“O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” retrata o amor de Cristo pelo viés das minorias. “Por que Jesus pode ser tudo menos travesti?”, pergunta Renata Carvalho
“Por que Jesus pode ser tudo menos travesti? Qual o problema do feminino? Qual o problema do corpo trans?”, indaga a atriz Renata Carvalho, 36 anos, em entrevista à Ponte. Ela interpreta Jesus na peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, com texto da dramaturga escocesa Jo Clifford, adaptação e direção de Natalia Mallo e produção e assistência de direção de Gabi Gonçalves.
O fato de uma atriz trans interpretar Cristo levou a peça a ser vítima de duas ações de censura judicial, a primeira em setembro, em Jundiaí (SP), e a segunda em Salvador (BA), no último dia 27. Agora, a peça retorna à cidade de São Paulo para curta temporada, até 15/11, no Teatro Viga.
Na sua própria história, Renata reflete a realidade dos corpos trans marginalizados, excluídos, negados e renegados, que durante muitos anos não puderam estar presentes em diversos espaços, inclusive no meio artístico. Atriz há 21 anos, Renata precisou negar sua identidade de gênero para conseguir atuar, pois o espaço para atrizes e atores trans ainda é muito escasso. Tem apenas um ano que ela assumiu sua condição de travesti. “Foi a Jesus que me empoderou para ser travesti, ajudou a me profissionalizar”, confessa a atriz.
Renata entra em cena afirmando que aqueles são local e o horário certos. E que todos que estão na plateia acertaram na escolha. Quem está distraído não percebe, mas a peça já começou. Como numa missa, a encenação se inicia com um sermão. Durante a próxima hora, o monólogo presenteia o público com a palavra de Cristo: amor, compaixão e empatia.
Sem nenhum símbolo religioso, apenas a representação do pão e do vinho, Ele, ou melhor, Ela cita as passagens mais importantes da Bíblia sempre com a vivência contemporânea em cena. Inclusive no vocabulário, recheado de gírias LGBTs. A parábola do filho pródigo, por exemplo, se torna a história de uma travesti expulsa de casa. O amor ao próximo, tão presente no discurso de Jesus, vem à tona em uma situação cheia de reflexão: em meio a tantos personagens, é uma travesti quem demonstra mais amor pelo seu próximo.
“Toda artista trans continua por insistência própria, pois é muito difícil”, confessa Renata no começo do bate papo com a Ponte, na noite do dia 1º. Vivendo a Jesus, Renata já se apresentou em mais de 80 lugares, de São Paulo até a Irlanda do Norte, passando por todas as regiões do país, entre teatros, presídios femininos e casas de acolhimento LGBT, como a Casa 1 e a Casa Florescer — esta última só para mulheres trans e travestis.
Muito mais do que “dar voz” e falar sobre pessoas trans, Renata afirma que é preciso dar representatividade, pois, para ela, “representatividade é estar presente”. É por isso que, para a atriz, atuar em uma peça em que o personagem principal sempre foi majoritariamente interpretado por homens cisgêneros (pessoas que se reconhecem no gênero de nascimento) é um ato de resistência. “Representatividade muda a vida das pessoas, eu digo isso pois mudou a minha.”
“O que Jesus faria se ele entrasse aqui no teatro e visse uma travesti interpretando Jesus? Ele ia sentar e assistir à peça, pois isso é uma obra de teatro. Eu não estou afirmando que eu sou Jesus, eu sou Renata Carvalho”, finaliza a atriz.
Empoderamento trans
Na primeira fila da sessão de reestreia da peça em São Paulo, na quarta-feira (1/11), estava Jaqueline Gomes de Jesus, pesquisadora, escritora, professora, ativista trans, negra, e uma das teóricas mais importantes do transfeminismo. Originado do feminismo negro, também chamado de feminismo interseccional, o transfeminismo tem apenas 5 anos, aproximadamente, e vem crescendo gradativamente por causa da internet.
Assim como Jaqueline, Renata também é uma militante importante do transfeminismo. “Quando a gente fala de transfeminismo, a gente fala de todas as pessoas que lutaram lá atrás pra eu estar falando aqui com vocês. Pra eu estar aqui hoje, muitas travestis tiveram que morrer, pra eu estar aqui hoje a Rogéria, a Jaqueline (Gomes de Jesus) e a Amara (Moira) tiveram que lutar”, conta a atriz.
Ao assistir à peça, Jaqueline falou à reportagem sobre a importância da representatividade e do empoderamento trans. “Renata tem toda uma representatividade, não apenas no sentido da imagem, mas também no discurso, de toda uma discussão teórica que ela tem para além de identidade trans, de empoderamento, de ação política dentro da arte. Ela é uma mulher que vive no teatro. É importante que pessoas trans possam viver pessoas trans, mas que também possam viver pessoas cis. Isso eu realmente acho muito poderoso”, disse.
Em cartaz
O espetáculo está em curta temporada, até 15/11, no Teatro Viga (R. Capote Valente, 1323, Pinheiros) e as sessões acontecem às segundas, terças e quartas, sempre às 21h. A entrada custa R$ 50 (R$ 25 meia) e o espaço concede 5 ingressos gratuitos para pessoas trans por sessão.
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