Desembargadores decidem anular ação de danos morais à família de jornalista torturado e morto pelo chefe do DOI-Codi alegando ‘prescrição do crime’; familiares manifestam indignação
O Brasil teve uma “suposta ditadura”. O coronel Carlos Brilhante Ustra, chefe do DOI-Codi, o quartel general da repressão durante o regime ditatorial, era um “suposto torturador”. Considerar irrelevante relatos de presos políticos e válido um laudo necroscópico apontado pela Comissão da Verdade como fraudulento. Tudo isso aconteceu no TJ (Tribunal de Justiça) de São Paulo nesta quarta-feira (17/10).
Os desembargadores Luiz Fernando Salles Rossi, Mauro Conti Machado e Milton Paulo de Carvalho Filho analisaram um recurso feito por coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra ainda em vida sobre a condenação por danos morais pela tortura e morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino, em 1971. Merlino morreu após tortura no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) e o julgamento em 1ª instância em 2012 condenou Ustra a pagar R$ 100 mil em danos morais. O coronel morreu em 2015.
Porém, os desembargadores anularam a decisão anterior. A explicação principal usada pelo trio é de que o processo, iniciado em 2010, havia sido aberto após a prescrição de 20 anos, contada a partir da Constituição de 1988 e não do ano da morte. Mais do que negar os danos morais, a argumentação dos desembargadores foi além, ainda que não conste como motivo para anular a ação.
Relator do caso, Salles Rossi chamou o período com os militares no poder (entre 1964 e 1985) como “suposta ditadura” e Ustra de “suposto torturador”. Em seu voto, ele considerou que “não havia provas” suficientes para ligar Ustra à morte de Merlino. Para tal, ele considerou inválidos os depoimentos de testemunhas.
“As testemunhas não acompanharam a ação de tortura presencialmente. E os depoimentos tem reservas pois eram presos políticos, estavam em condição idêntica à do jornalista”, sustentou Rossi, que considerou o conteúdo do processo “sem prova da culpa e prática” para condenar Ustra.
Enquanto ignora os relatos de testemunhas, uma delas presencial, o desembargador relator do caso considerou como prova contundente o laudo do óbito feito à época pelo governo militar. Nele está como causa da morte um atropelamento, versão desmontada na Comissão da Verdade da Alesp (Assembléia Legislativa de São Paulo) e apontada como mentirosa.
Milton Carvalho nada disse em sua argumentação além de “voto com o relator” e, em seguida, Mauro Conti Machado deu seu posicionamento considerando o processo prescrito. Segundo ele, o teor criminal não deixa de valer, porém, em processos de dano moral, há sim a prescrição.
“A prescrição é o ponto mais importante”, diz. “A ação não à União ou Estado e sim à uma pessoa, suposta torturadora, afasta essa possibilidade de não prescrever. Crimes contra direitos humanos devem ser repreendidos, mas precisamos garantir a segurança jurídica”, prosseguiu Carvalho.
A decisão unânime definiu a extinção da ação.
‘Pode torturar e matar, é este o recado’
Angela Mendes de Almeida era companheira de Luiz Eduardo Merlino quando ele foi preso, torturado e morto. Ela acompanhou o julgamento junto de familiares e não escondeu a indignação. Para Angela, a decisão da Justiça legitima ações contrárias ao direitos mais básicos das pessoas.
“Esta decisão é um recado: ‘Pode matar, pode torturar’. É o que os desembargadores sacramentaram aqui hoje”, desabafou, sem imaginar um resultado diferente ao processo. “Não seria diferente com outro fim, mas o recado dado aqui foi claro, explícito. Seria uma resposta à esta onda conservadora que considera que tortura não é nada”, completou.
Familiares, amigos, outros presos políticos torturados junto de Merlino e representantes da Comissão da Verdade estiveram presentes no julgamento. A ex-ministra Eleonora Menicucci, que foi presa na mesma época de Merlino, presenciou as torturas sofridas pelo jornalista. Ela deu um dos depoimentos considerados como insuficientes para provar que Ustra atuou na morte de Merlino. Ela se indignou.
“É muito triste. Era uma decisão em primeira instância, já havia jurisprudência no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Eu, que sou testemunha ocular do assassinato dele, só me indigna cada vez mais”, conta, dizendo que a decisão faz aumentar sua vontade de lutar “pela memória, verdade e justiça”.
Eleonora considera o fato de reverterem a decisão de primeira instância grave. “É uma decisão perigosíssima, prenúncio dos tempos que poderão voltar pelo voto popular”, diz. Adriano Diogo presidiu a Comissão da Verdade na Alesp e destacou o fato de o desembargador validar um laudo do óbito apontado pela Comissão como mentiroso. “Eles recuperaram a versão da ditadura nas alegações, do atestado de óbito que foi derrubado e corrigido. Foi na Comissão de Mortos e Desaparecidos, feita na década de 1990. Voltou a versão de que foi atropelado e se suicidou”, diz.
“O que vejo é que esta decisão rebate na situação do país hoje, a ideia de que vale a pena matar, vale a pena torturar. Na dúvida? Faça os dois. Mesmo que seja um jovem jornalista de 23 anos que trabalhava na Folha da Tarde”, continua Diogo. “Vemos na alegação que, para os desembargadores, Ustra não sabia de nada, não participou de uma tortura, embora tenha depoimentos. Ora, Ustra acompanhava pessoalmente todas as sessões de tortura”, finaliza.