Ouvidores reclamam de falta de participação em debate da Lei Orgânica das PMs

Texto gera dúvidas para ouvidores sobre brecha que pode colocar órgão de controle social das polícias subordinado ao comando-geral das PMs; projeto foi aprovado na terça-feira (7/11) pelo Senado e segue para avaliação de Lula

Formatura de 2614 Soldados da PM no Sambódromo do Anhembi em São Paulo, em 2016 | Foto: Du Amorim/A2

O projeto de lei 3045/2022, que trata da Lei Orgânica da Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, foi aprovado pelo Senado Federal na terça-feira (7/11) e agora aguarda apreciação do presidente Lula (PT), que pode sancioná-la integral, parcialmente ou vetá-la.

Em meio a uma tramitação acelerada no Congresso Nacional e análise de especialistas que indicam problemas e retrocessos em partes do projeto, um dos setores que não participou da discussão foram os ouvidores e ouvidoras de Segurança Pública, que, em geral, atuam de forma externa na recepção e acompanhamento de denúncias de violações cometidas por policiais nos estados. Isso porque o artigo 10 do PL, que trata da estrutura básica dos órgãos dentro da Polícia Militar, prevê que “a Ouvidoria, subordinada diretamente ao comandante-geral, poderá ser criada, na forma da lei do ente federado”.

O trecho, que não tem nenhuma outra explicação mais detalhada, gerou dúvidas entre os próprios ouvidores. Cada estado tem uma legislação própria sobre a regulamentação de como funciona a Ouvidoria de Segurança Pública ou Ouvidoria das Polícias. Estados como São Paulo, que conta com o primeiro órgão no país, Rio Grande do Norte, Maranhão, Rio Grande do Sul e Pará, por exemplo, têm normas de que o(a) ouvidor(a) não pode integrar as forças de segurança, passando por um processo eleitoral conduzido por um conselho de direitos humanos cujo mandato mínimo é de dois anos, com a estrutura da Ouvidoria subordinada à pasta de Segurança Pública.

Em nível nacional, a lei 13.460 regula o trabalho das ouvidorias de maneira mais generalista, já que aborda as funções do órgão em diferentes esferas do serviço público. É função da ouvidoria, por exemplo, receber, analisar e responder manifestações encaminhadas por usuários de serviços públicos e também produzir relatórios anuais apontando falhas e possíveis melhorias. Já na Lei 13.675/2018, que institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), a seção de “acompanhamento público da atividade policial” no artigo 34 estabelece que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão instituir órgãos de ouvidoria dotados de autonomia e independência no exercício de suas atribuições”.

O Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), inclusive, se posicionou ainda em outubro contra a questão das ouvidorias e outros quatro artigos do PL que considera retrocessos. “Esse dispositivo pode ser interpretado como se referindo às ouvidorias que promovem o acompanhamento da atividade policial, indo na contramão da independência desses mecanismos e de suas finalidades de controle social”, diz a nota pública.

Outro ponto é o artigo 29, que condiciona o comandante-geral a responder diretamente ao governador pelo emprego e administração das forças militares estaduais, o que, para o MDHC e especialistas, dá brecha para que haja extinção das Secretarias de Segurança Pública e a criação de secretarias para cada polícia, como acontece desde 2019 no Rio de Janeiro.

“[No PL] da Lei Orgânica não são estabelecidos critérios de quem serão esses ouvidores”, sinaliza Julimar Gonçalves, ouvidora de Segurança Pública do Rio Grande do Norte.

Como o texto não menciona expressamente uma extinção das Ouvidorias de Segurança Pública, a interpretação dela é de que as PMs podem criar ouvidorias internas sem mexer na ouvidoria externa, pois confronta diretamente com a legislação potiguar que prevê autonomia e independência do órgão. “Eu vejo como uma sugestão: a PM poderá criar, é assim que está na lei, uma ouvidoria subordinada ao comandante-geral. Mas, nesse aspecto, a letra da lei ainda fica subjetiva”, avalia.

