Condições de saúde do jovem de 26 anos pioraram na cadeia, conta sua mãe: “tenho medo de me ligarem avisando para eu reconhecer o corpo do meu filho”
Sem movimentos da cintura para baixo, João(*) tem infecção nos ossos, usa fraldas e carrega quatro feridas profundas e permanentes nos glúteos, que precisam ser limpas duas vezes por dia, sob risco de infecção. Apesar disso, o Tribunal de Justiça de São Paulo considerou justo mandá-lo cumprir pena em regime fechado nos presídios do estado, que não têm condições de receber presos em condições como as dele, segundo a Pastoral Carcerária. Sua mãe, Ana(*), teme pelo pior. “Tenho medo de me ligarem avisando para eu ir reconhecer o corpo dele”, diz.
O motivo para a prisão é um roubo de celular do qual João participou, em 2019. Na ocasião, ele teria atuado como “olheiro” de dois ladrões, permanecendo no carro enquanto a dupla praticava o assalto. Pelo crime, foi condenado, no ano seguinte, a 8 anos e 10 meses de prisão. Não cabe mais recurso da decisão. João é cadeirante desde os 16 anos, quando sofreu um acidente de moto e ficou paraplégico.
“Meu filho errou, a gente quer que ele cumpra a pena, mas num lugar em que ele possa receber os cuidados: no hospital penitenciário ou em prisão domiciliar”, sugere a mãe. Mas não foi o que aconteceu. O rapaz foi levado ao Centro de Detenção Provisória (CDP) 4 de Pinheiros, na capital paulista, após o cumprimento do mandado de prisão, e depois para a penitenciária de Dracena, no interior.
Segundo os laudos médicos, a que a Ponte teve acesso, o jovem tem osteomielite, uma infecção nos ossos que acontece a partir de lesões na pele, faz uso de fraldas geriátricas, utiliza uma sonda para urinar e também está com 80% da audição comprometida devido a antibióticos que fez uso. “Ele não tem controle para evacuar porque as feridas também atingiram perto do ânus”, explica Ana.
“Os presídios em geral não estão preparados para receber uma pessoa no estado que ele está”, afirma a advogada Mayra Balan, advogada do setor jurídico da ONG Pastoral Carcerária Nacional.
O depoimento de Ana confirma o que a advogada diz. A mãe conta o CDP de Pinheiros não dispunha dos itens necessários para os cuidados e ela mesma levava os materiais para a troca de curativos, que era feita com a ajuda de outros presos. Em março, o problema se agravou ainda mais, porque João foi transferido para a Penitenciária de Dracena, distante a 650 quilômetros da capital, e que é destinada a pessoas condenadas e não presos provisórios. “Foi aí que a situação piorou”, conta. “Mandaram ele de ‘bonde’ [transferência de presos] feito um porco, 12 horas de viagem, fez mais uma ferida e ele foi passando mal, os meninos abanando ele até chegar e, quando chegou lá, foi direto para a enfermaria.”
Com dez dias em Dracena, João relatou em carta que não conseguia se alimentar direito, vivendo à base de água, que a cadeira de banho não tinha sido levada e que estava usando uma velha que tinha no local. Foi levado para uma consulta no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, na cidade de São Paulo, em abril: sua condição de saúde era tão ruim que permaneceu internado ali até 30 de maio, tratando das feridas e fazendo a remoção de tecido morto das lesões. “O ideal era ele ficar lá [no hospital] onde ele estava porque estavam cuidando, mas deram alta para ele com as feridas abertas”, diz a mãe.
Do Centro Hospitalar, João retornou para o CDP de Pinheiros. “A namorada dele foi visitar no domingo (5/6) e disse que fazia dó, com as feridas abertas, usando uma faixa [nas lesões], sangrando, e disseram que ele vai voltar para Dracena, mas eu não tenho condições financeiras de ir para lá”, lamenta Ana. “Eu tentei mandar os materiais de novo [para o CDP], mas não recebiam, depois que eu procurei a Pastoral, receberam na quarta-feira (8)”.
João tem advogado próprio, mas a mãe procurou a Pastoral Carcerária em março por desespero. Já foram ao menos cinco pedidos de prisão domiciliar que a defesa do jovem fez, todos negados: aos desembargadores da 4ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça, quando a defesa tentou recorrer da sentença de condenação; ao juiz Peter Eckschmiedt, do do Foro de Caieiras, que condenou João no processo de roubo e declarou que o caso deveria ser analisado pela Vara de Execução Penal, que é a responsável por fazer o acompanhamento dos presos que cumprem pena, quando a sentença transitou em julgado. Depois, a família ainda recorreu ao juiz Breno Cola Altoé, também do Foro de Caieiras, que teve o mesmo entendimento de Ekschmiedt; e à juíza corregedora dos presídios Renata Biagioni, que negou duas vezes o pedido de prisão domiciliar.
Primeiro, a juíza corregedora apontou que caberia à Vara de Execuções Penais analisar a solicitação. Já na segunda decisão, argumentou que a ela caberia apenas verificar “se houve violação ao direito à saúde do sentenciado, negligência, omissão ou abusos por parte da direção do Estabelecimento Prisional”, o que, na avaliação dela, não ocorreu, e que não era “viável o acompanhamento de eventual tratamento dispensado, de forma individual a cada preso”.
