Tentativas de assassinato, prisões arbitrárias e ameaças até a crianças, que passaram a tomar remédio para dormir, revelam o cerco violento a indígenas que lutam por seu território ancestral. Lideranças falam do trauma da perseguição e relatam problemas de saúde mental

ATENÇÃO: esta reportagem trata de saúde mental e pensamentos suicidas — que podem gerar gatilhos. Caso você não esteja bem e precise conversar com alguém, a Ponte recomenda entrar em contato com o Centro de Valorização à Vida (CVV), que funciona 24 horas e pode ser acionado através do telefone 188 (ligação gratuita) ou a partir deste site. Você ainda pode buscar uma unidade de saúde mais próxima da sua casa por meio do Mapa da Saúde Mental.
Nilson Berg Fonseca, o cacique Bacurau, de 41 anos, descreve a si mesmo como um “alvo fixo da morte”. Ele é liderança na aldeia Vale das Palmeiras, localizada entre as cidades de Prado e Itamaraju, no extremo-sul da Bahia. O líder Pataxó já sofreu cinco tentativas de assassinato e, em duas delas, os tiros atingiram as costas e o abdômen. Os disparos não deixaram apenas sequelas físicas. “Eu estou traumatizado”, desabafa.
A última tentativa de assassinato ocorreu um mês antes da Operação Pacificar — quando as polícias Militar e Civil agiram com violência contra os Pataxós para cumprir mandados de prisão e busca e apreensão. O Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA) e o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) autorizaram a ação alegando que os indígenas formavam um “grupo criminoso armado” que invadia fazendas e agredia quem vivia nelas.
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À Ponte, membros do Conselho de Caciques Pataxó (CONPACA) negam as acusações. Eles afirmam que não se tratam de invasões, mas de retomadas — a reocupação de terras usurpadas das quais foram expulsos ao longo de séculos. O Conselho relata que pessoas foram presas em flagrante sem motivo e que a brutalidade policial foi tamanha que até crianças tiveram armas apontadas contra elas. A filha de Bacurau, uma menina de cinco anos, foi uma delas.
Ao chegar à aldeia, os policiais gritavam para que o paradeiro de Bacurau fosse revelado. O cacique era um dos alvos de prisão, apontado pela Polícia Civil como um dos líderes das supostas invasões — algo que ele nega. Bacurau diz que os policiais não estavam fardados e faziam ameaças de morte.
“Eu queria que, se eles tivessem chegado ali caracterizados, fazendo o trabalho deles certo, é lógico que eu não ia correr, mas segundo o que eles falavam para meus filhos, todo tempo, é que eles iam me matar. Em momento nenhum, eles falavam que iam me prender, me levar preso”, conta o cacique que, até agora, tem um mandado de prisão em aberto e teve dois filhos, o irmão e o cunhado presos na Pacificar. O cacique diz que sonha em deixar como legado a liberdade de ir e vir para o povo Pataxó.

‘Luta constante pela sobrevivência’
A região do extremo-sul da Bahia é importante para a história do Brasil como um todo. Foi ali que a expedição portuguesa atracou em 1500, o que deu início a uma exploração que perdura até hoje. Os indígenas tiveram suas terras loteadas, tomadas à força e invadidas ao longo de séculos.
O cacique Bacurau tenta se mostrar forte para as 186 pessoas que vivem sob sua liderança na aldeia Vale dos Palmeiras, mas são cada vez mais frequentes os momentos em que a cabeça pesa e as lágrimas caem descontroladas. “A gente fica preocupado com essa situação, porque, por ser liderança, lutando pelo povo, por estar lutando pelos nossos direitos, a gente está sendo perseguido, maltratado. A gente está sendo executado, nós não estamos sendo nem mortos, nós estamos sendo executados, que isso se dá o nome de execução”, afirma.
Segundo o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), 27 indígenas foram mortos naquela região desde 2023, quando a pasta foi criada. “Eu já pensei em tirar a minha vida de tanto terror. Será que, se eu morrer, será que vai… vai acalmar, vai acalmar os conflitos? Os caras vão parar de perseguir? Mas não vai”, diz Bacurau, que afirma que vai procurar um psicólogo para tratar a mente que está abalada. “Eu nunca passei por isso, assim, desse terror. Hoje em dia, é todo dia uma luta constante pela sobrevivência. Eu luto para sobreviver, eu já não luto mais pelo direito de curtir”, lamenta.
