Crime organizado repete lógica punitivista do Estado e ‘tribunal do crime’ resolve caso de adultério e diz quem e o que pode ser dito
Para quem ainda dúvida do poder paralelo do PCC (Primeiro Comando da Capital) na periferia da São Paulo, saiba que até fofoca está proibida. Essa foi uma das decisões do “tribunal do crime”, na última semana, em um dos extremos da capital paulista, ao intervir em um conflito entre duas famílias, em que até sentença de morte foi cogitada.
No final de semana anterior, Marli*, 34 anos, descobriu que o marido José*, 38 anos, tinha um caso com uma vizinha, Cida*, 35 anos. Enfurecida, chamou os filhos, Rafael* e Rodrigo*, 19 e 17 anos, frutos de um relacionamento anterior, e ordenou que eles dessem uma lição na amante do atual esposo. Pediu que eles a espancassem. Missão dada, missão cumprida. Ainda mais quando o pedido vem da mãe.
Os três saíram de casa, andaram 200 metros e entraram no quarto e sala onde vive Cida. A mulher apanhou por 20 minutos, na frente dos dois filhos menores de idade, e teve fratura no nariz e edemas no rosto.
Diante da violência extrema que foi cometida sem o aval do crime, no dia seguinte, membros do PCC apareceram para resolver o conflito. Primeiramente, afirmaram que se Cida morresse, o marido da mulher traída e agressora teria que sustentar os dois órfãos. Em segundo, determinaram que o casal arcasse com todas as despesas médicas. Terceiro, os jovens seriam agredidos, porque homem não pode bater em mulher. Para o tribunal do crime, o que eles fizeram foi covardia. Quarto, se fugissem do bairro, seriam encontrados de algum jeito ou a família seria morta em retaliação. Quinto apontamento – e o mais inusitado – a fofoca está proibida.
Quando José compreendeu a confusão em que tinha se metido e que o PCC havia, muito mais do que se envolvido, tomado um partido contrário a ele, pegou a família inteira e fugiu para a casa do pai, no interior do estado. Foi então que os irmãos de José receberam um recado curto e grosso: se ele não voltasse naquele mesmo dia, eles seriam assassinados, inclusive a mãe de 70 anos.
José voltou para a capital em pânico. A família recebeu a informação que a vítima havia morrido. Passaram a noite chorando e esperando pelo pior. Mas, felizmente, a notícia era falsa. Homens armados chegaram na casa da agressora, deram as prescrições médicas e o marido teve uma hora para ir até a farmácia mais próxima e voltar com todos os medicamentos. Os jovens que haviam agredido Cida entraram em choque, pensaram no pior. A mandante da agressão decidiu ir orar na igreja evangélica que frequenta diariamente, com toda a família.
O debate no “tribunal do crime” com membros do partido e os envolvidos foi marcado para o dia seguinte às 18h. Os homens do PCC estranharam a presença do chefe da região. O caso não merecia tanto. Era mais um lance de marido e mulher que poderia ser resolvido entre eles.
O chefão abriu o julgamento dizendo que ele ia decidir quem ia ter direito de fala e ia arbitrar as penas para quem quer que fosse. Deu a palavra para a vítima. Ela decidiu: os três mereciam ser espancados da mesma forma que ela havia sido. O “juiz” pediu uma pausa e saiu com a mulher para um canto. A sós, conversaram. Ela voltou e mudou de opinião. Pediu apenas para continuar arcando com os remédios. A conversa se estendeu por mais 6 horas. O “juiz” determinou que continuasse com os pagamentos dos remédios e que ninguém deveria fofocar do caso pelas ruas do bairro.
Mas não se fez de rogado e ainda deu lição de moral no marido da agressora. Disse que homem evangélico tem que cumprir com a sua religião e não trair a esposa. “Afinal, você é que merecia tomar um pau para aprender a se controlar”, teria dito o chefão da área. O desentendimento estava resolvido e “se algum Zé Povinho continuasse a falar, ele seria condenado a arcar com as consequências de não obedecer a lei do crime”.
Uma senhora que foi ao debate saiu branca e em choque. No outro dia, as pessoas que souberam de toda história entenderam por que o “juiz” chamou a vítima para uma conversa a sós. Os jovens agressores são filhos de um outro chefe do PCC. No fim, nenhum B.O. foi registrado. Nesse último final de semana, ninguém mais comentava o caso.
*os nomes foram trocados para preservar a integridade das pessoas envolvidas