Pelo direito de existir, ‘kilombolas’ protestam contra ampliação de rodovia no RS

Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz) reivindica o direito à consulta livre, prévia e informada sobre a ampliação da BR-386

Parada da Légua RS
Cerca de 150 pessoas marcharam no ato “Parada da Légua” no Rio Grande do Sul, no último sábado, por consulta à ampliação da BR-386 | Foto: CoMPaz

Ao longo da última década, um tipo diferente de pesadelo passou a rondar o sono das crianças que vivem na Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz), localizada no distrito de Vendinha, na região metropolitana de Porto Alegre (RS). “Crianças começaram a ter sonhos de ataques por estarem com medo do avanço da BR”, conta Ayan N’goma Muzunguê, integrante da comunidade.

A BR que estaria espalhando medo a ponto de perturbar os sonhos infantis da comunidade é a rodovia BR-386. Desde 2010, a via vem passando por obras de ampliação no trecho entre os quilômetros 405 e 415, executadas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT), como parte do programa de concessão federal no Rio Grande do Sul, regulado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). A comunidade afirma que as obras ameaçam o seu modo de vida e o meio ambiente, com a supressão de 300 m² da vegetação local e a aproximação de um alto fluxo de veículos pesados perto de sua entrada. 

No último sábado (20/1), cerca de 150 pessoas realizaram na comunidade o ato “Parada da Légua” — uma referência a caminho — reivindicando o direito à consulta livre, prévia e informada sobre a ampliação da BR-386. Trata-se de um direito garantido pela Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina que povos originários, tradicionais e quilombolas devem ser consultados quando um projeto, público ou privado, afetar os modos de ser e viver em seus territórios.

Também conhecida como Território de Mãe Preta, a Comunidade Kilombola Morada da Paz foi certificada pela Fundação Cultural Palmares como quilombo em 2016 e se define como kilombola, espiritual e ecológica — elas preferem gravar a forma kilombo, porque dizem que teria um sentido de “grupamento de resistência e salvaguarda da memória do Povo Negro”, na língua Kimbundu, que seria diferente da conotação de “povoação remanescente” que existiria na palavra quilombo.

Formada predominantemente por mulheres negras, com o intuito de resistir, aplicar e preservar sobretudo os saberes da Nação Muzunguê, de matriz espiritual afroindígena, a comunidade abriga um total de 20 pessoas, parte das 17.496 residentes nesses territórios no Rio Grande do Sul, de acordo com dados do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022.

Além do Território de Mãe Preta, mais de 30 entidades e movimentos populares, entre lideranças indígenas, quilombolas, ocupações, associações de imigrantes e refugiados e integrantes do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), estiveram presentes. O lema do ato foi: “Por uma Solidariedade Real e Radical em Território de Mãe Preta CoMPaz: povos tradicionais marcham em unidade pelo direito de ser e existir”. 

Durante o ato, manifestantes distribuíram materiais informativos para motoristas. O protesto começou às 18h e contou com uma marcha poética-cultural e política-espiritual, entre os quilômetros 408 e 410. Essa foi a terceira “Parada da Légua”, pelo direito à escuta da comunidade, sendo a primeira em 2019 e a segunda em 2021.

Ayan N’goma Muzunguê conta que a empresa responsável pela ampliação da rodovia instalou uma mureta no trecho da BR que dá entrada ao território, impedindo a parada dos ônibus que chegam de Porto Alegre e deixam os moradores no território. A colocação da mureta no local teria impedido, segundo ele, o acesso a uma ponte que levava a um riacho, fazendo com que, agora, seja necessário caminhar pela rodovia. “A gente não consegue fazer essa passagem com segurança e acaba tendo que andar pela BR em torno de 50 metros até a entrada do nosso território. Como se não fosse o suficiente, a própria ponte caiu e a prefeitura disse que não tem autorização para reconstruir a ponte, pois quem estava com todas as licenças de obra era a empresa.”

Manifestantes marcharam entre o entre os trechos 408 a 410 km da BR-386 de forma pacífica | Foto: CoMPaz

Ayan pontua, ainda, que uma placa que mostrava as direções para a chegada na comunidade foi derrubada. “Essa placa foi derrubada, para instalação de uma placa da ANTT que dava sinalização de que a 500 metros seria uma pesagem obrigatória para veículos pesados.” 

