Facebook bloqueia página que denuncia racismo; para autor, rede prejudica minorias

    Canal ‘Descolonizando’ sofreu bloqueio no Facebook por denúncias anônimas; AD Junior, criador do canal, diz que rede social virou ‘campo de batalha livre’ contra as páginas de pretos, lésbicas e gays

    Publicação de seguidora de AD Junior quando houve o banimento da rede | Foto: reprodução

    “É sua primeira vez viajando de avião?”, “Você é jogador de futebol?”, “Oi, tudo bem, está perdido?”. Essas são algumas das frases que o blogueiro Adilson Santos Junior, o AD Junior, escuta frequentemente no aeroporto quando viaja da Alemanha, onde vive atualmente, para o Brasil. “Nós, negros, somos afrontados diariamente do momento em que a gente acorda até a hora que vai dormir”, afirma AD. “É assim que tratam o negro brasileiro, na ‘afropatronagem’, que é quando pessoas brancas se sentem no direito de tratar pessoas negras como se elas fossem seres inferiores”. 

    Foi no processo de tomada de consciência dessa realidade que AD Junior decidiu criar o canal Descolonizando – com distribuição no YouTube e no Facebook – para tratar didaticamente do racismo estrutural. E não foi sem dor que AD entendeu a urgência do tema. “Faz uns seis anos que eu montei um canal para falar sobre viagens, sobre locais que eu estava tendo a oportunidade de visitar. O primeiro vídeo que eu coloquei, o primeiro, tá, já veio gente e disse que eu era filho de traficante, porque por eu estar na Europa não poderia ser outra coisa. Tinham comentários do tipo ‘Não sabia que macaco voava’, ‘mostra o velho que tá pagando a viagem aí, seu prostituto'”, conta. “Aí comecei a entender que o Youtube era uma plataforma branca, que quem era negro não podia estar em outras posições. Foi aí que decidi tirar meu canal do ar e fazer outro, dessa vez para explicar racismo estrutural, para explicar o que é eugenia, por que as pessoas rejeitam o racismo, ou seja, não se reconhecem racistas”, explica. 

    “O meu objetivo é ser didático mesmo, é educar as pessoas. É descolonizar a mente de gente que ao se deparar com uma situação de racismo diz ‘Ah, é assim mesmo’. Não, não é. A gente precisa entender historicamente quando e onde tudo começou”.

    Foto: reprodução da página AD Junior

    O “Descolonizando” está no YouTube, com mais de 10 mil inscritos, mas é na página do Facebook que tem mais engajamento: são mais de 50 mil seguidores com visualizações e compartilhamentos dos vídeos ele alcança entre 3 e 6 milhões de pessoas por semana. Recentemente, AD Junior participou com outros dois amigos, o youtuber Spartakus Francisco e com o jornalista Eduardo Carvalho, de um vídeo chamado: “Intervenção no Rio: como sobreviver a uma abordagem indevida”, publicado no Spartakus Vlog. Na gravação, os três se revezam e, usando uma boa dose de ironia ao emprestar a ideia de “dicas de sobrevivência”, criticam uma situação que já acontece nas favelas e periferias de todo o país.

    A publicação, respostada na página do Facebook de AD Junior, viralizou nas redes e alcançou milhões de pessoas. No mesmo dia, a página dele sofreu “block” ou “ban”, que nas linguagem virtual significa ser tirado do ar provisoriamente por alguma denúncia. Para AD Junior, o motivo do bloqueio é claro: a ação dos chamados perfis falsos no Facebook, extremistas, que se unem para denunciar coletivamente alguma página que os desagrade. “Quem é o cara do Facebook que toma essa decisão? O Facebook não conversa com pessoas, a única coisa que eles desejam é o nosso dinheiro e vender a informação. Eles estão se transformando num campo de batalha livre em que as pessoas da extrema direita estão bloqueando as páginas de pretos, lésbicas, gays, enfim, de todos os outros grupos que representam diversidade”, desabafa. “Eles combinam em atacar conjuntamente. Eles começam a ‘trollar’ até dar ‘block”, explica. “Essas redes sociais precisam começar a diversificar o diálogo com as pessoas e ter algum tipo de proteção contra esses ataques, porque existem cyber ataques. O que aconteceu na minha pagina foi um cyber ataque”.

    Para AD Junior, o que estamos vivendo é uma revolução preta. “A revolução do 2.0 é o que eu vou chamar a revolução do movimento de diretos de pessoas negras do brasil. E acontece por dois fatores: o primeiro são negros entrando nas universidade e o segundo, as redes sociais. É uma combinação explosiva para quem estava sentado em cima de privilégios. Até ontem, quem falava o que era racismo eram pessoas brancas”, disse.

    Mesmo o Youtube, que AD avalia como uma plataforma um pouco mais aberta a entender a diversidade, também seria segregacionista, segundo ele. E isso, para AD, fica provado na quantidade de assinantes. “É mais entretenimento e nesse contexto o fato de ser negro eu tenho menos chance de as pessoas quererem ver meu vídeo. Quanto mais preto você é você passa pelo problema do ‘colorismo’, que é a história do negro mais preferido, daquele negro que não é tão negro, que, como se diz, tem traços menos negroides”, explica.

    A página de AD Junior ficou banida por mais de 24 horas, mas já voltou ao ar, graças a apoio nas redes. E o blogueiro disse que tudo isso só dá mais força para continuar a sua luta diária e a produzir cada vez mais conteúdos para empoderar negros, para que possam falar com informações contundentes, números e dados sobre o racismo. “Tenho recebido mensagens do tipo: ‘Junior, eu estava almoçando no shopping quando eu vi uma auxiliar de serviços gerais sentada assistindo seu canal’, ou então ‘Eu tava no trem, era tipo 5 da manhã e uma moça estava reassistindo seu vídeo sobre eugenia e comentando isso comigo’. Eu choro toda vez, toda vez”, afirma AD, emocionado.

    Sobre o sonho com relação ao canal, AD Junior afirma que, embora pareça loucura, ele é otimista: “Meu sonho é que daqui 30 anos nós tenhamos uma classe média negra estabelecida no Brasil e que a gente possa ver o avanço de pessoas negras nesse país cada vez mais exponencial. Meu sonho é ver pessoas negras que entendam o que é negritude no Brasil, quais foram os processos históricos para que a gente chegasse aqui e que pessoas brancas possam reconhecer seus privilégios e parar de negar questões muio óbvias para o mundo inteiro. Meu sonho é que o Brasil se transforme em um país democrático para todos, sei que é um sonho muito difícil, mas é meu sonho”, conclui.

    A Ponte procurou o Facebook para tratar do bloqueio temporário da página de AD Junior e a empresa admitiu que houve um erro: “A remoção incorreta de um post levou ao bloqueio temporário da Página. O conteúdo já foi republicado e pedimos desculpas pelo ocorrido” .

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