Os três repórteres que não viveram para contar

    Colegas pedem justiça para os jornalistas equatorianos sequestrados e mortos por dissidentes das Farc, na fronteira com a Colômbia. Seus corpos continuam desaparecidos

    Imagem da última vez em que os três jornalistas aparecem com vida, divulgada por seus sequestradores

    Acostumado a passar horas debruçado sobre documentos que transformava em reportagens que preenchiam as páginas do diário El Comercio — o segundo mais importante jornal do Equador —, o repórter Javier Ortega, 32 anos, aproveitou 1 minuto e cinco segundos para avisar ao presidente Lenín Moreno que a sua vida, a do fotógrafo Paúl Rivas, 45, e do motorista Efraín Segarra, 60, estavam nas mãos dele. Mas pouco ou nada foi feito para poupá-los da morte.

    Gravado como prova de vida da equipe do jornal, o vídeo comoveu a América Latina quando divulgado por uma emissora de televisão de Bogotá, Colômbia. O trio foi sequestrada por dissidentes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) na fronteira entre Equador e Colômbia. Eles viajaram a Mataje, na província equatoriana de Esmeralda, para cobrir ataques a postos policiais que haviam deixado feridos e mortos.

    Sequestrados no início de abril, suas mortes foram confirmadas no último dia 13, a partir de fotos dos corpos enviadas a uma emissora de tevê. Os corpos, contudo, continuam desaparecidos.

    Militares equatorianos e bolivianos travam uma batalha contra os dissidentes, comandados por Walter Patricio Arizala Vernaza, conhecido como Guacho. Os ataques iniciaram-se em 26 de janeiro, quando um carro-bomba foi utilizado para explodir um posto da polícia, deixando 28 feridos, entre militares e civis. Desde então, os governos dos países fronteiriços tentam conter as ações do grupo. Menos de uma semana depois de o presidente do Equador anunciar a morte da equipe do jornal, um casal foi sequestrado na mesma região.

    Os criminosos querem, com os sequestros, que Equador e Colômbia encerrem as ofensivas contra os crimes praticados por eles na fronteira. Jornalistas equatorianas que trabalharam com as vítimas contaram à Ponte qual é o cenário antes e depois do sequestro e morte dos colegas.

    “Amava o jornalismo”

    “Eles não foram até lá para investigar as mortes nas mãos dos dissidentes das FARC, mas acompanhar o trabalho dos militares”, conta Sara Ortiz, repórter que dividiu pautas com Javier Ortega, entre as quais casos de corrupção envolvendo a construtora brasileira Odebrecht no Equador . “Meu companheiro Javier podia passar duas, três horas lendo algo para encontrar um dado. Amava o jornalismo.”

    A jornalista lembra que El Comercio iniciou uma cobertura extensa sobre ataques e a tentativa de homens do Exército, tanto do lado do Equador quando do lado da Colômbia, para contê-los. “El Comercio publicou mais de 15 reportagens sobre os atentados com bombas na fronteira, sobre o narcotráfico e a insegurança.”

    Conforme Ortiz, desde o final de janeiro até 26 de março, quando os jornalistas foram sequestrados, ocorreram nove atentados terroristas na região. “Uma semana antes do sequestro, morreram quatro militares em Mataje”, contabiliza.

    A equipe viajou em 25 de março à região para produzir reportagens sobre como se dava o trabalho dos militares. A camionete, conduzida pelo motorista Efraín Segarra — há 16 anos trabalhava no jornal — foi encontrada no dia 3 de abril, o que intensificou os protestos na capital Quito por ações mais enérgicas dos dois países.

    Dez dias depois, a 13 de abril, no entanto, o presidente do Equador, Lenín Moreno, anunciou que fotos dos corpos das vítimas, divulgadas por uma emissora de televisão, pertenciam mesmo aos jornalistas.

    “Esperança e fé”

    O último contato que a repórter Amanda Granda, que estudou com Javier na Universidade Política Salesiana, teve com o amigo foi para pedir contatos para uma reportagem que ela produzia sobre abuso sexual infantil, para o jornal El Telégrafo. É com voz embargada, em seu espanhol pausado, que Granda lembra à Ponte que perdeu as esperanças de que voltaria a ver os amigos quando o presidente do Equador, Lenín Moreno, confirmou as mortes.

    “O ministro do Interior, César Navas, em entrevista coletiva à imprensa, disse que ‘as fotos não eram conclusivas’ e que se esperaria a confirmação, minha esperança se mantinha”, lamenta Granda. “Desde o momento em que soube do sequestro, sempre tive esperança e fé de que voltariam”, suspira e completa: “Todos os dias eu escrevi ao Javier, por meio do seu WhatsApp, contando sobre todas as ações que fazíamos: plantões, marchas e convocações”.

    Depois do vídeo em que os três aparecem abatidos e acorrentados, fotografias dos jornalistas mortos foram enviadas à emissora de TV local, Notícias RCN, o coro que protestava engrossou por meio da hastag #nosfaltan3ruas e em cartazes levados às ruas de Quito, pedindo justiça e o reconhecimento das mortes.

    Ainda à espera dos corpos dos amigos, Amanda Granda conta que foi em 2010 que conheceu o repórter Javier Ortega. “Ingressamos juntos no El Comercio depois de estudarmos juntos. Ambos encontramos no jornalismo o amor e a paixão que só entende quem vive o ofício dia a dia.”

    Depois de se lembrar do colega, reconhece: “Agora, a nossa luta continua porque ainda não podemos nos despedir, seus corpos não estão aqui. E até que os tragam, que o mínimo que podem fazer, não estaremos em paz”.

    Em visita à casa em que Javier vivia com o pai e com a mãe, a amiga teve um diálogo difícil com os pais. “Ali me contaram que vão cremar seu corpo e suas cinzas vão ficar em casa. Esse é o desejo da mãe dele e por isso lutaremos até que os corpos cheguem ao Equador”, sustenta.

    Luta pela paz

    “Medo? Não tenho medo”, declarou Susana Morán, que chegou a dividir a mesma editoria de Segurança com Javier Ortega. Atualmente, ela é repórter investigativa na revista Plan V. Para Morán, depois desta experiência, “temos que ser mais fortes para seguir na profissão.”

    “Eu creio que o medo paralisa. Não podemos permitir isso. Eu tenho feito cobertura da fronteira e creio que fazermos mais trabalhos lá é honrar nossos jornalistas. Que o terrorismo não nos ganhe”, declara, emocionada. “É uma luta de todos pela paz.”

    Segundo a jornalista, é possível que tenha havido erros na busca pelos colegas. “Existem informações da Colômbia que este país cessou com operações contra Guacho, chefe dos assassinos de nossos colegas. Também teve pouca transparência e não soubemos o que foi feito para trazê-los com vida”, afirma.

    Nos últimos 30 anos, não houve registro de sequestro de jornalistas no Equador. É a primeira vez que um grupo sequestra e mata repórteres. Mesmo assim, os poucos casos em que jornalistas foram mortos ainda não foram esclarecidos pela polícia do país, segundo Susana. “Não é raro jornalistas serem agredidos verbal e fisicamente, fora a autocensura dos veículos de comunicação. Existe impunidade em qualquer crime no Equador”, lamenta.

    Jornalistas estrangeiros estão formando uma força-tarefa para comparecer à região em que integrantes do diário El Comercio desapareceram para cobrir, de perto, o que tem sido feito para controlar ações dos terroristas e encontrar os corpos daqueles que não sobreviveram para contar o que viram.

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