Os navios negreiros das prisões do Pará

Práticas de tortura e humilhação, conhecidas como “procedimentos”, entraram para a rotina dos presídios paraenses, ao lado da alimentação ruim e do uso constante de spray de pimenta contra os detentos, segundo familiares e policiais penais

Iracema Barbosa e Robervaldo da Costa mostram documento do filho Rafael, que morreu aos 22 anos, no Complexo Penitenciário de Americano, em Santa Izabel (PA) | Foto: João Paulo Guimarães

Robervaldo da Costa, hoje com 52 anos, nunca vai esquecer a véspera do Natal de 2022. Na manhã daquele dia, bem cedo, por volta de 6 horas, sua irmã o surpreendeu, aos gritos, com a notícia de que seu filho, Rafael Barbosa da Costa, 22 anos, havia morrido na prisão. “Eu não acreditei”, lembra.

Ele e a irmã foram até o município de Santa Izabel, na região metropolitana de Belém, onde Rafael estava preso havia um ano e nove meses, no Complexo Penitenciário de Americano, pelo crime de roubo.. Réu primário, o jovem seria solto dali a quatro meses. Não deu tempo.

O corpo de Rafael estava na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do município. Quando abriram o plástico preto que o envolvia, Roberval ficou chocado ao ver o rosto do filho. “A cara dele estava cheia de sangue, só sangue, muito sangue”, relata. O cadáver ainda vestia o uniforme da prisão. O pai duvida que o jovem tenha recebido socorro médico e morrido na UPA, como os funcionários lhe disseram. “Meu filho não morreu fora [do presídio], não, ele morreu lá dentro mesmo. Os presos me falaram, de certeza”, relata Roberval.

O pai conta ter ouvido dos outros detentos que Rafael teria agonizado em cima de um colchão velho, ensopado com o próprio suor e sangue. Um dos detentos contou que carregaram o jovem para uma área de ventilação, para que pudesse respirar, e gritaram por ajuda da polícia penal, sem obter resposta.  “Os presos me falaram: ‘Olha, o seu filho morreu lá dentro da cadeia, junto com nós, lá dentro, nós vendo ele morrendo’. Eles não prestaram socorro pro meu filho de jeito nenhum”, denuncia.

Rafael contraiu tuberculose no presídio, segundo a família. Meses antes da morte, havia relatado à família as dificuldades para respirar. Em uma de suas saídas temporárias, os familiares o levaram até um médico, que teria emitido um laudo atestando a necessidade de cuidados especiais e recomendando atendimento domiciliar. Mesmo assim, Rafael continuou encarcerado até morrer.

A população prisional do Pará é de 16.115 pessoas, sendo 15.463 homens e 652 mulheres, conforme os dados públicos mais recentes, de dezembro de 2022, divulgados pela Diretoria de Inteligência Penitenciária da Secretaria Nacional de Políticas Penais. Os dados federais são os únicos disponíveis, já que a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) — gerida pelo coronel da PM Marco Antonio Sirotheau Corrêa Rodrigues na atual gestão do governador Helder Barbalho (MDB) — não divulga essas informações.

Fachada do Complexo Penitenciário de Americano, em Santa Isabel, na região metropolitana de Belém | Foto: Divulgação

Em 2022, segundo os dados do governo federal, 12 pessoas morreram nas prisões paraenses. Casos como o de Rafael, em que o óbito do preso supostamente ocorre em atendimento médico fora das instalações prisionais, não entram nessas estatísticas.

Além das más condições da alimentação e das instalações do presídio, a família conta que Rafael costumava reclamar também das constantes torturas a que ele e outros presos eram submetidos, como parte de uma rotina prisional chamada de “procedimento”, em que os detentos são deixados nus, com a mão na cabeça, durante mais de uma hora, sem poder olhar para ninguém ou se mexer. Quem levanta a cabeça leva spray de pimenta no rosto. A família acredita que a prática constante dos “procedimentos” contribuiu para agravar ainda mais o estado de saúde de Rafael.

“Racismo reiterado”

A defensora pública Anna Izabel Sabbag já testemunhou diversos desses “procedimentos” executados no sistema penitenciário do estado. Uma cena que, para ela, evoca a imagem de um navio negreiro, como os que trouxeram à força 10,7 milhões de africanos escravizados entre 1540 e 1850 para o Brasil, mais do que em qualquer outro país.

