Em decisão inédita, tribunal atendeu solicitação de ativista para mudar seus documentos com o gênero ‘feminilidade travesti’: ‘masculino e feminino não abarcavam meu lugar na sociedade’, diz Lara Bertolini
O mês de março começa com uma sentença inédita da justiça argentina. No mesmo dia em que o presidente Maurício Macri fez seu discurso de abertura dos trabalhos legislativos no Senado da Nação (1/3), a juíza Myriam M. Cataldi, do 7º Tribunal Civil da Cidade de Buenos Aires, autorizou a ativista Lara Bertolini a trocar sua denominação de gênero em sua certidão de nascimento e DNI, o documento de identidade argentino. O pedido era para que o documento levasse o termo “feminilidade travesti” (leia a decisão na íntegra aqui).
“‘Masculino’ e ‘feminino’ não abarcavam minha identidade, meu lugar na sociedade. Essa decisão histórica ajuda a quebrar o binarismo”, explica Lara, em conversa com os jornalistas após ter a decisão acatada. “Não é por mim, é por todas as identidades. É a possibilidade da ampliação de direitos, de nos entendermos como ‘gerúndio humano'”, comemora a ativista, em referência à ideia de que a identidade de gênero é uma característica em constante mudança e não algo imutável.
A decisão foi respaldada pela Lei de Identidade de Gênero, aprovada em 2012 no país e sancionada pela então presidente Cristina Fernández de Kirchner. A lei “reconhece à toda pessoa o direito ao reconhecimento de sua identidade de gênero; o livre desenvolvimento de sua personalidade conforme sua identidade de gênero; a ser tratada de acordo com sua identidade de gênero e, em particular, a ser tratada deste modo nos instrumentos que creditam sua identidade em relação ao nome de batismo, imagem e sexo com os quais está aí registrada”, define o texto.
A lei já autorizava que pessoas que não se identificam com seu gênero biológico pudessem trocar os registros nos documentos. No entanto, as únicas opções de troca eram binárias (feminino ou masculino). Com a decisão, abre-se um precedente para inclusão de outras identidades, como a de travesti – que não tem um conceito definido, mas na América Latina é entendido como a pessoa que não se identifica com o gênero que nasceu e que reivindica o tratamento no feminino.
Questionado sobre possíveis consequências para esse processo de auto-identificação de gênero em termos práticos e legais no país vizinho, o advogado Emilio Buggiani, que atuou na causa de Lara, explica que “de acordo com a Lei de Identidade de Gênero, o Estado não pode interferir no processo de autopercepção como também não é necessária intervenção judicial para que se mude a identidade de gênero [nos documentos de identificação]”. “Depois do caso da Lara, o Estado está com a bola: ele que terá de instrumentalizar esse processo”, explica.
Funcionária do Ministério do Trabalho argentino, a travesti Marlene Wayar acredita que, para além da existência da lei, o governo precisa acolher essa população. “Não podemos imaginar o que vai vir a partir daqui. Há uma questão de classe: há pessoas trans por todo país que sequer sabem que existe uma lei de identidade de gênero. O Estado reconheceu [com o caso de Lara] outras identidades que sempre foram patologizadas, marginalizadas, violentadas. Que isso abra a possibilidade para uma justiça mais territorializada e menos classista”, diz.
Já Violeta Alegre, docente e também ativista travesti, vê na decisão judicial uma esperança para o futuro do movimento trans e travesti argentino. “Espero que as novas gerações possam ampliar o reconhecimento de suas próprias identidades. A hegemonia muitas vezes acaba prevalecendo pelo medo. Isso [caso de Lara] é também para que a sociedade reveja suas práticas”, analisa. E, com um sorriso, declara: “A alegria é sempre muito travesti”, comemora.