Ela também demonstra preocupação com essa brecha. “A lei ela abre essa possibilidade e seria bastante complicado realmente. Com a extinção da Secretaria de Segurança, como ficaria os órgãos? Como ficaria essa estrutura? São questões que a gente precisa estar fazendo para provocar uma reflexão crítica acerca dos efeitos, das consequências desse ato”, avalia.

Ouvidora de Segurança Pública no Maranhão, Elivânia Estrela também compartilha essa análise. “O texto ficou muito confuso, de fato”, afirma. “O que parece para mim é que as ouvidorias que a lei está propondo é um tipo de ouvidoria que vai ficar ali do ladinho do comandante-geral para escutar as demandas de dentro. E a nossa ouvidoria, a ouvidoria que eu represento, são ouvidorias externas, que são para ouvir todos, seja os servidores do sistema de segurança, seja a sociedade”, diz.

No caso da Paraíba, existe uma Ouvidoria Geral de Segurança Pública, que tem um ouvidor que não é integrante das polícias, mas também uma interna da PM que é chefiada por um coronel. As duas foram criadas em 2008.

Mário Gomes de Araújo Junior, que é ouvidor de Segurança Pública no estado, entende que o texto menciona a criação de ouvidorias internas sem prejudicar a externa, e que ter mais de uma ouvidoria fortalece a fiscalização, mas também depende de como a estrutura é organizada. “O que acontece muitas vezes é a gente receber demanda duplicada”, afirma. “Isso é exatamente o que eu quero acabar para que, quando a gente tiver um setor só, todos os processos vão ter um número só”.

Ele é vice-presidente do Fórum Nacional de Ouvidores do Sistema Único de Segurança Pública (FNOSP), que é subordinado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP) e conta com diversas atribuições, desde estimular a criação de ouvidorias nos estados que compõem o Susp a estabelecer diretrizes de controle social da atividade policial.

Os ouvidores entrevistados pela Ponte disseram que o Fórum ficou sete meses sem funcionar e que os integrantes só foram nomeados em portaria em 4 de agosto deste ano, o que prejudicou uma articulação organizada para se inserirem nos debates de propostas do governo sobre segurança pública. “Quando houve a mudança do governo Bolsonaro para o governo Lula, houve todo um rearranjo dos ministérios e também do FNOSP. Nós fizemos a primeira reunião do FNOSP em agosto porque a gente ficou sem presidente até lá”, critica Julimar Gonçalves, do Rio Grande do Norte.

Mario disse que houve “zero” participação dos ouvidores tanto na discussão do PL da Lei Orgânica das PMs quanto nas demais propostas de segurança pública do governo federal. “A gente não consegue fazer uma conversa sólida, para que a gente possa apresentar [propostas] ao governo federal, ao ministro [Flavio Dino], ter uma relação mais direta com o ministro, para a gente ser ouvido”, critica.

Um dia antes da votação do PL no Senado, 100 entidades publicaram o manifesto Que projeto queremos para a segurança pública no Brasil? em que contestam a falta de participação da sociedade civil no debate dos projetos de segurança pública.

Tanto as organizações quanto os ouvidores informaram que estão buscando diálogo com o governo federal. Procurada pela reportagem, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República disse, nesta quinta-feira (10/11), que ainda não tinha recebido o projeto com o texto final e, por isso, não havia previsão de quando Lula poderia avaliar o documento. “Após a chegada, o Presidente terá 15 dias úteis para realizar a sanção ou veto. Nesse processo, a Casa Civil consultará os ministérios setoriais sobre o texto. Somente depois da manifestação dos ministérios o tema será levado a despacho com o Presidente.”, informou em nota.

A Ponte também procurou o Ministério da Justiça sobre a questão do Fórum dos Ouvidores e a demora de nomeação do presidente do órgão, mas não houve retorno.

