Desembargador aposentado chegou a receber mais de R$ 1 milhão líquido em 2023; remunerações acima do teto são turbinadas por folgas vendidas e atrasados
O acréscimo de uma série de “penduricalhos” tem elevado os vencimentos dos magistrados paranaenses muito acima do teto constitucional previsto para os servidores públicos brasileiros. Além de expedientes há muito conhecidos para inflar os próprios ganhos, como a venda de férias, juízes e desembargadores têm recebido dois valores excepcionais que tornam seus pagamentos líquidos muito superiores aos R$ 44 mil brutos que a lei impõe como teto para qualquer servidor público no país.
A Associação dos Magistrados do Paraná chegou a entrar com um pedido na Justiça para que a população não tenha mais acesso aos salários da categoria via Portal da Transparência (leia mais abaixo). Vendo os números das despesas com remuneração de juízes e desembargadores, é possível entender o receio com a transparência.
Um levantamento minucioso feito pelo Plural em parceria com a Rede Lume, de Londrina, mostra que houve pelo menos um desembargador que, ao longo de 2023, recebeu mais de R$ 1 milhão – ou seja, cerca de R$ 85 mil mensais líquidos em média, quase o dobro do teto constitucional bruto e quase quatro vezes o valor líquido que um desembargador deveria receber normalmente. A soma dos penduricalhos é de tal ordem que os pagamentos extra salariais já superam os gastos do Tribunal de Justiça com os próprios salários.
A reportagem somou os valores pagos aos desembargadores do Tribunal de Justiça do Paraná no ano passado, a partir de dados do Portal da Transparência. A coluna intitulada “remuneração paradigma” (salário base) soma R$ 101,8 milhões. Porém, os desembargadores receberam outros R$ 130,3 milhões como “vantagens pessoais”; também estão registrados R$ 119,9 milhões pagos como “indenizações” e R$ 89,8 milhões como “vantagens eventuais”. Somente R$ 11,5 milhões foram descontados como “retenção por teto constitucional”.
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Salários e penduricalhos
Os desembargadores paranaenses recebem atualmente como salário base R$ 37.589,96, o que equivale a 85% do teto constitucional bruto, fixado pela remuneração dos magistrados do Supremo Tribunal Federal, hoje de R$ 44,008,52.
O pagamento líquido nos 12 meses de 2023 foi de R$ 145,9 milhões para 266 desembargadores ou familiares de desembargadores falecidos. São 132 membros ativos do tribunal, 92 aposentados e 42 espólios. A maior parte dos desembargadores (87 deles) recebeu entre R$ 700 mil e R$ 799 mil líquidos no ano passado, ou seja, entre R$ 58,3 e R$ 66,5 mil mensais.
Entre os dez desembargadores que mais receberam, estão cinco inativos, inclusive o primeiro e o segundo da lista.
O magistrado campeão de proventos recebeu R$ 1,012 milhão no ano passado, sendo a maior parte atribuída a “vantagens eventuais”. Apesar de aposentado, o magistrado teve R$ 592 mil descritos desta forma. Foram mais R$ 155,6 mil de vantagens pessoais, além de R$ 45,4 mil de indenizações. O valor que consta como “remuneração paradigma” é de R$ 444,6 mil. Foram descontados do inativo R$ 99,8 mil descritos com “descontos diversos” e R$ 125,2 mil como “retenção por teto”.
De acordo com o Portal da Transparência, “vantagens pessoais” incluem adicionais por tempo de serviço e vantagens pessoais decorrentes de sentença judicial ou decisão administrativa; também englobam triênios e quinquênios. Já as “vantagens eventuais” incluem abono constitucional de 1/3 de férias, indenização de férias, antecipação de férias, gratificação natalina, antecipação de gratificação natalina, serviço extraordinário, substituição e pagamentos retroativos; englobam ainda a gratificação de encargos especiais, férias, abono de permanência e outras vantagens circunstanciais percebidas pelo servidor ou magistrado.
Dos desembargadores que estão na ativa, o que mais recebeu, com R$ 868,2 mil de rendimentos líquidos ao longo de 2023, vem em terceiro lugar na lista. O salário propriamente dito do magistrado soma R$ 482,2 mil no ano de 2023. Mas somente com vantagens eventuais o desembargador recebeu R$ 648 mil ao longo do ano. Há ainda R$ 76,7 mil de indenizações. Foram descontados do desembargador R$ 72,7 mil de “previdência pública”, R$ 143,5 mil de “imposto de renda”, além de R$ 69,4 mil de “descontos diversos”. Como “retenção por teto”, foram apenas R$ 504.
Nos quatro primeiros meses de 2024, analisados pela reportagem, a situação se repete. Somente no mês de janeiro houve dois desembargadores extrapolando R$ 100 mil de remuneração: um inativo (R$ 106,3 mil) e outro da ativa (R$ 115).