“Negros no fundo do porão” (1830), quadro do pintor alemão Johann Moritz Rugendas

“É um verdadeiro navio negreiro, onde o que vigora é a humilhação de sentar uma pessoa atrás da outra, com a com as mãos para trás. Não existe diferença. Se for pegar aquela imagem do navio negreiro do livro, é igual a entrar hoje numa cadeira do estado do Pará. São corpos sofridos e machucados. É uma prática de racismo reiterada”, afirma Anna Izabel. A defensora atua há mais de dez anos na área de execução penal, já participou de diligências por cidades como Altamira, Santarém, Parauapebas e Santa Izabel, e está finalizando seu mestrado sobre o sistema penitenciário paraense.

Os “procedimentos” seriam uma forma eficaz de diminuir rebeliões, fugas, motins e a entrada de armas e drogas, segundo os funcionários, mas a defensora afirma que há constantes denúncias sobre abusos na forma e na quantidade com que são aplicados. 

Informação que é corroborada por uma mãe de preso ouvida pela reportagem, que prefere não se identificar. Ela conta ter ouvido do filho: “A gente dormia e acordava com spray de pimenta, mãe. Eles tiraram tudo da gente. Colher, prato, tudo. Nós ficamos aqui simplesmente só de cueca e dormindo no chão”.

A esposa de um prisioneiro acrescenta mais detalhes da rotina de terror vivida entre as muralhas das prisões paraenses. “No CPJA [Cadeia de Jovens e Adultos, também localizada no Complexo de Santa Izabel] eles acordam com spray de pimenta e a comida é pra bicho. Estavam cegando ele, muita spray de pimenta, porrada e muita fome. Quando ele chegou aqui, estava com a cara chupada de fome. O frango estava sendo mal cozido e a comida vem azedíssima, principalmente carne, que tá dando diarreia em todo mundo, que ele falou. E a cabeça toda inchada. Ele fala que batem na cabeça com pedaço de pau na cabeça dos meninos”, conta.

No dia 19 de setembro deste ano, a detenta Meyrilene Feitosa, 43 anos, morreu no Complexo de Santa Izabel, mesmo sendo encaminhada duas vezes para atendimento médico. A ficha de atendimento médico informa que a paciente apresentava dispneia (falta de ar), obstrução das vias aéreas respiratórias e um nódulo na região cervical. Ela já reclamava de falta de ar um mês antes de seu falecimento e recebia atendimentos desde 2016 por conta de um nódulo nas cordas vocais e no pescoço.

O policial penal Demétrius Lemos confirma que o atendimento médico nos cárceres paraenses é precário, por causa da falta de profissionais. “Você tem na unidade uma enfermeira e técnicas de enfermagem, mas não tem médicos. O médico vai numa unidade prisional uma vez na semana, às vezes duas, tem unidade que vai duas vezes no mês”, explica.

Funcionários com “sangue nos olhos”

Segundo a defensora pública Anna Izabel, os mecanismos para prevenir violações de direitos humanos nas prisões são falhos, como as câmeras presentes nas unidades prisionais, que só armazenam as imagens gravadas por 48 horas. Depois desse período, as filmagens são apagadas. “Se acontece algo hoje, algum excesso, alguma tortura na área que tem as câmeras, eu tenho que pedir [acesso às imagens] hoje. Se algo acontecer numa sexta-feira e eu pedir na segunda-feira, eu não tenho mais essas filmagens. Então eu não tenho mecanismo de controle”, aponta.

Para defensora pública Anna Izabel Sabbag, sistema prisional é um novo “navio negreiro” | Foto: João Paulo Guimarães

A defensora afirma que a gestão do atual governador Helder Barbalho (MDB), iniciada em 2019, diminuiu a transparência do sistema prisional em relação ao governo anterior, de Simão Jatene (PSDB). “No governo anterior nós tínhamos o que a gente chamava de ‘Susipe [Superintendência do Sistema Penitenciário do Pará] em números’. Você acessava o site da Seap e lá tinha quantos presos, qual tipo de delito, quantos por gênero ou quantos trabalhavam. Hoje não. Isso diz muito sobre nosso sistema penal, porque a ausência de dados tira a possibilidade de construir qualquer política pública”, conclui.

Ouvido pela reportagem, um policial penal — que não quis se identificar com medo de represálias, inclusive dos próprios colegas — conta que “tem muita coisa errada” no Complexo Penitenciário de Santa Izabel, onde trabalha. Segundo ele, alguns funcionários chegam com “sangue nos olhos” e não veem os detentos como seres humanos, e sim como animais.

“Os presos dormem no chão, na pedra, mesmo. Sem colchão, sem cobertores, com roupas rasgadas, na cela molhada, com pouca alimentação e torturas psicológicas. Se tem um preso doente, eles querem que a gente coloque no corredor da cela. Eu sou da mesma ideia que defende as garantias de direitos do preso e, por isso, eu queria fazer denúncias”, afirma o policial penal.

