja possível observar pelas grades os rostos, os corpos e a pele, majoritariamente negra dos detidos, eles são meninos invisíveis. Já o eram antes de serem presos, enquanto cresciam em famílias sem estrutura e encarando desigualdade social. Agora, internados em centros socioeducativos que deveriam recuperá-los, são reduzidos aos atos e crimes que tenham cometido em liberdade.
Sempre que era permitido, Ariadne seguia ao centro socioeducativo para visitar o filho Gabriel. Levava para ele algo para comer e para calçar. Os encontros pareciam não durar nada. A mãe olha para o filho com atenção e percebe, com surpresa, marcas roxas em seu corpo, mas as ignora com o silêncio. “Eu não compreendia o que estava acontecendo. Como outras mães, pensava que ele apanhava porque tinha feito algo errado lá dentro”, ela conta. Quando Gabriel foi transferido para o centro socioeducativo Dom Bosco, a situação piorou. “Lá começou o inferno. Jogavam lixo e unira nos meninos. Meu filho sofreu agressões e torturas”, diz. O menino dizia não aguentar mais a situação e prometia fugir, mas a mãe lhe dizia que o devolveria à Justiça. “Quero que você saia daqui limpo, filho”, argumentava. Mas Ariadne não parecia ter dimensão da situação que se repetia em quase todos os centros socioeducativos da cidade.
A sexta-feira, 6 de novembro de 2015, amanheceu como qualquer outro dia da semana. Fazia calor de manhã cedo, quando os instrutores passaram pelos corredores dos centros São Francisco e São Miguel – cujos edifícios estão separados apenas por uma parede – para distribuir o café da manhã aos 350 jovens internos. Embora a capacidade das duas instituições some 120 jovens, a presença de outros 230 não surpreendia ninguém, já que a lotação é uma realidade frequente na maioria dos equipamentos da cidade. Quando o relógio marcou dez horas, os internos de São Miguel começaram a se agitar. Atearam fogo nos colchões onde haviam dormido na noite anterior, quebraram as paredes e atiraram pedras e telhas contra os instrutores para forçá-los a abrir os portões dos dormitórios.
Uma fumaça negra subiu em direção ao céu, deixando um cheiro forte e uma cortina escura que dificultava uma visão panorâmica do espaço e manchava as paredes de fuligem. Não demorou para que uma dezena de adolescentes entrassem no edifício vizinho, o centro São Francisco, depois de saltar a única parede que separa as duas casas. Do telhado do São Francisco, agentes socioeducativos jogaram em direção aos internos pedaços de madeira que, nos centros, foram batizados de “paracetamol”, medicamento utilizado para dor de cabeça. Com esses instrumentos distribuídos, o caos se instalou. Centenas de jovens quebraram de cadeiras e pratos a banheiros e dormitórios com violência. Os instrutores deixaram o local assustados, enquanto a Polícia Militar entrou para conter os adolescentes. Na teoria, a polícia não poderia usar arma de fogo naquela situação – a rebelião mais grave daquele ano -, tendo em vista que a legislação brasileira veda expressamente essa conduta caso as pessoas em fuga estejam desarmadas ou que não represente risco imediato de morte a terceiros. Um som agudo denunciava uma ilegalidade desastrosa.
Neste momento, o corpo de Márcio Ferreira do Nascimento, um adolescente de 17 anos internado no São Miguel por homicídio, é atingido por balas que, embora a confirmação só tenha acontecido semanas depois, vieram da guarita de vigilância. Márcio caiu no chão, mas não morreu imediatamente. Ainda houve tempo para levá-lo ao hospital público e operá-lo, mas o corpo frágil já não tinha vida às 21h15. Márcio, antes de conseguir ser visto como um jovem comum, morreu na sala de reanimação do hospital, no centro de umas das cidades mais violentas do Brasil, para expor a crise do sistema de ressocialização em um país marcado pela cultura do encarceramento.
A morte de Márcio não causou muita comoção. Talvez só tenha provocado dor na família, ainda que represente uma grave realidade da cidade onde ele cresceu. Fortaleza é a capital brasileira onde dez em cada mil jovens serão assassinados antes de chegar aos 19 anos, conforme a pesquisa Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), realizada pelo Laboratório de Análise da Violência (LAV), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), com base nas mortes ocorridas no Brasil em 2014. O perfil dos mortos assusta: a maioria é pobre, negra, sem estrutura de proteção familiar nem acesso a políticas públicas e geralmente envolvida no crime. As leis não consideram o fracasso histórico do Estado com a ressocialização, de modo que os jovens são julgados e detidos com base unicamente nas suas ações. Sob a custódia do Estado, dentro dos centros socioeducativos, eles seguem com seus direitos violados.