Gratificação para todos
Dois fatores vêm turbinando, acima de todos os demais pagamentos, a remuneração dos juízes e desembargadores do Paraná. Um deles foi a regulamentação, promovida pela atual gestão do TJ, sob a presidência do desembargador Luís Fernando Tomasi Keppen, de mudar o sistema de licenças compensatórias. Desde 2003, havia a previsão de uma “gratificação pelo exercício cumulativo de jurisdição, funções administrativas ou acúmulo de acervo processual”. Ou seja: os juízes poderiam receber a mais quando acumulassem comarcas ou tivessem um número de processos para julgar considerado excessivo, por exemplo.
Em 2023, o TJ regulamentou a licença compensatória definindo que aos magistrados paranaenses fica concedido um dia de licença para cada três trabalhados sob aquelas condições. O limite seria de 10 folgas por mês. Mas também ficou decidido que existe a possibilidade de vender folgas obtidas dessa maneira – o que permite aumentar em até um terço a remuneração dos magistrados sem que haja nem mesmo desconto de impostos sobre a gratificação.
O ponto é que, de acordo com os parâmetros estabelecidos atualmente, todos os juízes e todos os desembargadores trabalham com “excesso de acervo processual”. Ou seja: o que parece uma gratificação específica para certas situações, na prática se transforma em uma remuneração estendida a toda a categoria.
Outro valor que vem inflando o pagamento de juízes e desembargadores (e inclusive dos espólios de magistrados já falecidos) são os chamados ATS – valores “atrasados” que estão sendo pagos com maior velocidade desde a liberação por uma liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal.
A disputa em torno dos ATS (adicionais por tempo de serviço) é antiga. O pagamento chegou a ser barrado pelo Tribunal de Contas da União. No entanto, em decisão monocrática e precária, Toffoli liberou o pagamento até que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal julgue o caso.
Os valores são altíssimos: estima-se que cada juiz tenha direito a mais de R$ 1 milhão, embora não haja um número claro. Como se trata de uma liminar que pode ser cassada, não é difícil imaginar que a qualquer momento o STF decida suspender os pagamentos – até porque há indícios importantes de irregularidade no caso.
Mas os desembargadores e juízes paranaenses têm dois fatores importantes a seu favor: primeiro, a velocidade crescente com que a atual gestão do TJ vem liberando os pagamentos, o que possivelmente permitirá a quitação dos valores antes de qualquer decisão em contrário. Além disso, existe jurisprudência determinando que, ainda que os pagamentos venham a ser considerados ilegais posteriormente, os valores já pagos não precisariam ser devolvidos, uma vez que foram recebidos “de boa fé”.
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O que diz o Judiciário
A reportagem entrou em contato com a assessoria do Tribunal de Justiça para esclarecer detalhes sobre os benefícios pagos aos desembargadores e entender por que muitos inativos seguem recebendo, por exemplo, “vantagens eventuais”.
A assessoria, porém, limitou-se ao envio de uma nota: “O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, em seus mais de 132 anos de existência, sempre honrou a missão de bem servir ao povo paranaense, cumprindo e fazendo cumprir a Constituição e as Leis do país, enfrentando passivos trabalhistas de servidores e magistrados, ativos, inativos e pensionistas segundo seu orçamento e orientações dos órgãos de controle, dentre os quais o Conselho Nacional de Justiça.”
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a aplicação do teto constitucional no Poder Judiciário é regulamentada pelas resoluções 13 e 14 de 2006 do próprio órgão. Entre outras medidas, essas resoluções estabelecem o teto remuneratório para os servidores do Poder Judiciário da União e determinam que nos Tribunais de Justiça estaduais a remuneração tem de se limitar a 90,25% da remuneração federal.
Por meio da resolução 13, foram extintos uma série de benefícios anteriormente pagos aos magistrados brasileiros, mas mantidas outras várias vantagens.
Deixaram de existir, por exemplo, gratificações pagas aos integrantes de conselhos de administração dos tribunais, bem como de presidentes de câmaras e turmas, além das pagas para juízes de menores, ouvidores e para grupos de trabalho e comissões. Foram extintos ainda adicionais como anuênio, biênio, triênio, “cascatinha” e trintenário.
Parte dos benefícios mantidos não podem exceder ao teto constitucional quando somados aos salários propriamente ditos. É o caso de verbas de caráter permanente – tais como retribuição pelo trabalho em comarca de “difícil provimento” – e de caráter eventual, como de exercício de presidência e vice-presidências de tribunais, de corregedoria e de direção de foro.
Benefícios comuns a todos os trabalhadores, o adiantamento de férias, o 13º salário e o terço de férias não podem exceder o teto constitucional isoladamente. Mas não se somam entre si e nem com a remuneração do mês para efeito do teto.