A comunidade não foi consultada sobre os estudos referentes à ampliação da BR-386 no momento de sua concepção e também não teve acesso ao inteiro teor do projeto de ampliação e a seu cronograma atualizado. Ayan conta que os integrantes da CoMPaz tiveram conhecimento do projeto quando um antropólogo compareceu no local solicitando a autorização do Estudo de Componente Quilombola, que deveria ser realizado após a consulta livre, prévia e informada e de boa-fé. “A consulta não foi prévia, já que no momento que foi feita essa chegada aqui ao território o licenciamento da obra já tinha sido autorizado.”

Cerca de 150 pessoas marcharam no ato “Parada da Légua” no Rio Grande do Sul, no último sábado, por consulta à ampliação da BR-386 / Foto: CoMPaz

Diante das ameaças impostas por mais uma ampliação da rodovia, a CoMPaz ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) no final de 2022, requerendo a Consulta Prévia, Livre, Informada e de boa fé à comunidade, assim como a suspensão da obra até que este direito fosse garantido, já que o território se localiza a menos de 500 metros da margem da rodovia. 

A ação também pedia a anulação do licenciamento, uma vez que não foi convidada a participar do estudo de impacto ambiental e nem citada no relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA) das concessionárias CCR Via Sul, e Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. O relatório foi apresentado ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) em 2017. 

Em janeiro de 2023, a Justiça Federal no Rio Grande do Sul concedeu uma liminar, suspendendo o andamento do projeto da obra no trecho até que fosse realizada a consulta aos kilombolas. A decisão também determinava que o projeto da obra só poderia ser retomado após a realização de um novo processo de licenciamento ambiental pelos órgãos competentes, com a escuta à comunidade, conforme a Convenção 169 da OIT. 

Cerca de 150 pessoas marcharam no ato “Parada da Légua” no Rio Grande do Sul, no último sábado, por consulta à ampliação da BR-386 / Foto: CoMPaz

Em setembro de 2023, a juíza Maria Isabel Pezzi Klein extinguiu a ação, afirmando que a comunidade estaria se adiantando em seu pedido, pois o cronograma da concessionária teria previsto para 2034 a execução das obras no trecho 358-444 km, o que tiraria seu caráter de urgência. Agora a comunidade aguarda o pronunciamento do juízo com relação à apelação que apresentou a essa decisão. 

Na visão dos integrantes do Kilombo, a argumentação da magistrada não respeita a noção de consulta prévia aos impactados, como reitera Ayan. “O tempo certo é o tempo que os mais velhos estão lá para lutar. Se a obra acontecer em 2034 não tem como a gente esperar uma consulta prévia em 2033, né? Eles não vão estar mais aqui, não só para lutar, mas não vão estar aqui para nos preparar para essa luta.”

Diante disso, Ayan teme a expansão da obra pelo entorno, com a possibilidade da construção de estradas alternativas. “Pode ser que elas passem aqui por dentro do nosso Kilombo e a gente ainda não tem essa informação. Então como que a gente vai deixar passar, como que a gente vai ficar tranquilo? Como que a gente vai deixar as nossas crianças em paz aqui dentro, vivendo como se nada tivesse acontecendo? Eles podem nos tirar daqui muito antes.”

Também moradora do local, Nishtha destaca que a luta da comunidade é pelo que existe de mais básico. “O nosso território é espiritual e isso é a nossa luta, a luta por todo o direito de ser, existir e de toda forma de vida.”

Cerca de 150 pessoas marcharam no ato “Parada da Légua” no Rio Grande do Sul, no último sábado, por consulta à ampliação da BR-386 / Foto: CoMPaz

Pâmela Marconatto Marques, professora do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS, chama a atenção para outras ameaças ao território. De acordo com ela, a CoMPaz é cercada pelo monocultivo de acácia e eucalipto, que leva uso intenso de agrotóxicos e está localizada a um raio de 12 quilômetros em relação ao Polo Petroquímico de Triunfo, que, segundo moradores, causaria impactos na qualidade da água e ar da região. 

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“As ameaças e danos territoriais que se aproximam das comunidades são detectados por elas, não é o Estado que detecta, são as próprias comunidades que vão vendo isso acontecer. Esses povos podem e têm a chance de detectar esse processo que está acontecendo a tempo de pará-lo”, salientou a professora, referindo-se ao direito garantido pela Convenção 169 da OIT.

O que dizem as empresas e autoridades

A reportagem questionou o Ibama, o Incra e as empresas CCR Via Sul, e Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S.A sobre a ausência do processo de consulta livre, prévia e informada sobre a ampliação da BR-386. A Ponte também questionou o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e a magistrada Maria Isabel Pezzi Klein. Nenhum dos órgãos e empresas respondeu até o momento.

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