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O temor também atinge os filhos do cacique. Os jovens de 21 e 22 anos deixaram de fazer tarefas simples como buscar o carro na oficina ou ir ao mercado após deixarem a prisão. Antes descrita como alegre, a dupla tem hoje um olhar aterrorizado. “Eles ficam com medo de chegar na rua, um policial abordar eles, quando for ver que é o filho do cacique Bacurau, passar a mão neles e fazer um mal, sabe? Estão todos traumatizados. Isso tem deixado a gente muito vulnerável”, comenta Bacurau.
A Terra Indígena Barra Velha, onde está localizada a aldeia de Bacurau, está em processo avançado para o reconhecimento do território. O que falta é a emissão da portaria demarcatória, última etapa do processo, que precisa ser assinada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Ricardo Lewandowski. Em março deste ano, uma comitiva Pataxó esteve em Brasília para uma reunião com o ministro. Os indígenas voltaram frustrados com a negativa de Lewandowski que, segundo a plataforma de jornalismo Sumaúma, trouxe a Lei do Marco Temporal como empecilho para assinatura.
A tese defendida pelos ruralistas diz que os povos indígenas só teriam direito às terras que já ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Em abril, o Ministério Público Federal (MPF) emitiu nota técnica fundamentando a urgência da demarcação e afirmando que o processo da TI Barra Velha não se enquadra na tese do marco temporal, pois os Pataxós mantiveram a posse constante dos seus territórios mesmo com a dispersão forçada de núcleos familiares.
“Quero que meu povo entre ali daquela pista e saia lá na praia. O índio sempre viveu da caça e da pesca. O cara bota uma vara de anzol nas costas aqui e fala: vou lá no mar hoje, comer marisco do mar. O meu intuito é ele sair aqui dentro da mata dele, matar um caititu (porco-do-mato), uma paca, botar nas costas e lá embaixo fazer uma troca, que nós vivemos de gambira (troca). O índio vive disso, de troca. Pegar aquilo e lá trocar por peixe, marisco. Isso foi minha luta e vai ser minha luta sempre. E às vezes, por isso, eu tô sendo criminalizado, tô sendo perseguido bastante”, reflete Bacurau.

‘O medo me deixou fraco’
Jovino Braz, 68, também sonha em poder andar livremente pela TI Barra Velha. Ele é cacique da Aldeia Nova e, assim como Bacurau, foi alvo da Operação Pacificar. A liderança tem um corpo magro e um olhar entristecido. Jovino quase sussurra ao falar porque lhe parece faltar forças. “Eu fiquei traumatizado pela situação em que eu estava sendo incriminado, então senti o corpo muito fraco. Eu passei a não comer, estava preocupado com a situação e meu corpo foi ficando fraco. O medo me deixou fraco. Eu emagreci. Ficava pensando até altas horas da noite o que ia acontecer comigo, com meu povo lá na frente”, diz.
Mesmo antes da operação, o cacique já temia a morte. Jovino foi alvo de três tentativas de assassinato. Em uma delas, a companheira dele, Maria Braz Santos, 40, cozinhava o jantar quando ouviu barulhos na mata e viu quatro homens armados próximos de onde estava. Ela correu para avisar e, quando encontrou Jovino, passaram a ouvir tiros. Quando voltaram até a casa em que viviam com os filhos, viram o sangue do cachorro da família espalhado pelas paredes. O cão foi morto a marretadas.
“A gente vê isso e sente aquela insegurança, né? Estava naquele momento de morrer. Fiquei com medo. Eu não vou mentir. Fiquei com medo de pagar uma coisa que eu não estava devendo”, conta Jovino. Maria conta que a família já precisou ficar escondida no mato por dias com medo de ataques de fazendeiros e milicianos. “Nós corremos por mais de horas. Passamos dois, três dias no mato. Nós não estamos bem, estamos morrendo de medo”, comenta. Após a Pacificar, foi a aldeia toda quem ficou aterrorizada. “Tem criança lá na aldeia que está tomando remédio para dormir. Que está traumatizada. Não é mais aquela paz que nós tínhamos antigamente”, fala.