Por fim, as resoluções trazem uma série de outros benefícios que podem continuar sendo pagos, independentemente do valor, mesmo que, somados aos salários, extrapolem o teto constitucional. Entre eles, as verbas de caráter indenizatório, como ajuda de custo para mudança e transporte; auxílio-moradia; diárias; auxílio-funeral; e indenização de transporte.
Também estão nesta lista benefícios de caráter permanente, como aqueles recebidos de planos de previdência instituídos por entidades fechadas, ainda que extintas. E os de caráter eventual ou temporário como auxílio pré-escolar; benefícios de plano de assistência médico-social; gratificação pelo exercício da função eleitoral; e bolsa de estudo.
Em resposta à reportagem, o CNJ disse que Corregedoria Nacional de Justiça é responsável por acompanhar, apurar e determinar a suspensão de casos irregulares de pagamento a magistrados e servidores do Judiciário. Os salários são fixados por cada tribunal e o CNJ exerce um controle posterior e examina eventual ilegalidade.
“A respeito do caso que envolve os desembargadores do Paraná, o Conselho Nacional de Justiça não pode se pronunciar sobre caso concreto, uma vez que o tema pode ser objeto de análise futuramente.”
“Teto constitucional se tornou decorativo”, diz diretora da Transparência Brasil
Marina Atoji , diretora de programas da ONG Transparência Brasil, diz que cenário encontrado pelo Plural e pela Rede Lume no Tribunal de Justiça do Paraná não é um caso isolado. Segundo ela, os ganhos muito superiores ao teto constitucional são recorrentes nos diversos tribunais pelo país e também nas cortes superiores.
“A quantidade e o volume dos benefícios para os magistrados são sempre muito significativos e são o que garantem essa remuneração acima do teto”, diz Marina Atoji. “Os juízes e desembargadores argumentam que não é ilegal – e, de fato, alguns não são, porque os ganhos se diferenciam entre os remuneratórios (sujeitos ao teto) e os indenizatórios, que não estão sujeitos ao teto”, explica.
Segundo Marina, a criação de benefícios seria uma forma de compensar o que os magistrados consideram “defasagem” em seus salários. “Se demora um pouco para reajustar o teto, obviamente demora-se para reajustar a base deles, então eles criam um ‘penduricalho’ para poder cobrir essa ‘defasagem’ da remuneração. Em alguns casos, a gente tem também o pagamento de férias, ou são férias retroativas que vão acumulando de alguma maneira e aquilo cai de uma vez num mês só; tem algumas indenizações que são de decisão judicial, com correção monetária; às vezes eles criam benefícios que são retroativos, o que é uma loucura”, afirma.
Um exemplo de benefício retroativo foi a criação, em 2023, de um auxílio-creche para magistrados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O benefício retroagiu a 2010. “Eles têm literalmente o martelinho na mão, então eles podem criar os próprios benefícios,”, diz Marina.
A diretora da Transparência Brasil aponta ainda falta de clareza na divulgação dos dados dos diversos tribunais pelo país. “Muitas vezes é difícil até acompanhar a lógica, porque não vem discriminado de forma correta, vem algo como ‘outras indenizações’, e você não sabe o que é”, exemplifica.
Associação de juízes pediu para ocultar valores recebidos
Por Rogério Galindo
A Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar) entrou em abril com um pedido para que os salários dos juízes e desembargadores do estado não sejam mais divulgados da maneira como acontece hoje. O relatório apresentado pela associação afirma que a divulgação dos salários coloca os magistrados em risco.
De acordo com o texto levado ao Tribunal de Justiça, os juízes e desembargadores, ao terem divulgados os valores de seus vencimentos, estariam sendo expostos à possibilidade de fraudes e crimes cibernéticos. A atividade que eles exercem, defende a Amapar, é reconhecidamente de risco.
Para embasar seu pedido, a associação usa a Leu Geral de Proteção de Dados (LGPD). Hoje, os juízes e desembargadores têm seus salários divulgados em Portais da Transparência como qualquer outro servidor público – o que inclui do porteiro ao Presidente da República.
Disparate
Diretora de Programas da Transparência Brasil, Marina Atoji classifica a tentativa de limitar o acesso a informações sobre remuneração como “um disparate”. Na avaliação dela, a iniciativa vai na contramão da Lei de Acesso à Informação. “Vemos o corporativismo saindo por todos os lados, em qualquer ponto dessas propostas, uma questão de autopreservação mesmo”, diz ela.
A representante da Transparência Brasil lembra que a proposta de exigir uma identificação prévia de quem consulta os salários e remunerações dos membros do Judiciário nos portais já chegou a ser estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o próprio órgão, posteriormente, reconheceu que era um problema, “uma ameaça ao direito de informar, ao dever de publicidade”.
“A melhor forma de eles reduzirem esses mal entendidos, como eles colocam, sobre supersalários é dar mais transparência, mais clareza, explicando o que se trata de pagamento atrasado, e não colocar esse tipo de rubrica como ganhos eventuais. É melhorar a transparência e também a comunicação deles”, afirma.