O pedido mais recente do advogado é de 30 de maio, à Vara de Execuções Penais de Presidente Prudente, que abarca a cidade de Dracena, caso João volte a ser transferido, e que ainda não foi analisado.
Nesse meio tempo, a Pastoral Carcerária Nacional questionou a Coordenadoria de Saúde do governo paulista sobre a situação do jovem. Em uma das respostas, o setor respondeu que a Penitenciária de Dracena dispõe de equipe completa de atendimento, diferentemente do CDP 4 de Pinheiros, e que solicitou “ao Grupo de Planejamento e Gestão da Pessoa Presa que mantenha permanente contato com a diretoria da unidade prisional em vista do acompanhamento de saúde”. O retorno mais recente é de 1º de junho, quando a coordenadoria relatou que “o paciente está sob cuidados de saúde participando de consultas médicas na Região Metropolitana, sem prazo determinado para sua remoção a qual será realizada de ambulância”. A Pastoral havia pedido que, caso João fosse transferido, o transporte ocorresse em uma ambulância.
A inspeção mais recente do CDP 4 de Pinheiros, feita pela Defensoria Pública data de junho de 2021, apontou superlotação, racionamento de água, falta de disponibilização de água quente, fiação elétrica exposta, com celas abafadas, úmidas, sem ventilação, infestação de baratas, alimentação precária e afins. Segundo a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), até ontem o CDP abrigava 925 pessoas, mas tem capacidade para 566.
Sobre Dracena a reportagem não localizou relatório de inspeção. Até ontem, tinha uma população de 245 pessoas para 192 vagas. No anexo para regime semiaberto da penitenciária, 827 presos ocupam 652 vagas. O diretor da penitenciária Carlos Eduardo Amaral Jorge, em relatório de 23 de maio à juíza corregedora, disse que João foi atendido por uma médica quando deu entrada na unidade e que “recebeu toda assistência da equipe de enfermagem”. No entanto, “com o quadro clínico apresentado pelo sentenciado, esta Unidade Prisional solicitou encaminhamento do mesmo para consulta médica no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário”, que aconteceu em abril.
Em todas as oportunidades, o Ministério Público Estadual se manifestou contra os pedidos de prisão domiciliar. Em uma das manifestações, feitas por promotores diferentes, o promotor Alexandre Daruge, do Departamento Estadual de Execuções Criminais (Deecrim) de Campinas, alegou que “sua condição de paraplegia não o impediu de praticar graves crimes de roubo” e que, pela deficiência ser anterior aos fatos, não caberia concessão de prisão domiciliar.
“É muito frustrante e muito ruim acompanhar esse caso porque a mãe dele quer justiça, mas é a justiça que está agindo dessa forma”, lamenta Mayra, da Pastoral. “Enquanto isso, ele está com feridas gravíssimas, a mãe dele me disse que o xixi está com cor de Coca-Cola por causa das infecções, então é uma sentença de morte.”
“Eu não entendo por que estão negando a domiciliar, ele não vai gerar nenhum risco à sociedade”, lamenta Ana.
O que diz o governo
A Ponte questionou a Secretaria da Administração Penitenciária, do governo Rodrigo Garcia (PSDB), sobre as condições das unidades prisionais a respeito do caso de João. A assessoria de imprensa informou que João “foi incluído no CDP 4 de Pinheiros no dia 29/03, em regime de trânsito, oriundo da Penitenciária de Dracena, com a finalidade de ser apresentado no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário (CHSP) para avaliação médica referente à deficiência física que possuía antes da prática delitiva”. A pasta informou que João “ficou internado no CHSP do dia 04/04 até o dia 30/05, recebendo alta sem restrição. No dia 06/06 foi apresentado junto ao AME Maria Zélia, para passar em consulta com médico especialista em otorrinolaringologia”.
A Secretaria declarou que não há restrição de envio de materiais e que “está recebendo assistência e acompanhamento por parte das equipes técnicas das unidades prisionais por onde passou e em nenhum momento o CDP IV de Pinheiros ficou inerte quanto à deficiência do preso”. Garantiu que o detento “será transferido no início da próxima semana para unidade prisional na região metropolitana”, ou seja, não mais para o interior.
A assessoria destacou que prisão domiciliar cabe ao Poder Judiciário determinar e que “em relação aos cuidados e atendimentos às necessidades da população carcerária com deficiência, a primeira cela de cada raio é adaptada para portadores de deficiência favorecendo a mobilidade e conforto dos privados de liberdade e buscam suporte de outros sentenciados para o apoio direto e auxílio nas atividades de vida diária sob orientações da equipe de saúde”. Declarou, ainda, que “passam por avaliação da equipe de saúde da unidade prisional que providencia, quando necessário, encaminhamentos a serviços externos de reabilitação. Do mesmo modo, são oferecidas aos presos nessas condições orientações de cuidados de higiene para minimizar riscos de lesões ao utilizar a cadeira de rodas”.
*Os nomes reais foram trocados por fictícios a pedido da família, que teme represálias.