Sem educação ou qualquer outra atividade que os ajude a passar o tempo e os reinsira na sociedade, os adolescentes continuam no crime e parecem, aos olhos dos familiares, cada vez mais revoltados. Lançam a própria urina nos instrutores e jogam a comida que não gostam no corredor. Gritam e batem nas grades em vão. À violência deles, os supervisores respondem com mais violência. A punição para os líderes de conflitos é a “tranca”, uma cela com paredes manchadas de sangue onde os jovens são agredidos e isolados. A prática teoricamente foi banida há muito tempo, mas, segundo os adolescentes, ainda existe.
Quando Márcio morreu durante aquela rebelião, o sistema socioeducativo cearense vivia a sua crise mais intensa, com sérios conflitos entre internos e supervisores. Em 2015, não houve uma semana sem rebelião em algum dos nove centros do Estado. Os instrutores eram feitos de refém, ameaçados com uma broca na cabeça. Metade dos mil jovens internos nas unidades – quase o dobro da capacidade nesse período – fugiu alegando más condições dos centros e o número excessivo de internos. Muitos deles ainda não voltaram, outros tantos morreram na rua. Alguns foram devolvidos à Justiça pelas próprias famílias, ansiosas para limpar a história de seus filhos.
“Não há como explicar a dor de uma mãe que precisa entregar o filho à Justiça”, diz Ariadne Oliveira, enquanto passa as mãos pelos longos cabelos crespos. Faz dois anos que ela levou o filho Gabriel até a sala do juiz Manuel Clístenes, responsável por analisar as sentenças de jovens, para devolvê-los aos centros depois de uma fuga. “Doutor, lhe peço mais uma chance ao meu filho porque quero recuperar ele”, disse, embora soubesse o sofrimento que o filho vinha passando. Gabriel foi internado em todos os centros socioeducativos do sexo masculino de Fortaleza. Mudou de instituição muitas vezes ao longo dos três anos que passou entrando e saindo do sistema, porque alegava agressões e ameaças tanto de outros adolescentes quanto de instrutores. “Fiz dez denúncias formais de tortura contra ele”, conta a mãe. Nenhuma delas foi, de fato, investigada.
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A crise continua
São 14h30 de quarta-feira, 15 de março de 2017. Dezesseis jovens chegam à 5ª Vara da Infância e Adolescência de Fortaleza. Escoltados por três policiais, eles estão organizados em filas e unidos por algemas em quantidade insuficiente para todos. Eles vêm de dois centros socioeducativos para que o juiz Clístenes analise suas sentenças. São levados para uma sala semelhante a uma cela para aguardar a audiência. “Vamos! Rápido! Quero voltar cedo hoje”, diz um policial com bigode imponente e óculos na cabeça. Os meninos não parecem querer escutá-lo e, sem esboçar reação, seguem ali, sentados em um banco de concreto.
No corredor, dois policiais conversam. “Aqui, o trabalho é muito tranquilo. Só fica difícil quando os prisioneiros chegam”, diz um deles, enquanto ajusta o cinturão onde guarda a arma. O outro ri e acena em concordância. Ainda que estejam ali policiais e parentes, ninguém parece estranhar o fato de os adolescentes serem tratados como presos comuns. Aos olhos de praticamente todos os presentes, eles não são adolescentes internos, mas perigosos criminosos, “um câncer da sociedade”, como os definem os próprios agentes em páginas nas redes sociais.
A percepção das pessoas é que a maioria desses jovens não matou ou roubou porque têm fome. Fizeram isso pela adrenalina do momento, para conquistar poder na comunidade, para ostentar. Os atos infracionais não lhes parecem absurdos porque cresceram assistindo amigos e parentes morrerem como se a vida não tivesse valor algum.