Segundo ele, as unidades prisionais têm poucos funcionários — uma das unidades do Complexo de Santa Izabel contaria com apenas 11 agentes prisionais para lidar com 249 presos ligados a facções criminosas — e servidores temporários estariam recebendo armas de grosso calibre sem treinamento adequado para lidar com elas. “O [fuzil] 5.56 é uma arma de guerra e a [escopeta] 12 é de uso restrito da polícia. Como é que dão arma depois de um treinamento de apenas três dias? Ou ele atira em mim ou no próprio preso”, reclama.

Os problemas do sistema prisional paraense não prejudicam apenas a vida dos detentos, mas também a de seus carcereiros, conta o policial penal Demétrius Lemos. Segundo ele, muitos de seus colegas perderam a vida em atentados pelo crime organizado e outros tiveram que abandonar suas residências com caráter de urgência, por ameaças ou porque sofreram atentados.

Em uma manhã em 2016, Demetrius teve de explorar um túnel cavado por detentos que foi descoberto antes da fuga, na Unidade de Custódia e Reinserção de Parauapebas. Vestindo  um macacão de brim com botas sete léguas e luvas, ele percorreu engatinhando a passagem subterrânea, seis metros abaixo do solo, ao longo de 60 metros de extensão, em meio a baratas, besouros e centopeias que rastejavam entre fezes de ratos em poças de lama. Por conta da entrada no túnel, conta que contraiu leptospirose e quase morreu.

Demétrius explica que, hoje, o cárcere no estado do Pará é controlado pela policia penal, depois que a Força Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP) foi extinta. A relação da polícia penal com o governo Hélder Barbalho é conflituosa, segundo Demétrius. Em maio deste ano, sete policiais penais foram presos após uma manifestação da categoria, que pedia a aprovação de uma Lei Orgânica para a categoria. Eles acabaram demitidos após a conclusão de um processo administrativo disciplinar. “Um absurdo, ser demitido porque está cobrando uma lei orgânica que é um direito do policial”, afirma.

O que diz o governo

Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) do Pará  respondeu por e-mail e negou a prática rotineira de violações de direitos humanos nas unidades prisionais:

“A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) esclarece que todas as medidas adotadas dentro dos presídios paraenses seguem as diretrizes, regras e resoluções de proteção dos princípios fundamentais da Constituição Federal, salvaguardando os direitos humanos e a dignidade da pessoa presa. A Corregedoria Geral Penitenciária (CGP) segue apurando de forma enérgica todos os casos contrários à proteção da saúde, da integridade física e psicológica, e da efetivação dos direitos das Pessoas Privadas de Liberdade (PPLs). Com todas as formalidades legais e publicidade. Os protocolos atuais garantem os direitos dos internos de forma mais eficiente que em outros momentos, bem como é referência nacional.”

Segundo o governo, não há problemas no atendimento médico aos prisioneiros. “A Seap esclarece que dá cumprimento às garantias de direitos previstas na Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal), possibilitando o atendimento à pessoa privada de liberdade, reconhecendo suas condições e possibilidade de proteção social, garantindo promoção à saúde e prevenção de doenças. Em 2023, foram registrados sete óbitos por doenças respiratórias ou insuficiência respiratória”, afirma.

O governo também negou que as câmeras das unidades prisionais só possam armazenar as imagens por 48 horas, como afirmou a defensora pública Anna Izabel Sabbag. “A Seap esclarece que as câmeras funcionam regularmente e as imagens armazenadas são utilizadas nas investigações de denúncias, quando reportadas. O tempo médio de arquivamento das imagens é de 120 horas, ou seja, 5 dias. A Secretaria está em fase de instalação de novos equipamentos que vão ampliar o arquivamento para 20 dias. Das 54 unidades prisionais, 22 já dispõem do novo sistema”, afirmou a assessoria.

A respeito da ausência de dados atualizados a respeito do sistema penitenciário paraense, o governo afirma: “A Seap sempre empreendeu com a devida publicidade das informações referentes ao sistema penitenciário paraense. No site oficial da Secretaria, estão disponíveis todas as ferramentas legais de acesso à informação. A livre consulta pode ser via portal da Transparência Pública, ou na própria plataforma, que disponibiliza os Relatórios de Gestão dos anos de 2019 a 2022, onde o de 2023 se encontra em processo de conclusão”.

Sobre a exoneração de sete policiais penais após participarem de um protesto, a Secretaria afirma que “as demissões atendem aos termos do Processo Administrativo instaurado para investigar irregularidades no serviço público, seguindo todas as etapas processuais de instrução. Informa ainda que foi conferido a todos os acusados o contraditório e a ampla defesa, o que inclui as oitivas de testemunhas, interrogatórios e defesa escrita”.

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