Programa do CNJ atende demandas por reconhecimento de paternidade, inclusive em presídios, e cuida para evitar que filhos vejam pais algemados
Júlia (*) é uma menina de cinco anos. Alegre, brinca dentro de um depenado Passat 77, cuja ferrugem pouco faz lembrar o azul-bebê que brilhava em frente à residência, na periferia de Goiânia, três décadas atrás. A mãe de Júlia, Sara (*), de 20, olha para a menina brincando enquanto relembra o dia em que teve de contar ao pai, um mecânico de 50 anos, que estava grávida de Gustavo (*), um dos mais ousados ladrões do bairro, por quem Seu Osvaldo grunhia de ódio. É que ele havia sido uma das vítimas do rapaz.
“Meu pai quis matar ele, mas eu falava que eu amava e queria me casar”. Amor que durou até o dia em que Gustavo soube da gravidez. “Ele sumiu”, sussurra, ajeitando o shortinho desfiado nas pontas. No ano passado, soube que o pai da filha está preso.
Ela não perdeu tempo. Sabia que poderia requerer o reconhecimento de paternidade por meio do Programa Pai Presente, que busca reduzir a quantidade de cidadãos que não possuem o nome do pai no registro de nascimento. Com o reconhecimento, poderia solicitar o auxílio-reclusão, no valor de R$ 937,00. E foi o que fez.
Em Goiás, o programa Pai Presente é executado pela Corregedoria-Geral da Justiça de Goiás (CGJGO), sob coordenação, há cinco anos, do juiz Eduardo Perez de Oliveira. Para a Ponte Jornalismo, Perez explicou que a ideia do reconhecimento de paternidade por parte do preso está na linha da ressocialização. “O projeto busca unir a família, criar um ambiente familiar entre reeducando e o filho reconhecido. Busca mostrar ao pai que ele tem um filho e a responsabilidade de educar um dependente que vai se espelhar nele”.
Em 2016, no Estado de Goiás, do total de 300 reconhecimentos, 49 foram de detentos. Neste ano, já foram 47 audiências com reeducandos. Destes, 6 pediram exames de DNA, com dois resultados negativos
Ainda segundo o juiz Eduardo Perez, “o projeto facilita a visita da criança ao pai no ambiente carcerário depois do reconhecimento. Com isso, o pai passa a ter um apelo de consciência sobre o que fez no passado”.
É por isso que, quando percebe que a mãe fala do pai, Júlia vem correndo e se intromete entre as pernas de Sara. “Mãe, liga pro meu pai”. A menina corre pela sala, encontra um celular simples, com a bateria exposta. “Liga, mãe.” A menina quer saber se o pai vai ter o benefício da saída temporária, pois escutou conversa sobre isso da mãe com uma vizinha, que tem um namorado preso. Ou mesmo se a filha poderá visitar o pai no domingo, Dia dos Pais.
Antes, Júlia relembrou o dia em que esteve no Juizado da Infância e da Juventude, em Aparecida de Goiânia, para colher sangue para o exame de DNA. “A menina é a cara do pai dela, tá vendo essa pinta aqui no ombro, ó, o pai tem uma igualzinha no cotovelo”, diz.
Por pouco Gustavo não perderia esta marca que o convenceu da paternidade antes do DNA, oferecido gratuitamente pelo Judiciário Brasileiro, com custo de no mínimo R$380,00. Em uma troca de tiros com a ROTAM (Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas), uma das balas rasgou a carne de Gustavo bem na marca, mas deixou alguma coisa que lembra a mancha preta ondulada.
Sara mostra uma foto de Gustavo. O rapaz, com 22 anos, tem um rosto magricela. Chama atenção uma cruz tatuada do lado esquerdo do pescoço, mas ele produz um amistoso sorriso na selfie, onde é possível ver o concreto da cela: afinal, a foto é para a filha, por quem ele promete fazer o possível para deixar a criminalidade e não quer assustar a menina. Por isso sorri, do mesmo modo com que sorriu no dia da audiência em que viu a menina pela primeira vez e passou a ser oficialmente seu pai, com o nome dele na certidão de nascimento. O rapaz chorou.
“Não é só garantir o direito do filho, que passa a ter o nome de um pai na certidão de nascimento, mas também do pai que passa a ter uma família. Existe essa importância de os indivíduos se encontrarem nessa célula-mãe da sociedade, que é a família. A criança crescendo com o pai próximo esperamos que seja benéfico àquele pai que viveu um antagonismo com a lei possa ter a chance de se ressocializar”, afirma o juíz Eduardo Perez.
A Juíza da Infância e da Juventude de Aparecida de Goiânia, Stefane Fiúza Cançado Machado, coordena o Pai Presente do município da região metropolitana da capital. Ela explica à reportagem que não basta apenas realizar o reconhecimento. É preciso tratar com sensibilidade o momento em que o pai, que normalmente deixa a prisão apenas para audiências sobre os delitos que cometeu, tenha momentos com a família.
“É possível perceber a atenção destes pais diante dos filhos, que muitas vezes eles conhecem ali mesmo, diante de nós. É uma grande motivação para que sigam o bom caminho”, explica. Por isso, uma das atitudes adotadas na sala do Fórum para o programa Pai Presente é evitar que a criança veja o pai algemado e cercado de policiais.
“É a chance de o pai abraçar, tocar e beijar a criança. Até tirar fotos e guardar com muito carinho aquele momento. Não é bom que o filho leve consigo um pai algemado, mas um pai que vai voltar pra sociedade para o bem”, acredita a juíza.
“Posso dizer que foi amor à primeira vista. Ela é muita linda”, disse resumidamente o pai da menina do início desta reportagem ao repórter, por telefone, de dentro de uma cela da Penitenciária Odenir Guimarães (POG), em Aparecida de Goiânia. “Muita gente fala que ele mudou depois que reconheceu a paternidade. Ele tinha muita raiva do pai dele que abandonou a mãe”, justifica Sara. Ele não quis comentar sobre isso com o repórter.
“Ele é um xodó com esta menina. Não deixa de prometer que vai deixar de mexer com coisas erradas”, garante a mãe de Gustavo, que passava na rua quando a Ponte Jornalismo se despedia da família. A avó beijou a menina e aconselhou: “Vai lá ver seu pai domingo, né?”.
Quando fala no pai da menina, Sara fica tímida, mas descarta voltar o romance. A filha do casal interrompe e desmente a mãe: “Eu vi os dois se beijando, eu vi”. Sara se irrita, mas assume: “Ele precisa mudar. Reconhecer que é pai da minha filha é meio caminho andado”.
(*) Os nomes mencionados são fictícios para preservar a idade da criança