R.F., de 17 anos, entra na sala do juiz acompanhado por uma irmã muito bem maquiada e com o cabelo penteado para trás. Ele usa uma camisa azul e laranja muito limpa que se destaca sobre a pele negra e o cabelo recém aparado em um corte da moda. Hoje é um dia importante para os dois, porque o menino poderá deixar o sistema socioeducativo depois de cumprir quase três anos de internação por tráfico de drogas. Prestes a completar 18 anos, é perigoso envolver-se em outros atos infracionais sob o risco de acabar em um presídio comum. Em liberdade, sua namorada, que abortou recentemente o filho que esperava, já lhe advertiu que só continuaria o namoro se ele deixar definitivamente o crime.
De cabeça baixa, com os olhos voltados para o chão, é isso que R.F. prometeu ao juiz: “Eu gostava de ostentar, mas todo o dinheiro ia rápido. Perdi mais do que ganhei com o tráfico. Quero mudar de vida pela minha família, doutor. Minha mãe nunca me visitou”. O jovem teve 23 irmãos, mas 14 morreram na infância por doenças como disenteria e cólera. Ele cresceu vendo o pai bater na mãe, embora não entendesse como o próprio pai pudesse praticar os mesmos atos que motivaram assassinar o avô. “Não queria repetir a história de meu pai, então eu saía com meus irmãos pra pedir esmola na rua e não ver agressão”, conta.
Cansado de pedir dinheiro a desconhecidos, R.F. começou a trabalhar doze horas por dia como assistente de costureiro, mas teve o destino alterado quando se deixou seduzir pela forma rápida como os irmãos de uma ex-namorada ganhavam dinheiro vendendo drogas. Aos 14 anos, decidiu se tornar traficante. Um irmão mais velho já estava no negócio, mas ele acreditava que o melhor seria encontrar o próprio caminho para ingressar no narcotráfico. “Nunca trabalhei no tráfico com a minha família”, garante. E conta que, neste momento, o irmão está preso em uma penitenciária para adultos.
R.F. então conseguiu com o “Patrão”, um traficante importante do bairro onde vivia, uma arma e uma motocicleta para iniciar a nova atividade. O acordo era simples: o menino não precisaria pagar por isso, mas teria que vender maconha em troca de uma comissão equivalente a uma pequena parte do valor das mercadorias. “Foi um negócio de confiança”, gaba-se ele. Patrão pertencia à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), uma das mais poderosas no Brasil, mas morreu em uma briga por território com um grupo rival. R.F. já cumpriu sua sentença, mas o juiz teme que ele não consiga se livrar do pacto com criminosos durante a audiência para avaliação do cumprimento da internação:
– Eu entendo que sua vida sempre foi complicada, mas você vai voltar para o mesmo lugar que vivia antes. Você acha que eles vão deixá-lo sair do tráfico? – pergunta o magistrado.
– É só querer, doutor! – R.F. responde.
– Você cumpriu sua sentença, então vai sair, mas lembre que se voltar a cometer um crime, vai voltar. Agora, se for sentenciado por algo que você fez antes de sua internação, venha falar comigo. Não faz sentido que cumpra uma nova sentença por um crime antigo se já está recuperado – diz o juiz, explicando que esta prática é nova e visa evitar que os meninos permaneçam mais tempo detidos do que deveriam ou que voltem a ser internados quando já seguiram outro caminho.
R.F. deixa a sala e caminha devagar em frente à cela onde continuam aqueles que ainda estão à espera da audiência. Ele cumprimenta a todos: “Foi sal”, diz com um sorriso, em referência ao jargão que significa que está tudo bem. Enquanto passa o perfume trazido pela irmã para chegar em casa com visual e cheiro perfeitos, Reginaldo avalia que a situação dos centros socioeducativos até melhorou no ano passado, mas continua complicada.
Sem controle da situação do sistema de socioeducativo em 2015 e no primeiro semestre de 2016, o Governo do Estado do Ceará tem sido pressionado por organizações da sociedade civil, como o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) e órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Diante disso, tomou algumas medidas para minimizar o problema. Uma delas foi a redução no número de internos em regime fechado, que ajudou a diminuir as fugas. O número de internos ainda excede a capacidade dos centros e o Estado não informa quantos adolescentes ainda estão foragidos. Há um ano e meio, o Governo apresentou um Plano de Estabilização com 13 ações para melhorar e reestruturar o acolhimento e a prestação de serviço aos adolescentes em conflito com a lei no Ceará, mas poucas delas foram executadas. A justificativa do Estado é de que atrasos nos repasses federais têm dificultado essas ações.