Outros problemas do PL

Em julho, a Ponte ouviu pesquisadores e policiais sobre o projeto. Com a votação no Senado, não houve mudança substancial sobre os trechos destacados. As críticas foram além do ponto da Ouvidoria. O texto é visto como um retrocesso e distante de discussões recentes sobre a segurança pública no país. José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da PM de São Paulo e ex-secretário nacional de Segurança Pública, entende que era necessária uma lei orgânica sobre as polícias, mas o projeto até militariza ainda mais a organização.

Outro ponto que ele critica é a existência de uma lei orgânica para cada força policial. “O que se esperava era uma lei complementar para regular todas as polícias. Polícia Civil, Militar e agora até a Polícia Penal, que é uma displicência que inventaram. Enfim, deveríamos ter uma lei para regular ambas e não uma lei para cada uma”, conta. 

José Vicente avalia que com uma lei orgânica haveria vantagens para unificar direitos, deveres e organização de todos os agentes. “Com esse projeto de lei o que acontece é que nós vamos tornar ainda mais difícil o relacionamento entre essas duas instituições. Se tivesse uma única lei, ela estabeleceria normas similares, mesmos direitos e mesmos deveres para ambas as polícias”, completa. 

Fabrício Rosa, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, desaprova o trecho da lei que prevê preenchimento de 20% de vagas nos concursos públicos para mulheres. Ele chama a previsão de “cláusula de barreira” e entende essa movimentação como um limitador e não como uma garantia de inclusão. 

“Isso é reflexo de um machismo estrutural terrível que é inconcebível em 2023”, diz Fabrício. Ele explica que esse tipo de prática é tentada em concurso policiais, mas que geralmente é barrada por ação do Ministério Público ou da Defensoria. O pesquisador cobra uma atuação do governo federal para que o PL não seja aprovado com esse texto. 

“Eu acho um absurdo um governo comprometido com a pauta das mulheres, um governo que tem noção de que uma revolução na Segurança Pública passa por enfrentar o machismo, a misoginia. As reformas que aconteceram na Colômbia, por exemplo, passaram pela ampliação dos quadros femininos, pela discussão de LGBT+ nas polícias, passou a fazer a polícia mais próxima da comunidade policiada. Então a primeira questão que eu vejo gravíssima é essa. Em 2023 nós aceitaremos uma lei que exclui as mulheres dessa forma”, comenta Fabrício. 

A falta de abordagem sobre a saúde mental na polícia também motiva críticas. Para Adilson Paes de Souza, tenente coronel reformado da PM paulista e doutor em spicologia pela Universidade de São Paulo (USP), esse tema é crucial e faz parte do dia a dia das corporações. 

“Estudos em saúde psíquica dos trabalhadores, especificamente na polícia, indicam que a maneira como a organização do trabalho se verifica já é considerado um fator de risco para o adoecimento psíquico do policial. Esse projeto, para além de exacerbar a militarização da polícia, poderá contribuir para uma piora do ambiente do trabalho e para um agravamento da saúde dos policiais, podendo contribuir com o aumento de casos de suicídio”, diz Adilson. 

Casos recentes ajudam a ilustrar a preocupação de Adilson. Em Salto, no interior paulista, o sargento Claudio Henrique Frare Gouveia matou a tiros de fuzil o comandante da unidade em que atuava, capitão Josias Justi da Conceição Júnior, e o sargento Roberto Aparecido da Silva. A motivação, segundo revelou o advogado de Gouveia ao UOL, foi a escala de trabalho.

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A unanimidade entre os especialistas é que o projeto militariza ainda mais a polícia. “Parece que todo debate que a sociedade civil vem fazendo sobre Polícia Militar e sobre segurança pública desde os anos 90 foram completamente ignorados”, fala Almir Felitte, autor de História da Polícia no Brasil

“Não se fala sobre mecanismo de controle sobre a polícia, desmilitarização, o papel controverso da polícia em ações de inteligência. Na verdade, tudo isso só está mais reforçado ainda nesse projeto de lei”, completa Felitte. 

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