A indígena avalia que os conflitos na região ficaram mais violentos após a morte do adolescente Gustavo da Silva Conceição, 14. Gustavo foi morto em 2022 após uma retomada na Aldeia Vale Verde, que fica na Terra Indígena Comexatibá, no município do Prado. Um grupo de 10 milicianos atacou a área onde estava a família dele. Dois policiais militares chegaram a ser presos por suspeita de participação na morte. “Nós denunciamos, nós colocamos na mídia. Nós fizemos protesto. Pedimos justiça. E nós fizemos a barricada e colocamos no pau na BR. Depois daquilo, eles [fazendeiros] botaram a polícia para matar a gente”, fala Maria.

Campanha de difamação
Os Pataxós dizem ser vítimas de uma campanha de difamação que abrange as redes sociais, rádios e jornais locais. As mídias costumam defender o discurso ruralista de que as retomadas são criminosas. Por vezes, eles são chamados de falsos indígenas. O questionamento sobre a identidade desse povo também apareceu em discurso do governo. Em nota enviada à Ponte, a assessoria da Polícia Civil chamou os alvos da Operação Pacificar de “supostos indígenas”.
“Eles falam que são falsos índios porque, segundo eles, falam que aqui não tem índio, não existe indígena aqui”, diz Maria Braz. O questionamento sobre a identidade dos Pataxós também esteve presente no momento da prisão de alguns deles na Operação Pacificar. Os presos foram levados para o Conjunto Penal de Teixeira de Freitas, onde relatam terem sido alvo de racismo por agentes penais.
“Nós sofremos xenofobia e racismo lá dentro. Falaram que índio é esse branco, índio galego. Índio preto, de cabelo ruim. Falando essas coisas, que índio dorme em galho de pau. Chamaram a gente de macaco”, diz um dos Pataxós presos na Operação Pacificar que pediu para não ter a identidade revelada. Ele, que nunca havia sido preso, foi identificado em um dos inquéritos como um fugitivo. “Nós já temos um sofrimento ali, presos por uma corrupção. E ser chamado de macaco ainda, depois de preso. Isso aí é muito triste, mano, para todo mundo”, desabafa.
Decepção com o PT
Jovino não esconde a decepção com a gestão petista na Bahia, com o governador Jerônimo Rodrigues e com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O cacique lembra que se emocionou quando o Manto Tupinambá retornou ao Brasil após ficar exposto por mais de 300 anos em um museu na Dinamarca. O objeto raro foi repatriado em junho de 2024, num movimento que parecia reafirmar o direito dos indígenas como prioridade da gestão.
“Eu estava acompanhando pela internet e vi o Jerônimo sentando com o Lula e o pessoal falando tudo. Aquilo gerava uma expectativa na gente que naquele momento seria a assinatura da carta declaratória dos Tupinambá. Ele [Jerônimo], como se dizia, era índio… mas até hoje a gente não viu a carta”, fala.
O Conselho de Caciques Pataxós nunca foi recebido por Jerônimo. Ao ser questionado sobre a operação Pacificar durante uma entrevista coletiva, o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), disse não ter “partido” sobre a situação. Jerônimo, que se apresenta como indígena, disse querer pacificar a situação para que não haja morte em nenhum dos lados.
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A Ponte questionou a Polícia Civil da Bahia e a Polícia Federal sobre inquéritos instaurados nos últimos dois anos que apuram mortes de fazendeiros por indígenas. Não houve retorno. “Como um governo que se autodeclara indígena autoriza vir uma força dessa invadir nosso território? Eles tinham o intuito de tirar a vida das nossas lideranças”, diz a professora Dalva Pataxó, 46, moradora da Aldeia Nova.
Esta reportagem foi produzida com a colaboração do IDEAS Assessoria Popular, organização da sociedade civil que promove Assessoria Popular para ocupantes e trabalhadores de territórios negros e às suas organizações, sejam grupos, coletivos, associações ou movimentos sociais.