Um órgão especial foi criado no organograma do Estado (a Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo) para resolver problemas de gestão e fornecer capacitação adequada para os agentes sócio educadores. Apesar da realização de treinamentos dos funcionários – e mesmo da criação de novos cargos para profissionais como pedagogos, enfermeiros e assistentes sociais nas unidades – atrasos salariais continuam acontecendo, o que tem provocado a paralisação frequente dos agentes. Além disso, muitos reclamam da insegurança no trabalho e é comum que sejam ameaçados e feitos refém durante as fugas, por exemplo. Outra demanda significativa é a falta de profissionais para dar conta do volume de atividades necessárias.
Algumas unidades vem passando por reformas e já contam com espaços para aulas e atividades profissionalizantes e esportivas. Diretores das unidades garantem que parte das atividades já começam a ser realizadas em alguns centros, mas adolescentes afirmam que ainda não existe uma regularidade nelas. Além disso, o Estado garante que as “trancas” de tortura foram finalmente desativadas em todas as unidades, assim como foram criados procedimentos de trabalho no sistema judiciário para acelerar as audiências dos jovens. Até então, eles podiam ter a detenção temporária adiada até que fossem julgados e, por isso, seguiam internados por tempo superior ao previsto em lei. Esses avanços, no entanto, ainda parecem pequenos diante dos tantos problemas que persistem. A ressocialização com aulas regulares e a oferta de atividades profissionalizantes ainda não existe. Na maioria dos centros socioeducativos, os adolescentes não têm acesso algum à educação e o tempo de lazer, por exemplo, se resume a 15 minutos de futebol a cada quinze dias.
A esperança das mães em ver os filhos recuperados
A motivação de mães como Alessandra e Ariadne para apoiar outras mães na luta pela recuperação de seus filhos continua firme, enquanto o Estado ainda tenta descobrir como ressocializar jovens vistos como “problemáticos”. Israel, filho de Alessandra, praticamente cresceu em uma escola, já que ali ficava por horas durante a infância enquanto sua mãe atuava como professora. Mas quando ele completou 14 anos, já não podia permanecer nas atividades extracurriculares. “Foi assim que perdi o controle sobre meu filho. Quando me dei conta, ele fumava maconha e roubava”, conta Alessandra.
Israel deixou a casa da mãe ao ingressar no tráfico e ser ameaçado de morte por rivais. Por muito tempo, ele dormia nas ruas, se alimentando de esmolas que pedia às pessoas. Alessandra o procurava em todos os lugares, mas perdeu a conta de quantos dias se passaram sem que tivesse alguma notícia dele. “A noção de tempo é diferente para as mães”, ela diz. “Quando ele era detido pela Polícia, eu gostava porque assim sabia que estava vivo”.
As visitas aos centros socioeducativos, porém, a assustava. Ela não entendia como o filho ainda usava drogas ali, preso sob a tutela do Estado. Sempre o encontrava com aspecto distante, mas evitava falar sobre isso. Quando Israel lhe contou que dividia o dormitório com um adolescente que se gabava de ter assassinado mais de 16 pessoas, ela se desesperou: “Filho, cuidado! Como eles fazem isso? Um adolescente assim não deveria estar separado?”, conta. “Não se preocupe, mamãe. Lá todo mundo faz tudo o que ele manda. Não vai acontecer nada comigo”, teria dito, em resposta, o filho
O medo pelos riscos que via o filho passar tornou Alessandra protagonista de uma história que poderia não ser a dela. “Como mãe, eu me sentia muito sozinha, então decidi criar um grupo com outras mães para lutar pela recuperação dos nossos filhos”, diz. Israel, assim como Gabriel, passou por todos os centros socioeducativos masculinos de Fortaleza. Ao cumprir toda a sentença, poucos dias antes de completar 18, o menino conseguiu enfim sua liberdade.
Israel saiu com vida, mas a mãe tinha medo de uma recaída. Se ele voltasse ao crime, seu destino poderia ser pior: uma detenção mais longa em uma penitenciária para adultos. Quando mãe e filho saíram da audiência, Alessandra tomou um ônibus e levou Israel até a praia. “Eu queria que ele sentisse a liberdade pra que valorizasse”, explica. Os dois observaram o mar por longos minutos sem dizer nada, mas Israel decidiu quebrar o silêncio:
– Eu não vou parar de fumar maconha, mamãe – disse o menino.
– Tudo vai ficar bem, filho, mas você não pode voltar para o tráfico.
– Isso eu prometo.
Alessandra respirou fundo, passeando os dedos sobre a tatuagem de uma rosa que tem em uma das mãos. Ela sabia que sair do crime não era apenas uma decisão do filho. Israel estava ameaçado, e a burocracia do programa de proteção do Estado tornava lenta sua inserção. Então ele decidiu se mudar para o Rio de Janeiro, mais de 2 mil quilômetros distante de Fortaleza, para tranquilizar a mãe. Lá, embora siga usando maconha, trabalha como garçom. “O Estado nunca ajudou. Fui eu que recuperei meu filho”, diz Alessandra.
Ela não consegue esquecer todas as violações que o filho viveu nos centros socioeducativos. Os olhos denunciam a raiva ao contar que grande parte dos problemas permanecem. Em alguns centros, os adolescentes presos têm em média um minuto por dia de lazer. No restante do tempo, ficam nos dormitórios sem fazer nada que não seja falar dos atos infracionais cometidos ou ferir mãos e braços de tanto esfregar os dedos, um sinal também de danos psicológicos. O Estado diz que em alguns centros já há programas de educação, mas só oferece um programa de alfabetização para jovens e adultos, atividade inadequada para a idade dos internos. Falta de higiene e condições insalubres também continuam.
Os problemas persistem e ainda motivam fugas, embora com menos frequência que em 2015 ou 2016. Gabriel Oliveira deixou as unidades algumas vezes no período que esteve detido, entre 2014 e 2016, por fuga ou liberação por bom comportamento, mas sempre voltava aos centros por roubar celulares e carros. “Na primeira vez que ele voltou do centro, percebi que algo tinha mudado. O meu filho não queria mais roubar só bicicletas, queria coisas maiores. Dizia que aprendeu com os amigos de lá como explodir caixas de bancos e arrombar carros”, conta Ariadne.
Em janeiro de 2016, faltavam produtos de higiene pessoal e água para o banho no centro socioeducativo Patativa do Assaré, onde Gabriel estava internado, o que fazia com que os próprios jovens evitassem visitas das famílias por vergonha. O odor da água que transbordava do vaso sanitário tomava os dormitórios, com quatro vezes mais adolescentes que sua capacidade. Ao redor, tudo estava insalubre. As fugas e rebeliões ocorriam com cada vez mais frequência e as visitas foram suspensas.
Após 20 dias sem ver o filho por conta desses problemas, em uma quinta-feira de fevereiro, Ariadne penteou cuidadosamente o cabelo para visitar Gabriel. Quando chegou ao centro onde o filho cumpria a última internação, descobriu que ele já não estava lá. O pensamento tentava assimilar o que havia acontecido, quando foi interrompida pelo som do celular. A tela identificou o número de sua mãe, mas Ariadne a respondeu sem nenhuma saudação: “Gabriel já chegou?”, perguntou ela, como se ele soubesse o que havia acontecido. “Sim. Ele está aqui”, disse a avó do menino. Ariadne conseguia compreender aquela fuga. Havia passado dez meses desde que Gabriel foi preso e faltava pouco para que ele obtivesse liberdade por bom comportamento. “Não entendo o que se passa na cabeça de um menino desses”, diz, para em seguida admitir a sua própria contradição. “Na verdade, eu entendo. Esses centros não funcionam. Os jovens deviam sair com outra visão, mas só sofrem abuso e agressão. Meu filho não estudou nada, não fez nada”.
Com Gabriel de volta em casa, Ariadne precisava para decidir o que fazer. Os últimos três anos foram de preocupação. Mesmo quando o filho conseguia a liberdade na Justiça, reincidia no crime. Muitas perguntas lhe rodeavam a mente: “Serão que vão prender? Será que vão matar?”. Ela decidiu não devolver o filho mais uma vez à tutela do Estado. “Não posso mais levar meu filho para aquele inferno”, recordou.
Durante nove dias do mês de fevereiro de 2016, Gabriel ficou em casa como um adolescente comum. Enquanto a mãe costurava para sustentar a família, ele usava o computador para passar o tempo. Uma vez, mostrou a Ariadne uma menina bonita com quem ele estava namorando. No nono dia, as frequentes chamadas ao telefone celular chamaram a atenção da mãe. Já era noite, quando o menino pediu cinco reais para sair um pouco. Ariadne lhe suplicou como ficasse em casa, como fazia todos os dias por medo de que ele fosse descoberto pela polícia, mas Gabriel não a escutou.
Meia hora depois que o filho fechou a porta, a concentração de Ariadne com a máquina de costura foi interrompida pelo som de um tiro. De supetão, o pensamento buscou o filho, enquanto a sala parecia insuportável diante de um mau pressentimento. “Deus, cuida do meu filho”, rezou em silêncio, sem conseguir mover nenhuma parte de seu corpo. Ariadne ficou paralisada por 20 minutos, enquanto Gabriel agonizava na rua vizinha. Nenhum vizinho foi à casa de Ariadne para contar o ocorrido.
“Eles conheciam meu filho desde a infância. Ainda não consigo perdoar”, diz.
Gabriel havia recebido vários tiros nas costas. As balas não perfuraram nenhum órgão vital, mas a corrida desesperada de Gabriel para salvar-se, apoiando as mãos na parede de uma escola particular, o matou de hemorragia. “Não sei dizer por que mataram meu filho. Conheço seu assassino desde a infância, mas não posso perguntar”, chora Ariadne. Tampouco a polícia ajudou a desvendar as razões do homicídio. A morte de Gabriel nunca teve a investigação finalizada. “Meu filho é só um número para o Estado. Foi tratado como nada, e eu sou a mãe de um nada”.
O Governo do Ceará bem como a superintendência criada exclusivamente para cuidar dos centros foram procuradas por e-mail para comentar os casos relatados na reportagem. O governo ainda não se pronunciou. A superintendência enviou um documento com várias medidas que estão sendo tomadas para melhorar o sistema, mas não comentou os casos específicos citados na reportagem.
Linha do tempo do sistema:
2013: Sistema socioeducativo do Ceará tem 1.126 adolescentes em regime semiaberto ou fechado. O Estado dispõe, ao todo, de 14 unidades socioeducativas, sendo 11 masculinas, uma feminina e duas mistas.
2014: 1.030 jovens seguem internados em regime fechado, com capacidade para até 600 jovens, evidenciando superlotação.
2015: Unidades contabilizam pelo menos 60 rebeliões e 200 fugas, conforme dados da 5a Vara da Infância e da Adolescência. Na época, a situação era mais caótica do que em qualquer penitenciária para adultos no Brasil. Um adolescente acabou morto durante uma das rebeliões por um policial.
2016: Quase metade dos adolescentes internados fogem dos centros: ao todo, foram 400 fugas quando o sistema mantinha 900 jovens nas unidades. No primeiro semestre do ano, os conflitos eram constantes. O Estado criou uma superintendência especial para lidar com a questão.
2017: Pelo menos 801 adolescentes seguem internados nos centros socioeducativos. Apesar de algumas reformas, ainda não há atividades socioeducativas em todas as unidades.
Entenda o sistema socioeducativo no Brasil em 5 pontos:
1. A legislação brasileira estabelece a idade de 18 anos para a maioridade penal. Adolescentes com idade inferior que cometem atos infracionais têm seus casos analisados pela vara da infância e, a depender da gravidade dos atos, devem ser submetidos ao sistema socioeducativo, com o cumprimento de medidas em meio aberto, em semiaberto ou em regime fechado.
2. Essa tarefa é executada conforme o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), por qual é organizada a execução das medidas socioeducativas aplicadas a adolescentes aos quais é atribuída a prática de ato infracional.
3. Órgão gestor do Sinase, a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente articula ações com instituições do Sistema de Justiça, bem como com governos estaduais e municipais.
4. O Sinase estabelece como princípios para a execução das medidas socioeducativas a legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais punitivo do que o conferido ao adulto; prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas; brevidade da medida em resposta ao ato cometido; individualização, considerando-se a idade, capacidades e circunstâncias pessoais do adolescente; fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo.
5. Ainda segundo o sistema nacional, são direitos do adolescente submetido ao cumprimento de medida socioeducativa: ser acompanhado pelos pais ou responsável em qualquer fase do procedimento administrativo ou judicial; ser incluído em programa de meio aberto quando inexistir vaga para o cumprimento de medida de privação da liberdade, exceto nos casos de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, quando o adolescente deverá ser internado em unidade mais próxima de seu local de residência; ser respeitado em sua personalidade, intimidade, liberdade de pensamento e religião; receber assistência integral à sua saúde; acesso a atividades educativas e/ou profissionalizantes.